Sunday, July 29, 2012

“In perpetuam rei memoriam”: no centenário do nascimento de Jorge Amado (1912-2012)


“Foi um dos maiores escritores de língua portuguesa e, entre estes, o de maior projecção em todo o mundo. É injusto e inexplicável que não tenha sido distinguido, como tanto merecia, com o Prémio Nobel da Literatura”

Manuel Alegre

Não estaríamos aqui a falar do inesquecível e universalista escritor brasileiro Jorge Amado (1912-2001) se não tivéssemos em memória a sua passagem por Viana do Castelo e Ponte de Lima (tendo nesta multisecular vila descerrado uma placa na Adega Cooperativa local) nos anos de 1992 e 1993, e se no corrente ano não se comemorasse o centenário do seu nascimento (10 de Agosto). Se não bastasse tal facto, ainda temos a agravante de – como diria Fernando Henrique Cardoso – “a língua de Jorge Amado é um português que seduz todos os cinco sentidos, sabores e texturas. Um combatente que sempre esteve a favor da Justiça, ao lado dos oprimidos. Um criador que teve a coragem de pintar o Brasil em suas cores reais para a partir delas, propor sua utopia”. É este sentido dos sentidos, universalmente difuso, que sempre despertou em nós uma forte empatia pela sua escrita, as suas fantásticas criaturas e, nomeadamente, a sua mestiçagem cultural. Estamos plenamente de acordo com o que escreveu Miguel Real, em Agosto de 2001, aquando da morte de Jorge Amado, alegando de uma forma quase visionária “quando Jorge Amado chegar ao céu da igreja (que, não raro, tem sido o inferno dos escritores), deixando esta cidade de Salvador enlutada, não terá à sua espera a trindade cristã, Pai, Filho e Espírito Santo, mas a mais alta trindade da literatura brasileira da Bahia”. Miguel Real referia-se ao Padre António Vieira, que “denunciou os senhores dos engenhos de açúcar que, no Maranhão, em Pernambuco e na Bahia, nos séculos XVI e XVII, reduziam os índios à escravidão”; ao poeta setecentista Gregório de Mattos, que, nos seus versos barrocos, “dando voz ao povo mulato e pardo, aos mestres de ofícios, às mexeriqueiras de becos, escalpelizou a vida íntima e pôs a nu a consciência pesada das famílias burguesas e as perversões eclesiásticas de Salvador”; e ao poeta Castro Alves, poeta baiano da liberdade, “luta pela abolição da escravidão e pela implantação da República”.


Jorge Amado, tal como o nosso nobilíssimo José Saramago – depois de ouvirmos o Frei Fernando Ventura a falar da “fé” de José Saramago, retiramos a única pedra que tínhamos no sapato –, porque “geneticamente” vinculado ao “clube dos não-alinhados”, colocou a sua inspiração ao serviço – como escreveria Miguel Real, o qual subscrevemos – “dos negros faxineiros, dos meninos miseráveis, dos mulatos fura-vidas, das prostitutas de becos, dos cachaceiros de rua, dos brancos especuladores, dos comerciantes avarentos, dos coronéis tirânicos, dos jagunços bárbaros, dos capatazes despóticos, das viúvas recalcadas, das solteironas sensuais, das mestiças libidinosas, dos sindicalistas filantrópicos”. Jorge Amado, através das suas personagens, soube assim descrever de uma forma tão peculiar tanto as proezas velhacas do povo como os actos de solidariedade de que este se mostra capaz. Basicamente, este extraordinário escritor brasileiro cedo percebeu que (tal como diria Leodegário A. de Azevedo Filho) o verdadeiro romance nunca poderia ser aquele que copia a realidade contextual, mas o que tem força de agir sobre ela, transformando-a. Concordamos com Leodegário Filho quando afirma que no discurso literário de Jorge Amado “além dos elementos míticos, os elementos sobrenaturais rompem com o contexto, numa relação descontínua entre texto e realidade, abrindo-se então fecundo espaço para o imaginário”. A nossa grande frustração, enquanto leitores de Jorge Amado e pretensos “cabouqueiros” da escrita, é a de nunca termos tido a coragem de assumir, intelectualmente, a nossa “ignorância” e o princípio basilar da independência cognitiva – por influência de alguns críticos literários brasileiros e portugueses, chegando a pôr em dúvida a qualidade da sua obra –, no que toca à produção criativa e reveladora da realidade, ainda que contextual: «Nunca sou candidato a nada. Para um escritor nada é importante, tudo é circunstancial, a não ser o seu próprio trabalho. Nada pode acrescentar-lhe seja o que for. Só o trabalho conta» – disse-o um dia. É por isso que, para nós, Jorge Amado era um invulgar ficcionista.

Na verdade, este romancista, contista, dramaturgo, cronista e crítico literário brasileiro, de seu nome completo Jorge Leal Amado de Faria, esteve ligado a Viana do Castelo por laços afectivos e não só, onde granjeou muitos amigos – sendo de destacar Manuel Natário e Nuno Lima de Carvalho, imortalizados em “Tocaia Grande” como “Capitão Natário da Fonseca” e “Frei Nuno”, respectivamente; Amadeu Costa e Álvaro Salema, entre outros, carinhosamente referenciados em “Navegação e Cabotagem”; Abílio Lima de Carvalho, Sérgio Augusto, Carlos Branco Morais, etc. –, era filho de João Amado de Faria e de Eulália Leal, e nasceu na fazenda de cacau Auricídia, distrito de Ferradas, município de Itabuna, sul da Baía (Brasil), no dia 10 de Agosto de 1912. No ano seguinte ao do seu nascimento, uma praga de varíola obriga a família a deixar a fazenda Auricídia e a estabelecer-se em Ilhéus, onde viveu a maior parte da infância e que lhe serviu de inspiração para vários romances. Foi para o Rio de Janeiro, então capital da república, para estudar na Faculdade de Direito da então Universidade do Rio de Janeiro, actual Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Jorge Amado, o autor brasileiro mais publicado em todo o mundo, foi jornalista e envolveu-se com a política, tornando-se comunista, como muitos da sua geração. Em 1945, foi eleito deputado federal pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), o que lhe rendeu fortes perseguições políticas, tendo até sido proibido – tal como os seus livros – de entrar em Portugal. Viveu exilado na Argentina e no Uruguai (1941 a 1942), em Paris (1948 a 1950) e em Praga (1951 a 1952). Escritor profissional, viveu exclusivamente dos direitos dos seus livros, cujos conteúdos propõem uma literatura voltada para as raízes nacionais. Publicou ao longo da sua vida cerca de cinco dezenas de obras que se tornaram numas das mais significativas da moderna ficção brasileira. São temas constantes nas suas obras os problemas e injustiças sociais, o folclore, a política, crenças e tradições, e a sensualidade do povo brasileiro. A sua obra foi editada em 52 países e traduzida para 49 idiomas e dialectos. Foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 6 de Abril de 1961. Após a sua morte o seu lugar na Academia foi ocupado pela sua companheira de sempre Zélia Gattai, também escritora, de quem teve três filhos. Pela sua profícua actividade literária, recebeu no Brasil e no estrangeiro vários prémios, sendo de destacar a Comenda da Ordem de Santiago da Espada, atribuída pelo governo português, e a medalha da “Ordre des Arts et des Lettres” no grau de Comendador, pelo governo francês, aquando da comemoração do 50.º aniversário da sua carreira literária, em 1981; e o Prémio Camões, Portugal, em 1985.
Jorge Amado morreu no Hospital Aliança (Baía), onde horas antes dera entrada de urgência devido a complicações cardíacas de que fora acometido em casa, numa segunda-feira, 6 de Agosto de 2001, a quatro dias de completar 89 anos.

Impõe-se da nossa parte, por uma questão de gratidão universal, recordá-lo no Centenário do seu Nascimento, que ocorrerá no dia 10 de Agosto de 2012. Tal como diria Agustina Bessa-Luís: “Acaba-se a linha dos grandes momentos dos profissionais da literatura da ficção. Os leitores e amigos devem recordá-lo como um grande escritor romântico”. Assim será!

Saturday, July 21, 2012

«Arte na Leira», a alma de Mário Rocha…


“Janelas abertas na distância de um gesto, os dedos abertos em forma de cristal e rigor, postos sobre a fronte, sobre o degredo. Beijam-se os pincéis, como palavras dentro de nós. As cores sonham vontades, os traços verdades em tons de deserto e azul. É o momento de amar, de partir nos teus quadros Mário, de possuir na pele o desejo de ser parte do que pintas”

Pedro Abrunhosa

Mário Rocha, no sopé da Serra d’Arga com a «Arte na Leira», tem sido a trigonometria que nos leva a sobrelevar, para além do gosto, a emoção na arte. Mário Rocha é daqueles artistas que nos acicata a emoção, permitindo-nos a relação entre a sua criatividade e a nossa sensibilidade, dando razão a Tolstoi quando um dia escreveu que “a arte é uma actividade humana que consiste em um homem passar a outros, intencionalmente e por meio de certos sinais externos, sentimentos que ele viveu e de outros serem infectados por estes sentimentos e também os experimentarem”. E o nosso grande amigo Mário Rocha faz jus à partilha e à ideia que temos dos verdadeiros artistas, nomeadamente aqueles que inspirados por uma experiência de profunda emoção usam a sua aptidão para dar corpo a essa emoção numa obra de arte, ao que nós acrescentaríamos a expressão e a imaginação. De facto, na estética de Collingwood, por exemplo, a imaginação desempenha um papel central, sendo que é pela construção imaginativa que o artista transforma a emoção vaga e incerta em expressão articulada. Segundo o mesmo Collingwood, o processo de criação artística é, assim, não uma questão de exteriorizar o que já existe internamente, tal como muitos propõem, mas um processo de descoberta imaginativa, ou seja, um processo de autodescoberta. «Arte da Leira», a nosso modesto ver, é assim um lugar de emoção, expressão e imaginação, espaço de relação entre o artista e o público. Aqui, contrariando o que admitem muitos dos filósofos da arte – defendendo que sustentar o cognitivismo a respeito da arte é admitir alguma espécie de preconceito contra a própria arte –, achamos que a arte torna-se tanto mais valiosa quanto mais aprendemos e/ou apreendemos com ela cognitivamente. Com esta iniciativa da «Arte na Leira», a decorrer desde 1999 (14.ª edição), e segundo os seus mentores, “pretende-se transmitir que a vida é a arte do encontro com a própria arte”. E isso têm-no conseguido.
   

Quando em 2002, Mário Rocha nos pediu para elaborarmos uma pequena nota introdutória ao catálogo da «Arte na Leira» desse mesmo ano, plasmamos a nossa emoção – numa cumplicidade plena com o artista – afirmando convictamente que é através da expressão artística que a nossa identidade ganha forma, porque uma obra de arte não é só uma ideia: é uma ideia realizada. E diríamos também que Mário Rocha, um sensitivo nato, a expressão viva da Arte Realizada, sonhou um dia partilhar a sua causa-efeito com o seu (nosso) meio, fazendo jus a uma máxima de um poeta universalista que nos proporcionaria a sensibilidade da arte pela arte, e não da arte pelo homem: “Arga de Baixo, Casa do Marco, refúgio do Pintor-Poeta – onde o granito beija o chão aprazível e virgem da urze, onde vale a pena respirar o ar da cultura e o céu se mistura com a simplicidade do povo serrano, puro e castiço – volta a ser convergente identidade e carácter da expressão artística”. Tal como escrevemos e sentimos nessa altura, também agora falamos com a pastora Natália – por certo já “retratada” por Mário Rocha em “Ares da Serra” – e percebemos o quanto importante é a arte viver em simbiose com o bravio da terra e dos homens desse “Deus Maior” e omnipotente, porque alma da natureza. É nesse sentido que a «Arte da Leira» continua a fomentar o desenvolvimento de actividades de expressão artística e cultural, numa perspectiva de aproximação entre o mundo rural e o mundo artístico. Apesar de esta iniciativa ter sido inicialmente um “aconchego” regional (Alto Minho) – onde Mário Rocha, autor da iniciativa, para além de ser o mentor do projecto artístico é também o proprietário da casa – a sua dimensão valorosa já há muito que ultrapassou os simples cenários dos escarpados da Serra de Arga, sendo considerada (por muita e variada gente ligada às artes, e não só) inovadora em Portugal «no que toca a esta dimensão de um evento cultural do ponto de vista de uma exposição colectiva onde se espera mais-valias significativas ao nível do desenvolvimento das capacidades de reflexão crítica, imaginação e criatividade».
Queremos aqui recordar que Mário Rocha nasceu na freguesia de Perre, Viana do Castelo, em 1954, dedicando-se à pintura desde 1968, tendo inaugurado a sua primeira exposição com apenas 17 anos de idade. Frequentou a Escola de Artes Decorativas Soares dos Reis, no Porto e actualmente reside em Gondomar onde possui o seu próprio atelier. Para além de participar em muitas exposições individuais e colectivas – o que seria fastidioso aqui enumerá-las –, a sua obra está representada em várias colecções particulares e oficiais.
   

De 14 de Julho a 19 de Agosto do corrente ano, com a conivência/participação do nosso grande amigo e anfitrião Mário Rocha, perpassarão pela «Arte na Leira» artistas de renome nacional e internacional, tais como: Luís Coquenão, Jean Pierre Porcher, Gil de Sousa, Rafael Springer, Marco Rooth, Carvalho Araújo, Nuno Portela, Telmo Castro, Eva von Knobelsdorff, Rui Dias, Manuel Lima, Ricardo Drumond, Ana Aragão, Fátima Pitta, Mário Rebelo de Sousa, Flor Rocha, Mafalda Ayres, Margarida Costa, Luís Paupério, João Lopes Cardoso, Miguel Silva Rocha, Luz Lafuente, Cecília Lages, Maria Neves, Pedro Miguel Rodrigues, Indipotrochoid, Rita Sá Lima, Cristina Bastardo, Luís Pedro Viana, João Santos, Francisco Mota Bernardo, Catarina Silva, José Luís Cunha e Luís Coelho, sendo estes últimos três, em fotografia.
Terminaremos, tal como escrevemos há dez anos: Hoje e sempre Arte – os trilhos empedrados, ladeados por muros de pedras soltas; as casas humildes, de gente humilde; os moinhos e as presas; regras na rega, o milho, o feijão, o centeio, a aveia; a ancestralidade, marcada pelas tradições, pelo “querer” e pela fé; os rebanhos, cada cabeça com seu nome, obediente às ordens do(a) pastor(a); o granito e o xisto; os ribeiros salpicados de azevinhos; as fontes, ditas milagreiras; os sobreiros, os carvalhos, os castanheiros, os louros, as faias e as giestas; os lobos, os coelhos bravos, as raposas, as perdizes e o javali; a imponência, a aridez e a grandiosidade da Serra; o pôr-do-sol e o luar; as concertinas, o cantar ao desafio; as lendas e a história, com seus castros, conventos e templos – na Leira

Saturday, July 14, 2012

Ser doutor antes de o ser!


“Não tenho nada para comentar, porque tanto quanto sei não há nenhuma ilicitude nem nenhuma irregularidade que tenha sido apontada. Para mim é um não assunto”

Pedro Passos Coelho

Na semana em pensávamos abstrair-nos do “pântano” onde o país se encontra mergulhado, retomando assim a terapia positiva da cultura, tomada à letra pelas palavras de Rousseau quando um dia afirmou que “moldam-se as plantas através da cultura, os homens através da educação”, eis que somos confrontados com mais uma mirabolante reviravolta no estado psórico do país. Não é que haja da nossa parte preocupação no que concerne à obtenção dos tão ansiados “canudos”, mas ao nos centralizarmos na arrojada petulância com que muitos lutam por esse “disfarce vinculativo”, por forma a pertencerem ao “clube dos doutores e engenheiros” – e até fazem questão de prefixar os cheques dos bancos, mesmo antes de acabarem os respectivos cursos –, pensamos que algo de seriamente grave se passa na realização da natureza humana, contrariando assim a confrontação de uma pluralidade de valores e de escolhas surgida pelo enriquecimento da cultura universal. Segundo a nossa modesta opinião, estudar para nos valorizarmos intelectualmente deveria ser o princípio norteador dessa realização da natureza humana. O tão ansiado “canudo” deveria funcionar apenas como o reconhecimento do percurso de evolução cultural, longe das normas físicas colectivas, que apenas são ostentadoras de vaidades e de interesses mesquinhos. O alcance das licenciaturas não deveria “ser pelo parecer”, mas pela “razão” do enriquecimento intelectual. Este tipo de gente – “ignorante” e quiçá insignificante, porque mesquinha – que contraria o preceito do enriquecimento intelectual, está longe de perceber o princípio preconizado por Nicolau de Cusa na “Douta Ignorância”: Nenhum outro saber mais perfeito pode advir ao homem, mesmo ao mais estudioso, do que descobrir-se sumamente douto na sua ignorância, que lhe é própria, e será tanto mais douto quanto mais ignorante se souber. É só por isso – por termos também a noção da “existência” como precedente à “essência” – que resolvemos dar alguma importância à licenciatura de Miguel Relvas, como, em tempos (2007), demos à de José Sócrates, apesar de o sabermos possuidor de um bacharelato de quatro anos: “Infelizmente, enquanto se mantiver o desequilíbrio sacrificial na obtenção das licenciaturas, sendo que algumas delas são obtidas de forma desonesta, continuaremos a mastigar teoremas desajustados às necessidades de percurso, continuaremos a vender gato por lebre aos próprios estudantes. E por este andar, de que valerão as certificações, os comportamentos éticos na vida académica, a aquisição de competências para a aprendizagem, se tudo está inquinado logo à nascença?” – interrogávamos, escrevendo, na altura.
         Agora, passados cinco anos, eis que um ministro, assaz crítico de José Sócrates e da sua licenciatura, de seu nome completo Miguel Fernando Cassola de Miranda Relvas (vulgo Miguel Relvas), de acordo com o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 45.º do Decreto-Lei n.º 74/2006 de 24 de Março – Regime jurídico de graus e diplomas – (alterado pelo Decreto-Lei n.º 107/2008, de 25 de Junho), consegue obter a licenciatura de Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade Lusófona, com a modesta média de 11 valores, depois de ter sido atestado que o seu currículo governativo, político e profissional equivalia a 32 disciplinas do referido curso. Dos três anos previsíveis para a referida licenciatura (termos do Processo de Bolonha), com quatro exames acaba por a conseguir apenas num ano lectivo (2006/2007) e ainda, em 2010/2011, “vemo-lo” a leccionar cadeiras de Comunicação Pública e Política e de Marketing Político, como professor convidado, nos cursos de Comunicação Empresarial e Gestão de Marketing, no Instituto Superior de Comunicação Empresarial, em Lisboa. Para trás ficaria o “lapso” – quantos mais não irão surgir – de, em 1985, quando eleito pela primeira vez deputado para a Assembleia da República, ter entregado no Parlamento um registo biográfico seu onde mencionava que era estudante universitário do 2.º ano de Direito, quando na verdade apenas tinha feito uma cadeira (Ciência Política e Direito Constitucional) do 1.º ano, com a nota final de 10. É evidente que nada temos a ver – nem é nossa preocupação – com a forma como este “ilustre ministro” tirou a sua licenciatura, nem sequer pomos em causa a legalidade da sua obtenção, mas deixamo-nos de conter nessa possível irrelevância quando ouvimos o presidente da associação de estabelecimentos de ensino privado dizer que a “lei é um bocado coxa”, dado que os cursos sejam encurtados, mas que fazer uma licenciatura num ano “não é de todo vulgar”. Por incrível que pareça, e não será por acaso, na página do Governo, este nosso “génio estudante” é o único ministro que omite o seu percurso académico (ressalvamos este nosso reparo se à saída desta crónica acrescentarem ao seu “curriculum vitae” a tão propalada licenciatura). E ficamo-nos por aqui em considerações sobre o que a imprensa nacional tem especulado (admitindo, tal como aconteceu com José Sócrates, alguma “cabala” contra o “braço forte” de Pedro Passos Coelho, de forma a fragilizar o Governo), sem que antes plasmemos as suas próprias palavras, a propósito de todo este imbróglio: Tendo iniciado a minha actividade política e profissional ainda muito jovem, numa altura em que a política mobilizava milhares de cidadãos na primeira década após o restabelecimento da democracia em Portugal, essa intensa participação cívica em que me empenhei tornou-se, à época, incompatível com as obrigações académicas, tal como sucedeu com muitos outros jovens dos mais diversos quadrantes partidários. Apenas um facto curioso nos apraz aqui registar, já que, em Janeiro de 2004, ainda Miguel Relvas não era licenciado, foi colocada uma placa em Lagoa (Algarve) com os seguintes dizeres: «CÂMARA MUNICIPAL DE LAGOA / (ALGARVE) / INAUGURADO A 16 DE JANEIRO DE 2004 / POR SUA EXCELÊNCIA / O SECRETÁRIO DE ESTADO DA ADMINISTRAÇÃO LOCAL / Dr. Miguel Relvas / SENDO PRESIDENTE DA CÂMARA MUNICIPAL / Dr. José Inácio Eduardo»; ou então, aqui bem perto de nós, mais concretamente em Antas (S. Paio), Esposende, no ano anterior (2003), outra placa seria descerrada: «Foi esta Sede da Junta de Freguesia / inaugurada por Sua Excelência o / Secretário de Estado da Administração Local, / Dr. Miguel Fernando Cassola de Miranda Relvas / sendo Presidente da Câmara Municipal, / Fernando João Couto e Cepa, / e Presidente da Junta de Freguesia, / Vitor Manuel da Silva Faria / Antas, 04 de Outubro de 2003». Estávamos perante um licenciado que já o era antes de o ser!


Apesar de sermos desta geração similar à “da participação cívica de Relvas” – dezassete anos bem decalcados e vividos (onze anos de africanidade) ao tempo da revolução dos cravos, com “jotas”, movimentos de trabalhadores, participações cívicas/culturais e “deambulações” autárquicas à mistura – e de, presentemente, ostentarmos um currículo profissional de trinta e nove anos, nunca chegamos a embarcar em facilitismos, porque sempre achamos que o conhecimento deve ter por objectivo o pensamento humano e a relação deste com os seus objectos, e não por abjecto “parecer sem o ser”. Infelizmente, o “clube dos doutores e engenheiros” pela aparência, continua a ser a única saída para aqueles que estão vocacionados, única e exclusivamente, para o “ser aparente”, remetendo para um plano secundário o conhecimento, enquanto actividade pela qual o homem toma consciência dos dados da experiência e procura compreendê-los ou explicá-los. Deveriam ter em conta que o conhecimento é sempre “em si mesmo” uma actividade teórica e desinteressada, isto é, satisfaz um puro desejo de saber, sem se preocupar com a sua utilidade prática. Só o conhecimento “desinteressado” permite (empiricamente) uma acção eficaz. E isto parece que os nossos políticos não entendem ou procuram não entender. Daí, porque mal formados intelectualmente, a mediocridade de alguns dos governantes, deputados e dirigentes partidários. Tal como podemos ler em “espectivas.wordpress.com” (O. Braga), o qual subscrevemos inteiramente, “é tempo de acabarmos com a porcaria das doutorices na política. Um político vale pela sua capacidade de iniciativa, pelas suas ideias, pela sua mundividência e pela sua capacidade de mobilização de vontades — e não é um alvará de inteligente que fará dele mais inteligente ou mais esperto do que ele realmente é: o alvará de inteligente pode fazer dele um espertalhão, como acontece na maioria dos casos”.
Face aos decorrentes factos pouco abonatórios, no que toca à atribuição de certas licenciaturas, uma questão pertinente se coloca: Será que haverá necessidade de repensar o ensino superior privado em Portugal? De facto, pelo trilho das incertezas e do mal-estar geral, achamos que começa a ser preocupante a proliferação de casos pouco claros ou mesmo obscuros. Para bem da credibilidade de algumas instituições superiores privadas, bem conceituadas e credíveis nos meios científicos – e que, por uma questão de ética, nos escusamos aqui enumerar –, há que averiguar as prevaricadoras, de forma esclarecer possíveis comportamentos, ligações perigosas e, sobretudo, ilegalidades, se é que alguma vez existem. Até prova em contrário, seria uma forma de limpar o campo minado da suspeição.
A fechar, uma triste notícia: “O escritor colombiano Gabriel Garcia Marquez não vai voltar a escrever, depois de ter sido diagnosticado com demência. O anúncio foi feito pelo irmão do escritor, Jaime Garcia Marquez, numa conferência em Cartagena das Índias, Colômbia. Visivelmente emocionado contou que o Nobel da Literatura está bem em termos físicos, mas que perdeu a memória”.
Um mal maior para o mundo da cultura!

Saturday, July 07, 2012

«Psychanalyse des contes de fées», o estado da nação e a indignação do nosso gato


“Há um tempo certo para determinadas experiências de crescimento, e a infância é o período de aprender a construir pontes sobre a imensa lacuna entre a experiência interna e o mundo real. Os contos de fadas podem parecer sem sentido, fantásticos, amedrontadores e totalmente inacreditáveis para o adulto que foi privado da fantasia do conto de fadas na sua própria infância, ou que reprimiu estas lembranças.”

Bruno Bettelheim

Ultimamente, andamos a tentar – apesar da nossa dificuldade na tradução – ler a edição francesa (Éditions Robert Laffont) do estudo de Bruno Bettelheim (1903-1990) – considerado psicólogo judeu norte-americano, nascido em Viena d’Áustria – «Psychanalyse des contes de fées», uma preciosa oferta da nossa amiga/irmã Maria do Carmo Rocha, e cujo conteúdo, contrariamente ao que se afirma muitas vezes, os contos de fadas não “traumatizam” os seus jovens leitores. Eles respondem de maneira precisa e irrefutável às ansiedades de crianças e adolescentes e exercem sobre eles uma função terapêutica informando dos próximos eventos e esforços necessários. Bruno Bettelheim faz-nos descobrir a riqueza inesgotável deste património intemporal, levando-nos a que, depois deste livro, nunca mais podemos olhar da mesma forma para os contos de fadas. No fundo, situando-nos de volta ao país mágico da infância e devolvendo-nos o encanto e maravilhamento dessa época, Bruno Bettelheim revela-nos nesta sua brilhante obra a inigualável importância dos contos de fadas que, para além do seu papel educativo, estimulam e libertam as nossas emoções de crianças, ou seja, um livro cuja leitura se torna essencial à memória das nossas infância e juventude: «Um adulto que não conseguiu uma integração satisfatória dos dois mundos, o da realidade e o da imaginação, se desnorteia com estes contos. Mas um adulto que na sua própria vida é capaz de integrar a ordem racional com a ilogicidade de seu inconsciente será susceptível à forma como o conto de fadas auxilia a criança nesta integração. Para a criança e para o adulto que, como Sócrates, sabe que ainda existe uma criança dentro do indivíduo mais sábio os contos de fadas exprimem verdades sobre a humanidade e sobre a própria pessoa». Queremos aqui realçar que Bruno Bettelheim, após a anexação da Áustria ao Terceiro Reich, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, foi deportado junto com outros judeus austríacos para o campo de concentração de Dachau e, mais tarde, para Buchenwald. Aí pôde observar os comportamentos humanos quando o indivíduo é sujeito a condições extremas, percepcionadas como radicalmente destrutivas (desumanização), que estiveram mais tarde na base das suas teorias sobre a origem do autismo. Graças a uma amnistia em 1939, Bettelheim e centenas de outros prisioneiros foram libertados, o que lhe salvou a vida. Emigrou então rumo aos Estados Unidos, onde foi professor de psicologia em universidades americanas e dirigiu o Instituto Sonia-Shankman em Chicago para crianças psicóticas, destacando-se o seu trabalho com crianças autistas.
Depois de volutearmos pela psicanálise dos contos de fadas, eis que somos confrontados com manchetes dos jornais nacionais, onde o despautério contrasta com oportuna análise de Bettelheim, quando afirma que as crianças de hoje não crescem mais dentro da segurança de uma família numerosa, ou de uma comunidade bem integrada: «Por conseguinte, mais ainda do que na época em que os contos de fadas foram inventados, é importante prover a criança moderna com imagens de heróis que partiram para o mundo sozinhos e que, apesar de inicialmente ignorando as coisas últimas, encontram lugares seguros no mundo seguindo seus caminhos com uma profunda confiança interior». Partindo da sentida e profunda confiança interior, nós e nosso gato – como que extraído de um conto de fadas, porque handicap ou libertador de emoções negativas – lemos com atenção o que, visualmente, se nos era oferecido: “Estado vai assumir dívidas de Duarte Lima e de Vítor Baía ao BPN”, manchete à qual não nos acresce qualquer tipo de comentário ou desenvolvimento, porque pantanoso habitat de muitos bem-sucedidos políticos e afins, alguns deles ainda bem instalados no poder; “Vale e Azevedo revela uma personalidade compulsiva: no Reino Unido também já deixou um rasto de burlas”, enfrentando nesse mesmo país uma acção que visa impedi-lo de continuar a gerir empresas; “Fisco perdoa luvas dos submarinos”, sendo que à volta desta manchete ficamos a saber que a Justiça alemã revelou que Jürgen Adolff, ex-cônsul honorário de Portugal em Munique, e Rogério d’Oliveira (oficial da Marinha com o posto de contra-almirante e ex-consultor do consórcio alemão) terão recebido comissões no âmbito da compra dos submarinos por Portugal, tendo o último declarado às Finanças um milhão de euros que estava depositado na Suíça desde 2006, mas cuja regularização tributária só foi feita em 2009, ao abrigo do regime excepcional que permitiu o regresso de capitais. Com a adesão ao regime excepcional, este mesmo (pretenso à imaculidade) militar, pagou apenas uma taxa de 5% sobre as verbas depositadas no UBS; e, finalmente, “Deputado do CDS propõe jovens fora da Segurança Social”, em cuja desenvoltura noticiosa ficamos a saber que o deputado do CDS Michael Seufert – tendo em conta à “ciência” há muito rejeitada (mas por nós estudada, por obrigação académica) da “fisiognomonia” o atestaríamos de “campónio”, com o devido respeito por aqueles que o são – estudante e um dos mais novos parlamentares portugueses, defende que os contratos para jovens que procuram o primeiro emprego deviam ser “mais flexíveis” e “isentos de contribuições para a Segurança Social”. Pasmem-se, para este jovem (a nosso modesto ver, ainda por “desmamar”) deputado, as empresas conseguiriam assim cortar trinta por cento nos custos com o trabalhador, e os jovens ficariam fora da Segurança Social. Tal “bacorada” vai mais longe, quando o mesmo admite que a proposta não seja “politicamente correcta”, mas a sua ideia é “embaratecer a contratação sem mexer nas remunerações”: «Entre estar desempregado sem apoio ou com um apoio fraco e ir trabalhar e poder fazer a diferença, acho que era preferível trabalhar» – disse, ou seja, pela profundidade do seu pensamento, colar-lho-íamos à velha máxima de Lili Caneças “o estar morto é o contrário de estar vivo”. Aqui, o nosso gato lançou um balbuciante miar, querendo dar razão aos que acham que há deputados a mais no parlamento. Tornar a máquina do Estado cada vez mais pesada e “vomitar” tão inadequadas – porque patéticas – palavras é dar razão a Bruno Bettelheim quando escreve que «o destino destes heróis [?] convence a criança que, como eles, ela pode-se sentir rejeitada e abandonada no mundo, tacteando no escuro». Para este “herói” da política, a sua geração é do Erasmus e da migração. Talvez fosse uma razão plausível para nunca se ter sentado na cadeira das mordomias, creditadas pelos nossos impostos. Emigrava de vez e estava o caso resolvido…


Pela positiva lemos que Mia Couto escreve para “acalmar os fantasmas” e quase não entende por que recebe prémios. Admite ser caótico no que toca ao método de trabalho e cada vez que parte para um livro sente os mesmos medos com que iniciou a primeira obra. Assim é a humildade que caracteriza os grandes escritores.
Pela negativa, constatamos a colagem bajuladora do director do jornal SOL, José António Saraiva, ao actual Governo da nação. Face aos seus bem “masturbados” editoriais, às vezes temos pena da sua manietada procura do consenso, porque nos cheira a encapotada militância ideológica: «Penso que, no braço-de-ferro europeu, quem tem razão é Merkel e não Hollande» (este ilustre director, se tem esperado alguns dias teria assistido à acção combinada de três países fortes – a Itália, a França e a Espanha – que obrigou os alemães a aceitarem a contragosto que a Europa tem mesmo de ajudar os países em dificuldades e não massacrá-los com austeridade inútil e desgastante. Finalmente, os países europeus conseguiram obrigar Merkel a corrigir o rumo desastroso que escolheu desde 2010 e que tem produzido os mais terríveis resultados na Grécia, na Irlanda, em Itália, em Espanha e também em Portugal) (…) «É preferível haver mais guerras políticas internas, mais instabilidade social – a voltarmos a uma situação de desequilíbrio e descrédito internacional, má sob todos os aspectos», ou ainda «Ainda bem que o Governo não cedeu», compasso de espera que deontologicamente se exigia para se aperceber a tempo e horas que o deficit português, em vez de descer como previam os defensores da austeridade, aumentou! Ficamos assim a saber que Portugal, tal como os outros países, ainda não se livrou da terrível espiral depressiva em que a Merkel nos obrigou a entrar, mas pelo menos há uma nova esperança, a de que os diferentes rumos que a Europa agora escolheu nos livrem desta triste e humilhante miséria em que nos obrigam a viver. Mais uma vez, José António Saraiva falhou na sua análise. Enfim, o jornalismo e os jornalistas que temos!  
Infelizmente – em face da situação presente –, apercebemo-nos que o nosso gato anda cada vez mais indignado (para não dizermos stressado) e, porque conscientemente cúmplices, por simpatia vai-nos contagiando também. Mesmo assim, em cognoscibilidade à criança que há dentro de nós – qual conto de fadas –, é nele que continuamos a confiar. Verdadeira e eticamente falando, ao contrário dos políticos ou de alguns jornalistas de “pacotilha”, o nosso gato é um filósofo em crescente. Preferimos o Gato das Botas ao Pinóquio!