Wednesday, April 30, 2014

O utilitarismo numa perspectiva ética

“A atenção dada pelo Utilitarismo às consequências das acções é genuína exigência ética e indiscutível factor de aceitação do Utilitarismo, bem como a benevolência generalizada que propugna…”

Professor Doutor Roque Cabral‏

Mesmo que alguém possa por em causa algum “formalismo” na teoria utilitarista – corrente ética que engloba diversas doutrinas, que têm em comum avaliar moralmente as acções exclusivamente segundo o carácter vantajoso ou não das suas consequências –, ao assistirmos a transformações profundas nas atitudes morais, nomeadamente no último quartel do séc. XX e início deste século e/ou milénio, estaremos em admitir que esse possível “formalismo” trouxe alguma mudança de atitude, principalmente quando hoje falamos com a maior das transparências – ainda que as questões continuem a ser controversas e podemos defender qualquer das partes sem pôr em risco o nosso estatuto intelectual ou social – acerca do sexo extramatrimonial, da homossexualidade, da pornografia, da eutanásia ou mesmo do suicídio. Apesar destas questões continuarem a ser controversas, o mesmo não se passa a nível da igualdade, dado que houve uma alteração de atitude em relação à desigualdade da cor da pele e sexual: os pressupostos racistas partilhados pela maioria dos Europeus na viragem do século são hoje totalmente inaceitáveis, pelo menos na vida pública. Um poeta não podia hoje escrever sobre «raças inferiores à margem da lei» e manter – na realidade, aumentar – a sua reputação, como fez Rudyard Kipling em 1897. Exemplo disso é o abandono do apartheid por parte da África do Sul, delegando no nosso subconsciente o princípio de que todos os seres humanos – e aqui, mais uma vez, referimo-nos à única raça existente no planeta, a raça humana – são iguais, fazendo parte da ortodoxia política presente e da ética dominante, ética essa que acabou por derrubar preconceitos dentro da comunidade moral. Citando John Rawls, Peter Singer acaba por afirmar que a «personalidade moral» é uma propriedade que todos os seres humanos possuem por igual: por «personalidade moral» Rawls não quer dizer «personalidade moralmente boa»; ele usa o termo «moral» em oposição a «amoral». Uma pessoa moral, segundo Rawls, tem sentido de justiça. Segundo Peter Singer, em termos gerais, poder-se-ia dizer que uma pessoa moral é aquela a quem se podem fazer apelos morais com alguma perspectiva de esse apelo ser atendido. Para John Rawls, a «personalidade moral» – ainda que a sua utilização não esteja isenta de problemas, tendo em conta que, na verdade, nem todos os seres humanos são pessoas morais – é, assim, a base da igualdade humana, assente numa perspectiva que, segundo ele, decorre da sua abordagem «contratualista» da justiça. Esta tradição “contratualista” encara a ética, na óptica de Peter Singer “como uma espécie de acordo mútuo benéfico”.


Pelo facto dos seres humanos diferirem como indivíduos, e não como “raças” ou “sexos”, a superação destes preconceitos dentro da comunidade moral torna-se exigível e, eticamente, essa superação – porque conscientes de que o princípio da igualdade é a «acção afirmativa» – deve impulsionar-nos para a necessidade do alargamento e integração de novos membros. Ao superarmos o “racismo” e o “sexismo”, devemos caminhar para a superação do preconceito de espécie (“especismo /especiesismo”). Por proposta dos autores anteriormente citados, e face aos avanços da reflexão moral, facilmente concluiremos que não há razão teórica para excluirmos os animais da comunidade moral.
Citando Paul Taylor, por exemplo, Maria José Varandas chama-nos à atenção para o facto de as éticas biocêntricas defenderem que qualquer organismo, animal, planta ou microrganismo, tem valor intrínseco, já que todo o ser orgânico é, em si mesmo, uma unidade dinâmica de autopreservação e auto-realização, constituindo cada existência individual a realização do bem próprio do organismo, bem esse que se manifesta como instinto ou impulso vital. Ainda segundo o mesmo pensador, ao partirmos desta perspectiva centrada na vida, temos obrigações enquanto membros da comunidade biótica terrestre: Somos moralmente obrigados a proteger ou a promover o seu bem por si próprios […]. Assumir uma atitude de respeito para com a Natureza consiste em encarar as plantas selvagens e os animais dos ecossistemas naturais terrestres como portadores de dignidade inerente, o que os tornas sujeitos morais. Aliás, disto já aqui falamos em anteriores crónicas.  
Será que o homem não deve comer carne dos animais? Por certo que esta pergunta permanecerá no subconsciente de cada um de nós, nomeadamente pelo facto de, circunstancialmente, se estabelecer critérios da “senciência” como limite para definir quem é ou não digno de ser considerado membro da comunidade moral: Deus abençoou Noé e os seus filhos, e disse-lhes: «Sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra. Sereis temidos e respeitados por todos os animais da terra, por todas as aves do céu, por tudo quanto rasteja sobre a terra e por todos os peixes do mar; entrego-os ao vosso poder. Tudo o que se move e tem vida servir-vos-á de alimento; dou-vos tudo isso como já vos tinha dado as plantas verdes (Col. 2, 16; Tim. 4, 3 s). Somente não comereis a carne com a sua alma, o sangue (17, 14; Act. 15, 20 s). Ficai também a saber que pedirei contas do vosso sangue a todos os animais, por causa das vossas almas; e ao homem, igualmente, pedirei contas da alma do homem, seu irmão (Gen. 9, 1-5) – com as devidas desculpas pela abusiva “apropriação” das citações bíblicas.

Daí, a pertinência da questão: Será que o Utilitarismo, ao propor-se ao princípio de utilidade, legitimado pela excepção de sacrificar o menor número de animais, para salvar milhares de pessoas, estará a contribuir para uma verdadeira perspectiva ética? A pergunta fica no ar!     

Thursday, April 24, 2014

Que liberdade quarenta anos depois?!...

“Vamos tendo desilusões porque nos atiramos para o colo de messias que não o são… Uma eleição, um acto eleitoral que vem, parece que vai chegar o messias, e o messias não chega, não vem por ali. A salvação da História nunca veio de cima, vem sempre de baixo. Acredito nos milagres feitos por gente comum e corrente, que ao estar na vida de outra gente faz sempre a diferença”.

Frei Fernando Ventura

Estávamos longe de imaginar um malabarismo de circunstância, em trapézio sem rede, quando o director do jornal «Cardeal Saraiva» nos sugeriu, quase por “obrigação”, duas linhas a propósito dos quarenta anos das “portas que Abril abriu”.
Apesar de nunca termos feito nada por obrigação, e muito menos quando de artigos de opinião se trata, resolvemos romper com este princípio basilar da nossa “clarividência objectiva”, por uma questão de terapia cognitiva, quando nos é dado saber das fragilidades desta desvirtuada democracia, irrespirável e balizada por balões cheios de nada e vazios de tudo. Dado nunca termos esperado pelos apregoados messias – sejam eles os salvadores na política ou objectores de consciência, nos palanques salvíficos das televisões –, conscientemente, sentimos que, quarenta anos depois, vivemos uma falsa liberdade encapotada por uma ditadura disfarçada de democracia. E esta aparente “agressividade” já teve dias piores, principalmente quando ainda tínhamos a correr nas nossas veias o ajindungado suco de uma irreverente juventude, habituada a ser metralhada pelos mais desconcertantes cenários deste país de brandos costumes, cujos governantes e uma grande parte dos políticos sempre procuraram atenuar as suas incapacidades e má formação – sem excluir a ética –, com a crise mundial. Em quarenta anos, nada disto mudou. E os devedores continuam a ser os contribuintes, “gente comum e corrente, que ao estar na vida de outra gente faz sempre a diferença” – no dizer de Frei Fernando Ventura.

Primeira manifestação em liberdade em Viana do Castelo

Quarente anos depois, a democracia (?) vive de balões de ensaio, e fazendo nossas as palavras de Paulo Morais, cujos “partidos assumiram o papel de representantes das corporações que já funcionavam em Portugal no tempo da ditadura. As estruturas corporativas são hoje muito mais fortes porque têm uma aparente legitimidade democrática”. E as novas corporações estendem-se hoje um pouco por todo o país, alimentadas pelos tentáculos do poder central, a maior das corporações, forjando leis nos gabinetes particulares, acabando por as imprimir com o cunho democrático, na sede da democracia, anti-sísmica, tomada por dentro pelos coveiros da própria democracia. Daí, pessoas sem qualquer qualidade moral, continuam a ser eleitos com a finalidade de fecharem as “portas que Abril abriu”.
Era a nossa inesquecível Natália Correia que dizia que “quando a crise não é gerada de grandes audácias, mais indicado é dar-lhe o nome de agonia”. Agonia de um povo que Miguel Torga vaticinara como um país que se ergue “indignado, moureja o dia inteiro indignado, come, bebe e diverte-se indignado, mas não passa disto. Falta o romantismo cívico da agressão. Somos, socialmente, uma colectividade pacífica de revoltados”. Literalmente assim, sem tirar nem pôr.
Pede-nos o director, algo sobre o 25 de Abril, quarenta anos depois, e ficamos impotentes perante a nossa falta de criatividade para falarmos de cravo vermelho ao peito, reclamando a liberdade que não temos. Talvez daqui a uns anos, depois de nos termos habituado ao corte do feriado do 5 de Outubro – data memorável para os republicanos, mas mais para todos os portugueses que viram através do Tratado de Samora, o nascimento de Portugal – e do 1 de Dezembro (libertador e restaurador da nossa identidade), consigamos perceber as intenções neoliberais destes “vendilhões de pacotilha”, quando decretarem o fim do dia comemorativo das “portas que Abril abriu”. Se já alguém sugeriu a suspensão da democracia por algum tempo, porquê tanta admiração para tal vaticínio. Será que não se lembram? Ou estaremos nós a ficar senis? 
Pela falta de inspiração libertadora, terminaremos com as mesmas palavras do Frei Fernando Ventura (tomando-as como nossas), em entrevista à TVI, na passada Sexta-Feira Santa, 18 de Abril: Apesar de estarmos próximos do 25 de Abril, se calhar só nos resta celebrar a liberdade e recordar a liberdade, porque neste momento não somos livres! 

Thursday, April 17, 2014

Mito e linguagem em Ernst Cassirer!...

“O que, para Humboldt, se apresenta de imediato na imagem da linguagem é, primeiramente, a separação do espírito individual e do espírito «objectivo», e a superação desta separação. Todo indivíduo fala a sua própria língua – e, no entanto, é precisamente na liberdade com que dela se serve que ele adquire consciência de um liame espiritual interior”.

Ernst Cassirer

Por admirarmos Ernst Cassirer (1874-1945), como um dos maiores filósofos do século XX, apresentando os resultados de uma vida de estudos sobre as realizações culturais da humanidade. Apesar de Ensaio sobre o Homem, continuar a ser um enunciado vigoroso e conciso de sua filosofia da cultura, formulada pela primeira vez no monumental Filosofia das Formas Simbólicas (1929), onde o mesmo se vale de uma riqueza de dados científicos, antropológicos e históricos, examinando os esforços do homem para compreender a si mesmo e lidar com os problemas de seu universo por meio da criação e do uso de símbolos, hoje vamos procurar falar do Mito e Linguagem no mesmo filósofo, como forma de diferenciar nitidamente as diversas formas fundamentais da “compreensão” humana do mundo. 
Com este intróito, em jeito de lide, fácil será constatar o quanto Wilhelm Von Humboldt (1767-1835) teria influenciado o pensamento de Ernst Cassirer. Procurando “enquadrar-nos” na situação da linguagem e do mito dentro da cultura humana, Cassirer começa por nos reportar até ao Fedro platónico, onde o cenário físico envolvente – ponto de encontro no qual se desenrola a cena entre Sócrates e o mesmo Fedro – é plasmado por uma reprodução paisagística ao mais ínfimo pormenor, colocando Sócrates e Fedro sentados à sombra de um grande plátano junto a um manancial refrescante, agitado por uma brisa estival – segundo ele – benigna e doce o ar está cheio do chilrear das cigarras. Aliás, descrições deste tipo apesar de serem muito raras na Antiguidade, por certo que levaria à compenetração dos intervenientes, tomando como lugar-comum, de modo a articularem interrogações mitológicas: Bóreas raptou a bela Orítia; pois aqui a água é pura e cristalina, um incentivo para que as jovens se banhem e brinquem nela. Sócrates, por exemplo, ao ser confrontado – e/ou pressionado – por Fedro a responder se realmente cria naquela «mythologema», limita-se a chamar a atenção para a pouca importância das diversas interpretações mitológicas que, circunstancialmente, não passavam de passatempos aborrecidos e artificiosos, desvalorizando quem se lhes dedica. Apontando casos semelhantes – figuras como Centauros, Quimera, Górgonas, Pégasos e muitos outros –, e, face à sua desconfiança empregue na existência destes “seres maravilhosos”, manifesta-se claramente na indisponibilidade de se dedicar a tais ócios (ou, ainda segundo Sócrates, consagrar muito tempo a este tipo de sabedoria inútil), pelo facto de ainda não se conhecer a si próprio, tal como o “exigia” o preceito délfico. Era absurdo, perante o facto de não se conhecer a si próprio, dedicarem-se à interpretação de coisas estranhas: Por isso, deixo que tais coisas sejam o que forem, e não penso nelas, mas antes em mim mesmo, ao meditar que sou uma criatura de constituição mais complicada ou monstruosa que a de Tífon, ou se serei, talvez, um ser de natureza mais suave e simples provida de alguma essência nobre e talvez divina – citamos Cassirer.


“Servindo-se” do pensamento platónico, Cassirer refere-se ao género de interpretação mitológica, aquela que os sofistas e os retóricos consideravam como a mais alta sabedoria, como sendo uma «sabedoria campesina». Mesmo assim, tal facto não impediu que não se voltassem a dedicar a este género de interpretação. Tal como haviam feito, anteriormente, os sofistas e os retóricos, os estóicos e neoplatónicos competiram nesta arte: E de novo, como antigamente, voltou a ser utilizada a investigação linguística e a etimologia como elementos de interpretação. No reino dos fantasmas e demónios, assim como no das mais elevadas expressões mitológicas, parecia voltar a confirmar-se a palavra fáustica: supôs-se, mais de que uma vez, que a essência de cada figura mítica podia ser reconhecida directamente pelo seu nome. Estabelecera-se uma relação intimamente necessária entre o nome e a essência. Tendo em conta que para este importante pensador neo-kantiano, na elaboração da máxima de que somos nós que plasmamos o mundo com a nossa actividade simbólica, para ele – a criação do mito, da religião, da linguagem, da arte e da história, são todos símbolos –, somos nós que criamos e fazemos mundos nas nossas experiências. Assim, o espírito do mito, actua como convicção vivente e imediata, convertendo-se, circunstancialmente, num postulado do poder reflexivo, para a ciência da mitologia; esta impõe, assim, como princípio metodológico, a íntima relação entre o nome e a coisa, a sua latente identidade. Seguindo a mesma linha de pensamento, para Ernst Cassirer, este método foi-se aprofundando e/ou aperfeiçoando “através da história da investigação mitológica, da história da filologia e da ciência da linguagem”.

A nosso modesto ver, nunca entenderíamos a nossa própria cultura se, inadvertidamente, baníssemos a carga puramente “simbolizante” contida nos estudos feitos pela filosofia da linguagem e, neste caso particular, por Cassirer. Subtrair ao mundo físico o mundo simbólico, é subtrair as nossas condições de existência, dado que as mesmas foram criadas por nós próprios (mundo simbólico) e não por vivermos num mundo puramente físico. Para Marinaide Moura, aquilo que vê em Cassirer, ao dar expressão ao significado de símbolo, afirma a dado momento que simbolizar significa lançar juntamente, amontoar, reunir, ou seja, aproximar objectos de ideias. O símbolo surge como estruturação das relações do homem com o mundo. É essa capacidade de síntese, ou seja, no dizer de Cassirer, o modo como se opera aquilo a que ele denomina de concentração, depende da direcção do interesse subjectivo. Por exemplo, para ele a linguagem faz parte do mito e o símbolo faz uma síntese de várias experiências sensoriais ou vários conceitos abstractos. Daí, o não concordar que a linguagem derive duma reflexão consciente.              

Tuesday, April 15, 2014

Respostas filosóficas para problemas teológicos (II)

“Doutrinas tão básicas do cristianismo como a encarnação, morte, ressurreição e segunda vinda de Cristo dissipam-se numa interpretação existencialista da vida. A interpretação mítica dissolve-se num existencialismo que não deixa quase nada intacto no credo dos apóstolos”

Rudolf Bultmann (1884-1976)‏

Depois de no anterior apontamento termos falado da Trindade e da Transubstanciação, e tal como prometemos, na presente crónica, iremos abordar os dois outros problemas teológicos – segundo o nosso conceito, daí alguma subjectividade –, para os quais procuramos encontrar respostas na Filosofia: Embriologia (aborto) e Ressurreição. Quiçá, temas oportunos, porque vivemos o tempo da Páscoa, festa solene dos Hebreus, celebrada no 14.º dia da Lua de Março, e dos cristãos em memória da ressurreição de Cristo.
Debruçando-nos agora sobre a temática da Embriologia (aborto), e tendo em conta que para Aristóteles os seres animados distinguem-se dos inanimados porque possuem um princípio que lhes confere a vida, e esse princípio é a alma, transmite-nos a “certeza” de que tudo aquilo que está vivo tem alma. Assim, facilmente concluiremos que o sémen não pode estar vivo, mas apenas sob o aspecto potencial: os corpos vivos têm vida, mas não são vida e, portanto, são como um substrato material e potencial de que a alma é forma e acto – citamos Giovanni Reale. Tendo em conta que os fenómenos da vida – tal como pensava Aristóteles – supõem determinadas operações diferenciadas, ou por outras palavras, diríamos constantes e nitidamente diferenciadas, a alma, sendo princípio de vida, “deve ter também capacidades ou funções ou partes que presidem a estas operações e as regulam”. Para o Estagirita, os fenómenos e as funções da vida são: a) de carácter «vegetativo», como o nascimento, a nutrição, o crescimento; b) de carácter «sensitivo motor», como as sensações e o movimento; c) de carácter «intelectivo», como o conhecimento, a deliberação e a eleição, e por estas mesmas razões, Aristóteles introduz a distinção de Alma Vegetativa – a capacidade de tomar o alimento e tornar o alimento em si mesmo; Alma Sensitiva – a capacidade ter sensações e movimento; e, finalmente, Alma Intelectiva – a capacidade de pensar: em relação aquelas faculdades por nós referidas, algumas criaturas animadas […] possuem umas todas elas enquanto que outras, apenas algumas, e finalmente outras ainda, unicamente uma. Estas capacidades […] são respectivamente as faculdades nutritiva, desiderativa, sensitiva, de locomoção e de pensamento – citando Aristóteles, claro. Referindo-se a esta trilogia da alma, o ilustre docente de Filosofia Medieval, José Filipe Pereira da Silva, acaba por fazer transparecer o facto de que há quem defenda que a alma intelectiva é criada por Deus e colocada no ser que está em embrião – 45 dias para o sexo masculino e 90 dias para o sexo feminino –, deixando-se, a partir daí, de falar em embrião e passar-se a denominar de feto, a tal criatura animada antes de sair do ventre da mãe. Daí, nos tempos que correm, assistirmos a preocupações limitativas da prática de “interrupção voluntária de gravidez”. Tudo deriva duma relação das almas numa sucessão ou correlação, e porque não pode haver numa forma substancial várias coisas, ou seja, unicidade e pluralidade das formas.


Outro problema fulcral da filosofia medieval é sem dúvida a Ressurreição, mais um dos dogmas da fé cristã. Sendo que o corpo é corpo por causa da alma e tendo em conta que a alma tem que ser subsistente, mas não substância, Santo Agostinho, por exemplo, afirma que a morte voluntária jamais poderá constituir uma prova de fortaleza de ânimo: todos os que contra si próprios perpetraram este crime, talvez sejam dignos de admiração pela sua fortaleza de ânimo, mas não devem ser louvados pela sanidade da sua razão – citamos Santo Agostinho. Segundo o mesmo teólogo/filósofo, não se poderá chamar fortaleza de ânimo, pois ao entregarem-se à morte, mais não é do que pelo facto de não poderem suportar as contrariedades da vida ou os pecados alheios. Assim, a Ressurreição “empurra-nos”, por um lado, para unicidade: […] Creio no Espírito Santo, na santa Igreja Católica, na comunhão dos santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne, na vida eterna (“Credo: Símbolo dos Apóstolos”); e, por outro, suscita-nos a dúvida até que ponto a “forma intelectiva” – alma separada do corpo – pode reunir-se de novo à matéria desaparecida: comerás o pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de onde foste tirado; porque tu és pó e em pó te hás-de tornar (Gn. 3, 19). Sendo assim, como se pode colmatar a separação do corpo e alma, de modo a juntá-los de novo? Segundo os pluralistas, tem causa na mente divina, o chamado “mínimo de matéria”, que ao nunca ser alterado, permite o «corpo ressuscitado». E quando se fala de fetos abortivos, aqueles que Santo Agostinho afirma que embora aí tenham vivido, morram no útero, embora eu não veja como é que a eles se não estende a ressurreição dos mortos, uma vez que não são excluídos do número dos mortos, apresenta-se-nos a razão causal, ínsita na matéria corporal de cada um, que, parece, de certo modo já se encontra a bem dizer esboçado o que ainda não é, ou antes, o que está latente mas, com o tempo, virá à existência, ou melhor, aparecerá (Agostinho, “A cidade de Deus” 22.13-14). Sem se confundir a «ressurreição cristã» – onde os corpos retomarão, não a sua forma, mas a de corpos gloriosos, doravante imortais – com a «reencarnação» – crença segundo a qual a chamada “alma humana”, passa para outro corpo –, na época medieval, o espectro da «ressurreição» marca a ponte para uma dicotomia, ainda que discutível, entre o sensível e o supra-sensível; o corpóreo e o incorpóreo; a substância e a ultra-substância; a potência e o acto; as funções da alma, etc. No fundo, o sentido da própria existência humana e até que ponto tudo termina aqui, substancialmente.
             E por aqui nos ficamos, no que toca a «Respostas Filosóficas para Problemas Teológicos», dado que eram estes quatro conceitos (Trindade, Transubstanciação, Embriologia [aborto] e Ressurreição) que martirizavam o nosso “parapente” antidogmático!

Friday, April 11, 2014

Júlio Capela expõe nos Antigos Paços do Concelho!...

“(…) As obras de Júlio Capela que mais nos interessam são precisamente aquelas em que o Pintor concilia técnicas mistas ou propostas múltiplas em que os elementos «Hiper-realistas» se associam a uma metafísica de objectos, num quadro intimista de primeiros planos”

António Cardoso

Denominada de «Exposição de Primavera» abriu ao público, no pretérito dia 28 de Março (Sexta-feira), nos baixos dos Antigos Paços do Concelho, em Viana do Castelo, uma exposição de acrílicos e aguarelas do artista plástico Júlio Capela, licenciado em pintura pela Faculdade das Belas Artes do Porto, que tem desenvolvido a sua actividade artística, a par da docência no ensino artístico, em Viana do Castelo e no Porto (de onde é natural), sendo nesta cidade que expõe regularmente. No seu vastíssimo curriculum tem a participação em mais de 50 exposições colectivas e individuais, no país e no estrangeiro, e está representado em várias instituições e colecções particulares, tendo obtido também vários prémios de desenho e pintura.


Esta exposição que conta com a preciosa “logística” do Município de Viana do Castelo e do Centro Cultural do Alto Minho (CCAM), apresenta-se através de uma mostra de vinte e dois quadros, sendo que sete deles são de grande formato: “Porto-Ribeira”; “Duas escarpas” (Porto); “Casario de Gaia”; “Misericórdia de Viana”; “Casario da Ribeira”; “Porto antigo”; “Liberdade”, quadro que, apesar da subjectividade da nossa apreciação estética (a arte pelo gosto, sem pretensiosos eruditismos, sempre com a noção da douta-ignorância), achamos magnífico; “Cúpulas do Porto”; dois quadros “Vacas das Cordas”; sete quadros “Composição-Figuras”; e cinco quadros “Manifestação Popular”, obras avaliadas, preço em catálogo, em cerca de 21 mil euros.

Fazendo fé nas palavras de Francisco de Pablos, da Real Academia de Bellas Artes de Madrid, as quais subscrevemos, “as obras de Júlio Capela que conciliam técnicas mistas e várias propostas denotam uma grande sensibilidade e um lirismo que fazem dele não só um pintor de excelência como um excelente evocador lírico, capaz de manejar o pincel com a precisão de um calígrafo, organizador de manchas coloridas sábias e sentido de composição que o tornam um executor primoroso. É de realçar a sua capacidade de anular o supérfluo e exigir ao espectador que seja participante da emoção contemplativa destas naturezas idealizadas”. Subscrevemos estas palavras, porque já por várias vezes afirmamos que a Arte tem que produzir em nós a útil magia da emoção, sem que para isso – e contrariando a sapiência redutora de alguns pressupostos eruditos de Arte – tenhamos a necessidade de “desfiar rosários” elementares ao conhecimento preconcebido, para usufruirmos da liberdade do “gosto”, da “imaginação” e da “visão”, como corolário da velha máxima: “a verdadeira obra existe na forma de ideias na mente do seu criador, e na mente de quem está a apreciar a obra”. Sentimo-nos nesse direito, porque comungamos da ideia que “uma verdadeira obra de arte é uma actividade total que a pessoa que dela desfruta apreende ou tem dela consciência pelo uso da sua imaginação” – citamos R. G. Collingwood. E esta nossa actividade imaginativa não é somente visual, mas também emotiva, porque percepcionamos, apreendemos e deixamo-nos envolver pela criação do artista. Júlio Capela, através desta magnífica exposição, conseguiu produzir em nós, enquanto observador, o dever de expressar emoções, tal como o artista, tornando-nos assim artistas no decorrer do próprio processo de apreciar a arte. De facto, o valor da arte – citando Collingwood – “tanto para o criador como para os consumidores encontra-se na capacidade para clarificar e individualizar emoções específicas”. No nosso modesto entender, a emoção que o observador sente deve, idealmente, assemelhar-se à do artista.
E porque não se pode inventar aquilo que já foi inventado, terminaremos com as palavras de António Cardoso, aquando de uma exposição de Júlio Capela em Amarante: “Tal como acontece com muitos artistas contemporâneos, Capela trabalha também por séries, em diferentes tempos psicológicos, e penso que é nessa perspectiva que devem ser entendidas as suas aguarelas, que nos apresenta, com atmosferas, transparências e texturas bem interessantes”.
Esta «Exposição de Primavera» de Júlio Capela, que se recomenda (uma visita obrigatória), estará patente ao público até ao dia 20 de Abril. Na senda do nosso “colega” Lou Marinoff que nos sugere “Mais Platão, Menos Prozac”, e sem usurparmos os direitos de autor, diremos “Mais Arte, Menos Prozac”, porque também faz bem à Saúde… A consciência da criação.       
        Gostamos, e isso nos basta!

Tuesday, April 08, 2014

Respostas filosóficas para problemas teológicos (I)

“Embora a palavra Trindade não seja encontrada na Bíblia (nem a palavra encarnação), o ensinamento que ela descreve é encontrado ali. A doutrina da Trindade estabelece o conceito de que há três Seres plenamente divinos: Pai, Filho e Espírito Santo, que formam um Deus. Por sua vez, Ellen White usa o termo “Divindade” que é encontrado em Romanos 1:20 e Colossenses 2:9. Através dessa palavra ela transmite a mesma ideia contida no termo Trindade, ou seja, há três Seres viventes na Divindade…”

Gerhard Pfandl

Quando frequentávamos o Curso de Teologia (ICVC) – do qual haveríamos de desistir, face à nossa incompatibilidade com os dogmas – quatro conceitos metralhavam a nossa mente e eram fonte de alguma dicotómica irritabilidade docente/discente: Trindade, Transubstanciação, Embriologia (aborto) e Ressurreição. Daí, a Filosofia ter sido a nossa nova porta de entrada, sendo que aí a “discussão” pressupunha uma discorrência lógica, precisamente pelo facto dos temas se interligarem, abrindo, ao mesmo tempo, perspectivas de uma correlação teológica/filosófica. Foi no âmbito do aprofundamento das temáticas curriculares leccionadas nas disciplinas ao longo dos anos lectivos do Curso de Filosofia (UM), que José Filipe Pereira da Silva, docente de Filosofia Medieval, foi o convidado de um dos seminários, trazendo-nos à discussão – e/ou debate – um interessante tema que, muitas vezes, se torna oportuno no tempo presente: «Respostas filosóficas para problemas teológicos». E diremos interessante dado que, sem dissimulações e pautando-se por uma “clarividência objectiva”, pondo em realce esses quatro pontos teológicos, mas vistos aos “olhos” da filosofia.
Ao falarmos de Trindade, por exemplo, começaremos pelo conceito aristotélico de substância, cujo sentido lhe vem da forma, sendo que a forma é, por sua vez, a natureza íntima das coisas. Sendo assim, para o mesmo filósofo, a forma ou essência do homem é a sua alma, enquanto no animal a forma ou essência é a alma sensitiva, e a da planta é a alma vegetativa: Substância é: a) o que «não é inerente a outro nem dele se predica», e portanto é objecto de inerência e predicação; b) o que «pode substituir por si» ou «separadamente» do resto, ou seja, independentemente; c) o que é «algo determinado» (e não um universal abstracto), um «tóde ti»; d) o que tem uma «unidade intrínseca» e não é um mero agregado de partes organizadas; e) o que é «acto» ou «está em acto» – e não puramente em potência.
Perante tal postulado, como se pode chegar ao conceito teológico de Trindade, como três pessoas distintas (Pai, Filho e Espírito Santo), mas consubstanciais numa só natureza? Dirão os mais afoitos aristotélicos que se pode chegar a esta (una) trindade através de uma das suas categorias, aquela que Aristóteles denominou de “relação”. Por outro lado, ao colocarmos neste dogmático conceito da Trindade uma nova teorização de substância, sendo que passamos a denominá-la de “ultra-substância” (não podemos predicar), formula-se assim os esforços da teologia para chegar à “revelação” acerca do Deus único e da divindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo que, segundo Prof. Doutor Roque Cabral, tiveram grande influência na história do pensamento europeu, levando à elaboração de não poucos conceitos, nomeadamente os de hipóstase, pessoa, essência, processão e relação. Claramente diferente deste conceito trinitário unificador, é o conceito de triteísmo que sustenta que em Deus, não há só três pessoas, mas também três essências, três substâncias e três deuses, ou seja, que equivale a um monoteísmo trifórmico.


Em consonância com o que acima referimos passamos à Transubstanciação. Tendo em conta que para Aristóteles a substância é em certo sentido a forma (eidos, morphé) – significa o que uma coisa é ela mesma –, outro problema se coloca quando falamos de transubstanciação, aquilo que para os cristãos, na eucaristia, é a mudança da substância do pão na substância do corpo e do vinho no sangue de Jesus Cristo. No fundo, aquilo que se procura explicar é a existência de uma transformação da substância, mas não dos acidentes (perceptíveis aos sentidos), ou seja, o sabor, a textura, a forma, a cor, o odor, etc. – aquilo a que podemos denominar, também, de aparências – permanecem, mas já não são mais pão e vinho porque assumem a transubstanciação de serem corpo e sangue, respectivamente. Por isso, para os cristãos, por meio da transubstanciação Cristo está na “realidade”, verdadeira e substancialmente presente sob as aparências remanescentes do pão e do vinho. Segundo as grandes linhas filosóficas/dogmáticas da Igreja Católica Apostólica Romana, a transformação permanece pelo tempo em que as aparências (acidentes) remanesceram. Mesmo para aqueles que, à luz da interpretação “filosófica”, emprestam à Eucaristia um certo canibalismo (referido no mesmo seminário, por interposição de um outro docente da mesma universidade) e/ou a “confusa” consideração que a presença de Cristo na Eucaristia é meramente figurativa (hipótese que nós mesmo chegamos a levantar) – dois erros em que mormente se pode ocorrer –, o conceito de transubstanciação é, neste caso, e em contraposição aos possíveis erros de interpretação, acompanhado pela distinção unambígua entre substância, ou realidade subjacente, e acidente, ou perceptível pela aparência. Segundo o Professor José Filipe Silva, a mudança da substância (com a sua forma, qualidade, quantidade, etc.) para o corpo e sangue de Cristo, continua a ser substância, mas sem acidentes, uma vez que os acidentes não existem por si. Desta forma, o corpo de Cristo tem que estar todo em qualquer pedaço de uma hóstia, depois de consagrada, altura em que se dá a transubstanciação. Mesmo quando partida será indivisível!  
         Segundo a nossa opinião, os temas em debate – Trindade e transubstanciação –, pelas suas correlações situam-se na fronteira entre a problemática da filosofia da linguagem e a filosofia do conhecimento. Apesar do seu pendor teológico, ainda hoje se procurar descortinar até onde vão os limites da vida e se de facto existe uma alma subsistente ao corpo, que justifique o sentido da própria vida, ou seja, quando nos afirmamos pelas causas da mente divina ou, simplesmente, das “verdades” da natureza humana. Na próxima crónica, abordaremos a embriologia (aborto) e a ressurreição.

Friday, April 04, 2014

Projecto “Rio Neiva: rodas d’água e agro-sistema tradicional” publicado em livro!...

“O rio corre sereno ou impetuoso, levando as águas de volta ao mar. Ao vê-lo, os olhos não tem a exacta noção do seu percurso, da sua vida, da sua história e dos muitos segredos que as suas águas transportam desde que brotam dos altos até que fluem na imensidão do oceano…”

Rogério Barreto

«Rio Neiva: rodas d’água e agro-sistema tradicional» é o título de uma extraordinária obra, diríamos de grande fôlego, publicada pela Junta de Freguesia de Barroselas, através de um projecto de A Mó – Associação do Vale do Neiva, na vigente presidência autárquica de Vasco Lima. Embora tenha sido publicado em Setembro de 2013, só agora é que nos foi possível agradecer a gentil oferta do bom amigo Rogério Barreto, através da presente crónica, em jeito de recensão.
Como bem diz José Miranda, actual Presidente da Direcção de A Mó – Associação do Vale do Neiva, tudo começou em 1985, quando Manuel Delfim (1944-2002), Raimundo Castro, Rogério Barreto e Olindo Maciel deram os primeiros passos na defesa da cultura e do património do Vale do Neiva: “No tocante ao património construído, este grupo iniciou um trabalho pioneiro de recolha da muita informação relativa aos sistemas hidráulicos do rio Neiva, que estava em risco de se perder, quando estas velhas estruturas começaram a ser abandonadas – azenhas, engenhos de serração, engenhos do linho, e lagares de azeite. Reunindo vasta documentação de praticamente todas as construções, através de um meticuloso trabalho de campo, com registos fotográficos, levantamentos e esboços, descrição dos sistemas e engrenagem motora e sua localização, a par da análise de manuscritos” – citamos José Miranda –, de que resultou, passadas cerca de três décadas, a publicação deste oportuno livro, cujos primeiros registos haviam sido publicados nas páginas do Jornal «O Vale do Neiva», publicação da mesma Associação.


Se não fosse o facto de termos que falar dos autores deste magnífico – com os devidos pedidos de desculpa pela múltipla adjectivação, porque merecida – livro, quase que poderíamos ficar por aqui. Contudo, se o fizéssemos cometeríamos uma grave lacuna, já que o conteúdo jamais se poderá desassociar dos seus progenitores e/ou produtores. São eles: Rogério Ramiro da Silva Barreto nasceu em Barroselas, em 9 de Outubro de 1961. Professor do Ensino Básico e Secundário, é licenciado em Geografia e Mestre em Planeamento Urbano e Regional pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde realiza actualmente doutoramento em Geografia Humana. É membro investigador do CeGot (Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território), das universidades do Porto, Coimbra e Minho. Foi co-fundador da associação «A MÓ», da qual foi presidente e director do jornal «O Vale do Neiva», de Barroselas e da associação vianense «Amigos do Mar». Desempenhou, no mandato 2002-2005, o cargo de vereador na Câmara Municipal de Viana do Castelo, e o cargo de Presidente da Junta de Freguesia de Barroselas, no mandato 2005-2009. Tem produzido trabalhos na sua área de investigação e também sobre o Vale do Neiva, publicados em revistas e livros temáticos; Manuel Raimundo Alves de Castro nasceu em Barroselas, em 23 de Janeiro de 1959. Desde jovem dedicou-se ao associativismo, tendo começado a sua participação cívica no Grupo S. Paulo da Cruz, em Barroselas. Dedicado à defesa do ambiente, esteve ligado à criação de associações vocacionadas para a intervenção nesta área, como é o caso de «A MÓ», «Aventura da Saúde», «Amigos do Mar», «Crepúsculos» e «Padela Natural – Associação Promotora», onde desenvolve actividades no âmbito da protecção da floresta. Tem-se dedicado à catalogação das diversas espécies micológicas (cogumelos) e da flora do Vale do Neiva e à organização do respectivo inventário fotográfico; José Manuel Gonçalves Oliveira nasceu em Barroselas, em 25 de Março de 1955. Frequentou o ensino primário até à 6.ª classe e depois a então Telescola (ciclo preparatório) nos Missionários Passionistas de Barroselas, de onde transitou para a Escola Industrial e Comercial de Viana do Castelo, onde conclui o Curso Geral de Administração e Comércio, prosseguindo os estudos na Escola Técnica Alberto Sampaio, em Braga, onde, em 1975, concluiu o Curso Complementar de Contabilidade e Administração. Na sua juventude, foi membro dos Escuteiros de Barroselas, a par da prática desportiva que desenvolveu no então Sião Futebol Clube, de Barroselas, e no emblemático Neves Futebol Clube. Foi co-fundador da «Associação Desportiva de Barroselas», de «A MÓ» e da associação ambientalista «Crepúsculos», todas de Barroselas. Cidadão empenhado na defesa dos valores da natureza, tem pugnado pela preservação dos espaços naturais, dedicando, especialmente, ao rio Neiva, muito das suas energias, traduzidas nos preciosos contributos com que enriqueceu este trabalho; e, finalmente, Manuel Delfim da Silva Pereira (1944-2002), de grata memória para todos nós e de quem já falamos noutras publicações, que foi o impulsionador do trabalho de inventariação dos engenhos do rio Neiva, apresentado nesta mesma obra. Para além de estar na génese do estudo da cultura popular, sobretudo pelo património construído e particularmente o referente ao rio Neiva e ainda pelo património imaterial das gentes do Neiva, do qual recolheu centenas de espécimes dos cantares tradicionais, sendo que este seu gosto particular e empenhado entusiasmo na defesa dos valores tradicionais do Vale do Neiva, ditaram o seu contributo para a fundação de colectividades vocacionadas para a intervenção cultural, de que são exemplo o «Grupo das Cantadeiras do Vale do Neiva», o jornal «O Vale do Neiva» e a associação «A MÓ», a sua participação cívica estendeu-se também aos órgãos da gestão colectiva, tendo exercido mandatos na Assembleia de Freguesia de Barroselas e na Assembleia Municipal de Viana do Castelo.
Para finalizar, e denunciando o alto valor estético desta magnífica obra (proficuamente ilustrado – fotografias de Raimundo Castro, Manuel Delfim Pereira, Rogério Barreto, Jorge Silva, Olindo Maciel e Jaime Pereira – e de capa dura), teremos em dizer que a mesma está divida em três partes (ou capítulos, como se queira entender): 1 – Enquadramentos geográfico e administrativo, geológico, geomorfológico, hidrografia e recursos hídricos, clima, flora, fauna e ocupação humana; 2 – Engenhos, mecanismos e sistemas hidráulicos do rio Neiva, perpassando pela moagem, sistemas e mecanismos; 3 – Engenhos hidráulicos do rio Neiva, com uma perspectiva histórica do rio nas Memórias Paroquiais de 1758, seguida de uma minuciosa inventariação de 177 engenhos hidráulicos. O grande rigor científico fica bem patente através de um bem elaborado glossário e da citação de mais de seis dezenas de fontes bibliográficas.

Parabéns à Junta de Freguesia de Barroselas (hoje em união com Carvoeiro), aos seus autores e à associação «A MÓ». Leitura que se recomenda. Nota máxima!  

A essência das religiões em Mircea Eliade

“O que caracteriza as sociedades tradicionais, é a oposição que elas subentendem entre o seu território habitado – e o espaço desconhecido e indeterminado que o cerca…”

Mircea Eliade

Mircea Eliade, historiador das religiões e escritor romeno [N. Bucareste, 1907 – m. Chicago, 1986], autor do livro «O Sagrado e o Profano: a essência das religiões», obra que se tornou fundamental para o estudo do comportamento geral do homem e imprescindível para a antropologia filosófica, a fenomenologia e a psicologia, ocupa-se, nos seus estudos, sobre o fenómeno capital “que é o da forma como o homem religioso se esforça por manter o máximo de tempo possível num Universo sagrado e, por conseguinte, como é que se apresenta a sua experiência total de vida em relação à experiência do homem privado de sentimento religioso, do homem que vive, ou deseja viver num mundo dessacralizado” (cit. sinopse da contracapa). Por isso, mais do que os seus romances, dos quais destacamos A Noite Bengali (1933); O Bosque Proibido (1963); O Velho e o Oficial (1968), seriam os ensaios – como Tratado de História das Religiões: o Mito do Eterno Retorno (1949); Aspectos do Mito (1963); e, História das Crenças e das Ideias Religiosas (1976-1983), em três volumes – que o viriam a tornar mundialmente famoso.
Tomando como referência o livro de Rudolf Otto «Das Heilige» (1917), Mircea Eliade, em vez de procurar estudar as ideias de Deus e de religião, aplica-se na análise das modalidades da experiência religiosa, de forma que – tal como Rudolf Otto –, negligenciando o lado racional e especulativo da religião, consiga esclarecer o conteúdo e os caracteres específicos dessa mesma experiência. Mircea Eliade, afirma a dado momento que Rudolf Otto, ao negligenciar o lado racional e especulativo da religião, encontrando-se sobretudo no seu lado irracional, conseguiu esclarecer, precisamente, o conteúdo e os caracteres específicos da supracitada experiência religiosa. A leitura de Lutero levou a que Rudolf Otto viesse a compreender o que era para um crente o «Deus vivo»: “Não era o Deus dos filósofos, o Deus de Erasmo, por exemplo; não era uma ideia, uma noção abstracta, uma simples alegoria moral. Era, pelo contrário, um poder terrível, manifestada na «cólera» divina”. Não é por acaso que Ludwig Feuerbach (1804-1872), face à sua inicial educação através da teologia protestante, na sua obra de referência – A essência do cristianismo –, quando se referia aos predicados que não são representações nem imagens que o homem faz de Deus, mas verdades, coisas, realidades, ou seja, determinações que exprimem a existência de Deus, imprimiria à religião essencialmente a emoção, sendo que esta é necessariamente de essência divina. Para ele, mesmo a cólera é aceite como divina, desde que na base da mesma se encontre um fim religioso. Isso mesmo se pode constatar em determinadas passagens das Sagradas Escrituras: Assim, pois, como o joio é colhido e queimado no fogo, assim será no fim do mundo: O Filho do Homem enviará os Seus anjos que hão-de tirar do Seu reino todos os escandalosos e todos quantos praticam a iniquidade, e lançá-los-ão na fornalha ardente; ali haverá choro e ranger de dentes (Mt. 13, 40-42).


Mircea Eliade alerta-nos para o facto de Rudolf Otto se esforçar por clarificar os caracteres específicos dessa cólera aceite como divina, a que ele chama de experiência terrífica e irracional, cujo reflexo se encontra, precisamente, no “sentimento de pavor diante do sagrado, diante deste mysterium tremendum, diante desta majestas que exala uma superioridade esmagadora do poder; encontra o temor religioso diante do mysterium fascinans, onde se expande a perfeita plenitude do ser”. Todas estas experiências são designadas por Rudolf Otto como numinosas, porque provocadas pela “revelação de um aspecto do poder divino”. Por outras palavras, e parafraseando o Professor Manuel Gama, hoje catedrático na Universidade do Minho, “o numinoso é o totalmente outro que se apresenta ao homem como máxima realidade e supremo valor que exige dele uma resposta a nível pessoal”. Na experiência religiosa o carácter pessoal do numinoso revela-se não pela atitude religiosa, mas pelo determinismo dessa mesma atitude. Daí, Mircea Eliade afirmar que o numinoso não se assemelha a nada de humano ou cósmico, sendo que o homem tem um sentimento profundo da sua própria nulidade, que o mesmo será dizer «não ser mais do que uma criatura» e de que é exemplo a forma como Abraão se dirigiu ao seu Senhor: Pois que me atrevi a falar ao Senhor, eu que sou apenas cinza e pó (Gn. 18, 27).
Para este historiador das religiões e escritor romeno, inspirando-se em Rudolf Otto, o sagrado manifesta-se sempre como uma realidade diferente das realidades naturais, embora a linguagem exprima – segundo ele, ingenuamente – o tremendo, o misterioso ou mesmo o fascinante, mediante termos tomados de empréstimo ao domínio natural ou à vida profana do homem. Contudo, e ainda segundo o mesmo escritor romeno, esta terminologia analógica é devida justamente à incapacidade humana de exprimir aquilo a que ele denomina de ganz andere: “a linguagem apenas pode sugerir tudo o que ultrapassa a experiência natural do homem mediante termos tirados desta mesma experiência natural”.
Mircea Eliade propõe-se assim “apresentar o fenómeno do sagrado em toda a sua complexidade, e não apenas no que ele comporta de irracional”. Para ele, o importante é o sagrado na sua totalidade e não a relação entre os elementos não-racional e racional da religião. Para que haja conhecimento do sagrado, o mesmo tem que se manifestar.
É desta forma que Mircea Eliade nos indica o acto da manifestação do sagrado, propondo-nos o termo hierofania. Para o mesmo escritor, este termo, por não implicar qualquer precisão suplementar: “exprime apenas o que está implicado no seu conteúdo etimológico, a saber, que algo de sagrado se nos mostra”. E todas as histórias das religiões, de uma forma ou de outra, tendo em conta as manifestações das realidades sagradas, estão recheadas de um número considerável de hierofanias, ou seja, manifestações do sagrado tornando uma simples forma profana, em sagrada, que podem vir de diversas origens, desde pedras até imagens, profetas e espaços. Por exemplo, uma determinada árvore para um indivíduo pode ser sagrada, já que algum facto levou essa pessoa a determinar a sua opinião, mas para outros a árvore poderá ser uma simples forma profana.

Tal como acontece com Rudolf Otto, Mircea Eliade, em vez de procurar estudar as ideias de Deus e de religião, aplica-se na análise das modalidades da experiência religiosa, de forma que, negligenciando o lado racional e especulativo da religião, consiga esclarecer o conteúdo e os caracteres específicos dessa mesma experiência. E essa é uma excelente contribuição para o esclarecimento e discussão de alguns problemas fundamentais para a compreensão de conceitos básicos da cultura.