Sunday, February 28, 2016

106 ANOS DEPOIS: O drama dos cardeais permanece…

«O homem nunca poderá vir a ultrapassara sua “verdadeira essência”. Bem pode imaginar, por meio da fantasia, indivíduos de uma outra espécie supostamente superior, mas nunca poderá abstrair do seu género, da sua essência…»

Ludwig Feuerbach

Tal como escrevemos há oito anos, por altura no 98.º Aniversário do jornal CARDEAL SARAIVA, e por acharmos que as anacrónicas circunstâncias em nada mudaram ao longo deste oito anos – com passagem pelo centenário em 2010 –, voltaremos a repetirmo-nos pela afirmação de que, inevitavelmente, o homem é o responsável pelas transformações físicas dos espaços onde gravita; onde mastiga e dejecta – “defeca”, para os mais desprevenidos, morfologicamente –; onde se relaciona ou hostiliza, cuspindo, circunstancialmente, no prato que outrora tenha comido; onde se masturba ao sabor das preeminentes necessidades; onde faz amigos e os mastiga como pastilhas elásticas (saborosas, enquanto detentoras da goma “melificada”); onde avança e recua, em moldadas projecções do homem pelo homem; onde, ilusoriamente, pensa eternizar-se em “poderes” efémeros, cintados por espartilhos revestidos a chita (ordinário tecido, apenas aureolado pelas cores); onde se banqueteia, chafurdando no seu próprio lameiro. Contudo, homens há que, por se não deixarem ludibriar, são grandes no seu tempo e, intelectualmente, eternos na sua essência. Os seus nomes permanecem no tempo – e para lá do tempo –, pelos seus pensamentos, verticalidade de carácter e, sobretudo, subtileza, essa sublime finura que só se consegue através de muita humildade e respeito pelos outros. Será o eterno confronto entre o heroísmo de uns e a cobardia de outros; entre a vassalagem viscosa de muitos e a fidelidade transparente de uns poucos.
     

Vem isto a propósito – neste dia de aniversário (seis depois do centenário) –, da necessidade de nos “colarmos” à figura de D. Francisco Saraiva [N. Ponte de Lima, 1766 – m. Lisboa, 1845], insigne limiano tão ostracizado pelo poder local e não só, um dos pais da Constituição Liberal de 1820, reitor da Universidade de Coimbra (1821), guarda-mor da Torre do Tombo, conselheiro de Estado, presidente das cortes, ministro e secretário de Estado, Cardeal-patriarca de Lisboa, para acendermos as cento e seis velas do jornal CARDEAL SARAIVA. Esta figura ímpar da cultura limiana é o patrono do centenário órgão de informação regional, cujo passado se reveste de um ideal de luta pelos mais amplos direitos e liberdades das gentes do Alto Minho. Só por isso – e mesmo que haja gente que tem medo da sua própria sombra, que tema quem pensa pela sua própria cabeça e/ou se dê ao trabalho de ouvir as vozes dos amordaçados –, vale a pena desempoeirar as arrelias de circunstância e pensar que o homem é circunstância da sua própria existência. Só se eternizarão aqueles que cultivarem a verticalidade de carácter, de que são exemplo, entre outros, os nossos Cardeal Saraiva, António Feijó, Norton de Matos, Júlio de Lemos, Teófilo Carneiro, António Ferreira, Domingos Tarrozo, Conde d’Aurora, Aníbal Marinho, Augusto Castro Sousa, entre outros, o que seria fastidioso aqui enumerar.
      Neste dia de aniversário, aqui vai um abraço do tamanho do mundo a todos aqueles que continuam a ler, a laborar e/ou a elaborar o jornal CARDEAL SARAIVA. Mesmo com todos os obstáculos ou contratempos, vale a pena acreditar nas causas da liberdade, da democracia, da verdadeira essência humana. Ainda que permaneça o drama dos cardeais!...

Wednesday, February 10, 2016

Professor Doutor Manuel Curado (Universidade do Minho) apresentou «Baliza Trágica de um Naufrágio»

APRESENTAÇÃO DA OBRA
BALIZA TRÁGICA DE UM NAUFRÁGIO, DE MIRANDA REBÔLO
(Braga, Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, 30 de Janeiro de 2016, 15h30)

Ex.ma senhora Directora da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva
Dr.ª Aida Alves
Ex.mo autor Miranda Rebôlo
Querido amigo Porfírio Pereira da Silva

Estimadas amigas e estimados amigos

Acordamos todas as manhãs e, abrindo a janela, procuramos os sinais do dia que nos espera. Indirectamente, temos necessidade de saber o que está guardado para nós. Hoje é o dia 30 de Janeiro, e os poderes que regem este mundo, entenderam por bem dar-me a grata tarefa de dizer umas palavras sobre um livro. Esses poderes ainda não me juntaram a outras milhões de coisas que poderiam acontecer, ainda não me juntaram, por exemplo, a um convite para ser recebido por Sua Santidade, o Papa Francisco, nem para dar um salto à distante América para cumprimentar o já histórico Presidente cessante. Tantas coisas poderiam acontecer. O bom destino que vela por nós, nos seus desígnios insondáveis, entendeu que é o que deve ser que nos encontremos para falar sobre um assunto muito estranho, um livro.


De facto, é estranho porque, quando falamos de livros, nunca falamos de assuntos importantes sobre esses livros. Ainda na última quinta-feira, fui entrevistado para uma revista local a propósito do encerramento de uma loja alfarrabista de Braga. A amável jornalista, que recolheu o meu testemunho de cliente habitual da casa, quis saber o que me atrai ao mercado do livro velho. O que lhe disse então é também o que me atrai à maternidade dos livros novos, como as cerimónias de lançamento, ou as editoras, ou as vésperas dos livros, quando eles ainda não existem e só estão a começar a nascer devido a uma conversa ou devido a uma ideia que surgiu de repente. Tantos pilares tem a casa de um livro! O pilar da arte do tipógrafo, o pilar da perícia do encadernador, o pilar do papel que se irá encontrar com os nossos dedos, o pilar do cheiro do livro novo e do perfume hipnótico do livro velho… A encimar todos estes pilares está um céu sempre difícil de abarcar, o céu do significado, o céu estranho que não se confunde com as próprias palavras em que o livro está escrito, o céu dos sentidos de que nunca somos donos verdadeiros, o céu Daquilo Que O Escritor Nos Quis Dizer.


30 de Janeiro é, pois, o palco para celebrarmos o nascimento de um bebé de cultura que irá certamente ter uma vida mais longa do que qualquer um de nós, e até uma vida mais longa do que a soma de todas as nossas idades nesta altura da vida, e mais longa do que a soma, impossível de fazer neste momento, de todos os anos que teremos para viver. Os livros são uma das formas conhecidas de imortalidade possível que parece estar ao nosso alcance. Nós não atravessaremos os séculos, mas o livro enigmático de Miranda Rebôlo, sim, poderá ou não atravessar os séculos; se o conseguir, dará a alguém do futuro uma imagem de como é viver em Portugal no início do século XXI.
O dia 30 de Janeiro já viu nascer muitas coisas grandes e pequenas, boas, más e terríveis para além da imaginação: a morte de Damião de Góis, o grande humanista português; a assinatura do Tratado de Paz de Vestefália, na cidade de Münster; o assassinato de Mahatma Gandhi por um extremista hindu; o último concerto dos Beatles antes de se separarem; o nascimento de duas escritoras portuguesas, Teolinda Gersão e Maria Filomena Mónica, e do grande actor norte-americano Gene Hackman.


É, pois, neste palco do tempo e nesta cidade mais velha do que o país que todos constituímos, para mim uma alegria muito grande ter a honra de dizer umas palavras públicas sobre um livro que antes de o lermos já nos está a ler a nós.
Já tinha tido anteriormente oportunidade de fazer a apresentação de um outro livro de Porfírio Pereira da Silva, com o título Agramonte, num sábado maravilhoso e cheio de sol na bonita Biblioteca Municipal de Viana do Castelo, em Abril de 2012. Pouco mais de um ano depois, no Verão de 2013, fiz o elogio público da obra cultural vasta do Porfírio, assinalando os seus trinta anos de actividade literária.


Tenho, como se vê, alguma informação sobre as inclinações do nosso escritor. Não posso dizer que conheça o seu coração generoso, tão vasto ele é. Em Agosto de 2013 poderia ter tido, a quem quer que mo perguntasse, que não me surpreenderia o próximo romance do Porfírio Pereira da Silva. Como tontos simplórios, julgamos sempre esgotar um assunto a partir de uma amostra desse assunto. Não poderia estar mais errado se dissesse essas palavras nesse dia de Verão. Assim como o romance Agramonte me surpreendeu em relação aos anteriores livros, assim também o presente Baliza Trágica de um Naufrágio me causa surpresa em relação aos mais de dez livros do Porfírio e aos mais de setecentos artigos que saíram da sua pena. Eu não estava à espera deste objecto literário. Confesso a todos, em público, que ainda me sinto um pouco abalado com a sua leitura.


De que é que se trata neste romance? Não terei eu esgotado tudo o que há a dizer quando deixei cair a palavra auto-explicativa de ‘romance’? Ouvindo isto, qualquer pessoa pensará imediatamente numa narrativa imaginada sem ligação com a grande realidade das coisas, tendo apenas um fio fino a prendê-la à parte pequena do mundo, os nossos desejos. Vendo de imediato as epígrafes de toda a obra, encontramos os nomes pouco literários, que empobrecendo a nossa imaginação também empobreceram um bocadinho as nossas vidas, de Martin Schulz, do Parlamento Europeu, do Presidente Aníbal Cavaco Silva, de Carlos Costa, Governador do Banco de Portugal, do ex-primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, e de figuras internacionais como o ex-ministro das finanças grego, Yanis Varoufakis, e do presidente americano Barack Obama. Esta primeira página é o modelo de todas as outras trezentas e cinquenta que se seguem. O romance é um imenso livro de recortes de notícias de jornal, de programas televisivos, de colóquios culturais que aconteceram recentemente e de apontamentos de aulas universitárias. Figuras públicas, instituições, empresas, apresentadores de programas de televisão, autores internacionais, particulares com quem se cruzou o autor, tudo isto povoa as páginas desta Baliza Trágica.


Este estranho livro de recortes procura fixar uma realidade muito rápida de eventos e de notícias em avalanche constante. Temendo perder a sua identidade nessa avalanche, Gaspar, o alter ego de Miranda Rebôlo que é o alter ego de Porfírio Pereira da Silva, tenta o gesto impossível de tentar agarrar o que acontece nos dias que tem de viver.
Não sentimos a urgência de nós próprios fazermos o nosso livro de recortes ou algum equivalente seu, como a velha arte do diário íntimo e da análise de consciência ao final de cada dia, com tradição multissecular com provável origem pitagórica e, mais tarde, estóica, porque tudo na nossa vida gira em torno de uma ficção simpática, a ficção de que somos uma pessoa autónoma que vive no palco do mundo. Nós estamos aqui, o mundo está ali. Para chegarmos ao coração deste romance temos de imaginar o que seria se andássemos, desde que acordamos até que nos deitamos, com um gravador ou uma câmara fotográfica a fazer registos constantes do que nos chega aos ouvidos e aos olhos. Se tivéssemos esse registo para compensar a fragilidade da nossa atenção e da nossa memória, veríamos que muitos textos entram no fluxo da nossa consciência. É difícil imaginar que temos algo mais íntimo do que aquela voz que nos acompanha o dia todo, e que na falta de melhor rótulo designamos como a Voz da Consciência, ou o nosso eu. Este romance minhoto dá-nos um raio X complicado para a nossa auto-estima. Esse raio X é o de que talvez já não tenhamos nenhuma voz pessoal a falar na nossa consciência. Quem fala, então? Quem fala são os discursos públicos. Aliás, poderíamos fazer um teste. Neste sábado, que tipo de palavras secretas nos foi acompanhando ao longo do dia? A ideia de Miranda Rebôlo é a de que as manchetes de jornais que vimos nos quiosques, as notícias de televisão e a pequena infinidade de outras fontes discursivas vão construindo uma narrativa compósita. O conceito parece ser este: cada um vive numa realidade construída em grande medida por discursos públicos. A matéria-prima da vida humana parece ser derivada da palavra.


Miranda Rebôlo sabe perfeitamente que a facilidade com que a palavra constrói realidades paga-se a um preço muito elevado. Pode acontecer que, ao lado dos discursos intocáveis que formam o carácter, derivados da grande literatura, dos gestos e cuidados das pessoas que se preocupam connosco, e das grandes narrativas religiosas, estejam discursos arregimentados ao serviço de tiranos, tiranetes e tiraninhos, de grandes e de pequenos interesses particulares. Miranda Rebôlo sofre por não ser capaz de separar uns dos outros, e, por isso, cola os discursos no seu livro de recortes. Eis um exemplo das muitas dezenas com que este livro é construído:
«Enquanto lanchava a sua habitual sanduíche de fiambre … acompanhada pelo não menos habitual sumo de manga, passava na televisão … o ecléctico Vice-presidente da Câmara do Porto que tivera a coragem de assumir o degelo das consciências: O Urbanismo é na maioria das câmaras, a forma encapotada e sub-reptícia de transferir bens públicos para a mão de privados. A palavra para isto é ‘roubo’. É a subversão da democracia


Centenas de discursos como este vão-nos entrando pelos ouvidos ao longo do dia, ao longo da vida. Já ninguém se lembra do que ouviu ontem ou na semana passada, tal o ritmo com que somos bombardeados a toda a hora. Miranda Rebôlo não se conforma com o olvido; teme perder o sentido do real e a sua identidade. Corre, pois, a fixar no seu vasto álbum de recortes o discurso que, tendo entrado no abraço da sua atenção, por momentos foi parte de si. Esta é uma homenagem que o escritor faz às palavras públicas que, como células do corpo, são a células da nossa alma.


Como é evidente, teríamos que perguntar se esse livro de recortes de palavras que chegam aos nossos ouvidos nos dá a verdadeira realidade. Miranda Rebôlo não é atormentado por esta pergunta irritante. Afinal, se os livros de recortes da nossa vida podem ser tão diversificados quanto os discursos que povoam as horas e os minutos que temos para viver, poder-se-ia perguntar se os livros de recortes de cada um de nós são os livros certos, ou se, para grande desgraça nossa, passa-se algo de fundamentalmente errado com os nossos recortes. Miranda Rebôlo diria que isso é uma preocupação inútil, a procura de uma realidade em que nunca teremos os pés. É nesta realidade que vivemos, com estas ruas, com estas paredes, com estas pessoas, com estes protagonistas da cena pública. O combate que devemos travar não é o de ingenuamente procurarmos o livro de recortes que tenha os recortes certos para uma vida feliz; o combate principal para este autor é o que se trava contra o ácido que tudo corrói do esquecimento.


Este romance ocupa-se de um dos traços mais notáveis da cultura portuguesa desde o século XIX, o século do Mapa Cor-de-Rosa e do Ultimato Inglês. Esse traço é a obsessiva reflexão sobre a vida portuguesa, algo que poderíamos descrever como o ensimesmamento narcísico da vida do nosso país. Relembrando os dois mitos que, segundo António José Saraiva, estruturam a cultura portuguesa, o Mito da Cruzada e o Mito da Decadência, durante os muitos e dolorosos anos recentes em que vivemos sob este Mito da Decadência parece que só interessa aos Portugueses o seu próprio espelho. Diz o narrador a certa altura, «os três amigos sentiam-se indignados pelo estado desmoralizante em que tinha caído este país de brandos costumes, cujos governantes e uma grande parte dos políticos procuravam atenuar imagens e incapacidades, com a crise mundial».


Quem são os nossos cicerones por esta viagem à realidade portuguesa? Temos Gaspar da Rocha Malheiro, formado em leis; Edmundo Azevedo da Silva, já nosso conhecido dos romances Ermida e Agramonte, figura com inclinações filosóficas; a companheira de Gaspar, de nome Maria Pereira; a companheira de Edmundo, de nome Anne Ellington. A apimentar com pulsão de vida existências esmagadas por recortes que não conduzem à felicidade de ninguém, surge «a esbelta, trintona, pele cor de chocolate com leite, de lábios carnudos e pernas roliças», de nome Ana Paula. Só a energia do amor parece conseguir atenuar a falta de rumo que os protagonistas deste romance parecem sofrer. Gaspar, em especial, não sendo um símbolo do Portugal dos nossos dias, porque luta pela memória e pela compreensão do sentido último dos eventos, sofre da falta de criatividade que, por contágio, vem de fora. Tem uma «insatisfação pela frustração de nada o motivar ou inspirar à criatividade literária». É curiosa a maleita, e é ainda mais curiosa a panaceia que sempre escapa. A matriz deriva do Portugal oitocentista em que, à falta de novas descobertas nas Índias e Brasis, o português aspirava a uma redenção literária. Uma frase como «insatisfação pela frustração de nada o motivar ou inspirar à criatividade empresarial, ou técnica, ou militar, ou agrícola» nunca poderia ser escrita e apreciada no tempo de Camilo, ou de Eça de Queirós. Miranda Rebôlo, em linha com a cultura portuguesa da Geração de 70, muito literária e culturalmente bem formada, aspira a uma salvação literária e culturalista. Também neste sentido, o romance Baliza Trágica de um Naufrágio é um símbolo da nossa época. Se se reparar nos rios de dinheiro e nos discursos públicos sobre a alegada importância da Educação, verificaremos imediatamente que continuamos sintonizados com as velhas ideias do Portugal oitocentista. Já colocámos tanto dinheiro e energia no assunto, e o diabo da salvação pela Educação, pela Literatura ou pela Cultura nunca mais chega.


A contrabalançar esta ideia de uma salvação pela cultura, atravessa este enorme romance uma estima intensa por lugares de convergência de centenas de pessoas, instituições e empresas. O trabalho talvez não tenha sido muito amado nas letras portuguesas, com a eventual excepção do Neo-realismo. A Baliza Trágica de um Naufrágio conta a história dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo. Onde está esta empresa que tanto deu ao país, poderia estar qualquer outra, já que ela é símbolo do Portugal industrioso que sempre viu no trabalho a salvação possível. Andamos pelas ruas das nossas cidades sem conhecer os rostos e as mãos que lhe deram origem. Caminhamos pelos parques sem saber o nome das árvores e das plantas. Este alheamento em relação ao que está à nossa volta faz com que vivamos dentro de um escafandro, de uma redoma de imagens. É um sinal claro de como estamos distantes das coisas, e vivemos vidas mentais, cerebrais, talvez um bocadinho inautênticas. Miranda Rebôlo olha para a vida de modo diferente. Com orgulho na obra dos Estaleiros, compraz-se a dissecar a sua história esforçada de lutas constantes contra o sentimento de que não valia a pena construir uma empresa de construção naval nessa parte do país. Estaleiros e fábricas são lugares de convergência em que acontece a vida humana. Ligamos a televisão e boa parte dos canais passa histórias de culturas que não nos dizem nada. Os sítios onde de facto nós vivemos passam invisíveis durante décadas. Temos poucas monografias com estudos de casos sobre empresas portuguesas. A sua presença na literatura é então verdadeiramente marginal. O debate célebre que opôs José Régio e o então jovem Álvaro Cunhal sobre o umbilicalismo da literatura portuguesa parece que ainda não desapareceu. A uma literatura sobre estados de alma, contrapõe Miranda Rebôlo uma literatura de palavras que se inspira na literatura de martelos, maçaricos e suor dos estaleiros navais. Só podemos desejar que este exemplo frutifique.


Há referências preciosas que vão aparecendo nas páginas da Baliza Trágica de um Naufrágio. Como é evidente a escolha que irei fazer diz mais sobre mim do que sobre o romance. Quero sublinhar o modo como a percepção cultural tem um cânone secreto que elege os autores da nossa literatura que devem ser consagrados e que em gesto simétrico condena ao esquecimento injusto muitos autores. O livro de Miranda Rebôlo está cheio de sugestões para enriquecermos o nosso cânone literário. Sabe-se que na época de um Camilo ou de um Eça muitos outros grandes escritores ficaram injustamente na sombra. João da Rocha é aqui um símbolo desses vultos da sensibilidade portuguesa que ainda estão à espera de serem conhecidos e amados. Quando Miranda Rebôlo nos propõe a releitura de um génio das trevas injustamente esquecido e não reeditado como esse autor de Diário de um Médium ou dos contos espantosos reunidos no volume com o título Angústias, só poderemos agradecer a feliz lembrança. E porque não agradecer também o convite para a releitura da escritora injustamente esquecida Maria Amália Vaz de Carvalho?


Noutros países há um debate intelectual muito grande sobre o cânone. No Brasil, Flávio Kothe tem feito esse trabalho para a literatura brasileira que, em muitos séculos foi também literatura portuguesa (de um Gregório de Matos, por exemplo, a um Padre António Vieira). Em Portugal, a questão parece que só se coloca a propósito dos autores que deverão constar dos manuais do ensino secundário. O assunto parece que se limita às famílias com filhos em idade escolar. Não parece ser assunto importante do debate intelectual português, e, de um modo, todos aceitamos um cânone que foi proposto por alguém a determinada altura. Essas escolhas, que não são as nossas, têm vantagens e defeitos: com as primeiras, temos luz; com os segundos, muitas sombras.


Há pouco dizia que os livros atravessam séculos e que um leitor futuro da Baliza Trágica um Naufrágio terá aqui um resumo da alma portuguesa da primeira década do século XXI. O Professor José Gil já tentou captar essa alma no ensaio arguto Portugal Hoje: O Medo de Existir. Outros grandes ensaístas, como Eduardo Lourenço, também o tentaram fazer. Miranda Rebôlo oferece-nos um retrato da alma portuguesa dos nossos dias. Parece ser uma alma a quem se roubou a esperança. Os sentimentos do protagonista são o símbolo dessa alma desesperançada. Persegue-o a vontade de fazer algo que fique, de autorar um romance decisivo. Sabe muito, viveu muito, prestou atenção às entrelinhas da história. Contudo, atormenta Gaspar um mal de vontade, um mal de querer, uma má disposição.
Gaspar é símbolo da perplexidade dos Portugueses que assistem impotentes a escândalos com figuras públicas, ao colapso de grandes bancos que sempre foram ícones de respeitabilidade, à intervenção estrangeira nas finanças públicas nacionais e a uma lista longa de situações que envergonhariam o Portugal da Conquista de Ceuta, da descoberta do Brasil, do Caminho Marítimo para a Índia ou da ideia que nos acalenta o coração de um Portugal espiritual do Quinto Império. Estamos a anos-luz dessa grandeza, de tal forma que já não a reconhecemos como nossa. O próprio título do romance, que deriva de um texto do publicista e historiador Carlos Malheiro Dias, antepassado de Gaspar, em que se descreve a sucessão de eventos tenebrosos que culminaram com o regicídio de el-rei D. Carlos: «O regicídio é a baliza trágica de um naufrágio». É esta a ideia que atravessa o romance em que a metáfora náutica dá rosto à realidade portuguesa. Diz Miranda Rebôlo a certa altura que «Gaspar da Rocha Malheiro e sua companheira Maria Pereira assistiam ao fim político de Portugal, desmoronamento do conceito de independência e autonomia levaria à baliza trágica de um naufrágio».


Há sinais de esperança para o futuro dos Portugueses neste romance? O tal leitor, que encontrará este debate de Gaspar e de Edmundo num dia qualquer dos séculos que hão-de vir, como olhará para a nossa esperança? As três palavras maiores do título resumem tudo: Baliza, Tragédia e Naufrágio. É assim que Miranda Rebôlo vê a realidade portuguesa. Poderíamos perguntar se estamos a ler correctamente o seu pensamento. Contra essas três palavras, há evidentemente razões para ter esperança. O que é que este romance nos mostra? Mostra-nos que ainda há pessoas que não adormecem ao som dos cantos financeiros das novas Sereias, que há um húmus riquíssimo na cultura portuguesa profunda; que há autores que merecem ser redescobertos; que há liberdade para criticar as figuras públicas… Estes são sinais indubitavelmente positivos. Miranda Rebôlo, contudo, confronta-nos com a falta de Esperança, com maiúscula. O Portugal minhoto que ele representa, que vê à distância os dislates dos governantes que têm ocupado o Terreiro do Paço, S. Bento e o Palácio de Belém, não nos dá energia para alimentarmos a fome de Esperança. Reparemos na vida de presépio, vida não de Teatro Nacional ou de Ópera, mas vida de teatrinho de fantoches para crianças, vida pequenininha, de Gaspar. O país em que vive não o satisfaz, e a única centelha de paixão que o anima é embaraçosa. Frequentando um café, cruza-se com a empregada de balcão desse café, a Ana Paula. Um destes dias, ao fazer zapping nos canais da televisão por cabo, reparei em como o humor está cada vez mais deselegante. Já não há sedução, corte ou enamoramento nas séries de televisão. É quase tudo de uma obscenidade mentecapta: sexo e violência sem fim, como se fôssemos todos atrasados mentais que só precisam de uma dose de estímulos animalescos porque já não têm sofisticação para assistir ao cinema de um Fellini, ou de um Ingmar Bergamn. Já não aguentamos hoje assistir a alegorias da condição humana, como O Sétimo Selo, ou a arqueologias das almas de cada um, como em Persona. Neste mundo em que já não há sublimação romanesca, mas só obscenidade primária, Gaspar nem perde tempo a fazer a corte à sua mulher legítima, nem sequer a uma amante. Símbolo da falta de alma da nossa época, é a própria empregada de balcão do café que, sem corte nem elegância amorosa, propõe a Gaspar sexo imediato, não se detendo sequer perante o matrimónio de Gaspar, prometendo que é só coisa de uma noite e não mais do que uma noite. Não há romance. Não há sublimação do Amor. Não há Esperança. Aqui e ali, com algumas alusões à elevação metafísica propiciada pelo amor tântrico, aponta-se para algo mais. O Leitor fica desesperado com tudo isto. Quer e precisa de algo mais, mas o que Miranda Rebôlo lhe oferece é amorzinho adúltero, impulso primário que até parece ficar satisfeito com a morte por acidente de Maria Pereira, esposa de Gaspar, o que evita que ele tenha de dar justificações de como só uma noite se multiplicou por muitos dias.


Estes símbolos da nossa época de luxúria rápida, não sublimada, não espiritualizada, são certamente embaraçosos para todos nós. Há verdade nisto, uma verdade cruel. Precisamos de escritores e de ensaístas para nos explicarem o Funeral do Amor em Portugal. Já não falo do modo como o Estado quer pôr o bedelho naquilo que é a esfera de acção das famílias, com a questão polémica da Educação Sexual nas Escolas. Penso, em particular, nas notícias recentes do site de encontros adúlteros Ashley Madison. Um jornalista teve acesso aos números de participação de homens e de mulheres casadas neste site de encontros de adultério. São números astronómicos apropriados a um epitáfio do Amor Romanesco em Portugal. Um amigo meu, chocado com os números de esposos portugueses que se atraiçoam mutuamente, inventou uma personagem e inscreveu-se no site Ashley Madison. Em menos de meia hora recebeu propostas de encontros sexuais de senhoras casadas. A grande Hannah Arendt falava da banalidade do Mal; em contexto completamente diferente, podemos hoje falar da banalização do Amor e do funeral do romance em Portugal.
Estaremos a ver bem as coisas? Responder a esta pergunta é uma das nossas justificações para ler livros. Procuramos nas suas páginas mais informação e mais esperança. O retrato da vida portuguesa que Miranda Rebôlo nos dá em Baliza Trágica de um Naufrágio não é agradável, certamente. Mas não agradável para quem? Talvez para mim, rato de biblioteca em que uma vida sem livros e grande literatura é impensável. Mas nem Miranda Rebôlo nem eu representamos esta época. Somos os dois um bocadinho patéticos, porque muito anacrónicos. Eu, como professor universitário, surpreendo-me por os meus alunos não lerem Proust, ou Camões ou D. Francisco Manuel de Melo, e fico chocado ao reparar nos cemitérios onde estamos a colocar o Amor Sublimado, a Esperança e a Vida Portuguesa. Pode acontecer que tudo isto seja velhice precoce. Diz-se que uma senhora da realeza portuguesa de há séculos atrás causou escândalo quando, ao descer de uma carruagem, mostrou o tornozelo. Hoje está tudo mostrado, e já sinto saudade da época em que os tornozelos enchiam a imaginação.


Para terminar, queridos Amigos, deixem-me resumir o meu pensamento sobre este romance anómalo das letras portuguesas contemporâneas. É uma Cavalo de Tróia literário: disfarçado de romance, é, de facto, uma meditação sobre a vida portuguesa desta época. A concepção filosófica do mundo que está nas suas páginas é um espelho cruel mas verdadeiro de uma certa forma de viver, sem Quinto Império e com a mão estendida à Alemanha e à Troika. Atravessa-o uma suspeita conspiratória de que a realidade política tem agentes nas trevas que orientam os destinos colectivos segundo interesses de difícil identificação. Esta visão conspiratória do mundo diz muito sobre os Portugueses de hoje, e diz, sobretudo, que não sentem que sejam os donos das suas vidas.
Este não é um resultado menor. Todos os livros que nos ensinam a ver a realidade são preciosos. Com tudo isto, em consciência só posso fazer duas coisas. A primeira é agradecer a Miranda Rebôlo ter-nos dado este tesouro literário e esta reflexão, diria ao modo oitocentista de um Antero de Quental, sobre a realidade portuguesa. Deu-nos muito. Obriga-nos a pensar em muito. Abro, pois, o meu coração e, na presença de todos, agradeço ao Porfírio Pereira da Silva aquilo que o seu alter ego Miranda Rebôlo nos ensinou a ver.
Peço, pois, ao público uma salva de palmas para o Miranda e para o Porfírio, que tanto nos deram.
Tenho dito!

Professor Doutor Manuel Curado

(ILCH-Universidade do Minho)

Friday, February 05, 2016

Nós e os outros e o cordão umbilical da amizade!...

«Há três espécies de amigos que são úteis e três espécies que são prejudiciais. Os amigos rectos e verdadeiros, os amigos fiéis e virtuosos, os amigos que nos iluminam pela sua inteligência, são os amigos úteis. Os amigos que demonstram uma gravidade toda exterior e sem rectidão, os amigos pródigos em elogios e vulgares lisonjas, os amigos que apenas são loquazes sem inteligência, são os amigos prejudiciais…»

Confúcio

Hoje resolvemos aziumar este nosso “agrupar” de palavras, face a algumas desilusões sofridas na procura da rectidão na natureza do homem, tendo em conta que alguns procuram ignorar a verdade confuciana de que se esta rectidão do natural se perde durante a vida, toda a felicidade se afasta de si.
Há uns dias para cá, aliado à desilusão temos percepcionado, sentindo, alguma frustração, levando a que tenhamos que ser rígidos connosco, mas condescendentes com os outros, por forma, como diria Confúcio, a ver-nos livres de toda a inveja e ressentimento. É isso que temos procurado fazer: Controlar os nossos actos, não agindo com precipitação ou ressentimentos, de forma a evitar grandes fracassos e/ou desvio do caminho recto – se é que alguma vez ele possa existir –, a bondade suprema como a água. Sim, como a água. Como diria Lao Tse, «a água é benéfica a todas as coisas, mas não entra em competição. Fica no sítio que outros desprezam» – citamos.
Faz sentido toda esta retórica quando vivemos o favor e a desgraça revestidos pelo medo e pela traição? Ninguém se deverá escandalizar com estas aziumadas (porque prometidas) palavras, em jeito de pergunta, porque, se através do sentimento tornamos o nosso coração profundo, mantendo-se em bem com os outros, não é menos verdade que é através das palavras que mantemos a confiança nos outros. Olhos nos olhos, sem verniz ou madeixas, purificando a escuridão, aclarando o confuso, para que ele se clarifique. Faz sentido a nossa frustração? Nova pergunta de resposta difícil, mas que para nós se tornará fácil, principalmente quando nos pautamos pelo princípio de Lao Tse, quando afirma que «sem sair fora da porta pode-se conhecer todo o mundo. Sem se olhar pela janela pode-se ver o Tau do céu. Quando mais se viaja, menos se conhece.» – citamos. Especulação, retórica e devaneios? Talvez!


Há uns dias para cá que sentimos alguma frustração, porque, se calhar, em vez de procurarmos o grande caminho plano e fácil, temo-nos deixado enredar pelos atalhos traçados e percorridos pelos outros, dissimulando filosofias de antanho (e de novo a tentação das alegorias, por “defeito de formação”), que propunham a reflexão antagónica dos palácios reais serem muito bem conservados, mas os campos deixados cobertos de ervas daninhas e os celeiros vazios. A fragilidade da nossa relação de uns com os outros, usando vestes bordadas, mas trazendo à cintura espadas afiadas. Um corte umbilical com o princípio confuciano que nos dirige em conformidade das nossas acções com a natureza racional: «regra de conduta moral (ou) recta via». Tomados, conscientemente, pela filosofia oriental, somos daqueles que sempre acreditamos que as palavras sinceras não são elegantes; as palavras elegantes, mormente, não são sinceras.
Começamos a ficar cansados das dissimulações que nos levam à frustração, porque lhes assinalamos alguns aspectos irracionais, algo que é alheio à razão.     
A amizade construída em alicerces pouco consistentes, normalmente leva ao desmoronamento, o corte umbilical com os princípios supremos daquilo que existe, por exemplo, em Aristóteles: «unidade do entendimento». Talvez encontremos o antídoto para essa nossa, ainda que momentânea, frustração, num dos seguidores de Aristóteles, Averoes, que exprimiu o sentimento, do qual comungamos, de que a doutrina da unidade do intelecto acentua a racionalidade e a espiritualidade da alma humana, mas em detrimento da sua individualidade.
Obrigado a todos os que se deslocaram a Braga, para assistirem, na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, à cerimónia de lançamento do nosso livro «Baliza trágica de um naufrágio», um olhar sobre o Mar, uma reflexão universal para o futuro, através de conjunturas passadas e presentes, desmistificando sensibilidades, idealismos, transformações sociais e culturais. Brilhantemente apresentado pelo Professor Manuel Curado, do Instituto de Letras e Ciências Humanas da Universidade do Minho.
         Bem-haja à amizade e à unidade do entendimento!