“Todos os dias, devíamos
ouvir um pouco de música, ler uma boa poesia, ver um quadro bonito e, se
possível, dizer algumas palavras sensatas”
Goethe
Inspirados nas palavras de Goethe, “precipitamos” hoje a nossa deambulação cognitiva pela
poesia, sem descorarmos a magia da música – qual The Buddah Experience nos levou ao sublimar da meditação, aliado à
poesia – que serviria de fundo a este discorrer da pena e da mente. Já lá vão
alguns anos, quando numa revista da região lançávamos pequenos “brados da nossa
pena” (assim era o título da crónica), que divagamos a propósito das grandes
antologias e dos nossos poetas. Desabafaríamos então que as grandes antologias
poéticas sempre mereceram da nossa parte um respeito quase sagrado,
principalmente quando o produto final reproduz uma certa cumplicidade entre o
autor e o leitor ou entre o autor/antologiador e o leitor. Quando esta simbiose
não é alcançada, porque (antologias) elaboradas por conceitos meramente
científicos, essa cumplicidade esfuma-se na imprecisão do gosto de quem as faz
ou elabora. Na altura desse mesmo brado, também expressaríamos a nossa
convicção de que as antologias ganham cada vez mais importância, principalmente
pela possibilidade de se estabelecer uma relação de espaço, tempo, filosofia de
vida e personalidade do interveniente, o rosto do pensamento, da inspiração e
da “voz funda de sermos”, como um dia escreveria Conceição Campos, poetisa
pessoana, que o Lethes tem inspirado. Essa “voz de sermos” tem que,
forçosamente, despertar em nós e nos outros a supracitada cumplicidade,
goste-se ou não de quem escreve ou de quem brada as afeições nunca mentidas.
Tudo isto para dizermos – envoltos numa profunda cumplicidade idealista, e
sobretudo de gosto – que temos em mãos (e lemos) uma excelente antologia
poética de Amândio Sousa Dantas, com o sugestivo título POEMA SEM FIM
(1994-2006), a fazer lembrar o conceito do eterno retorno… Assim são os poetas
e a poesia, porque intemporais.
Amândio Sousa Dantas é um poeta na verdadeira
acessão da palavra, dado podermos beber das suas próprias palavras um profundo
sentimento existencial: Há em todos nós
uma morada existencial, assim, pelo que sei da minha experiência, a
interioridade do poema é instrumento comum (e solitário) da própria vida. Não
se consegue ver o essencial sem os mistérios da existência: Ora levantando os
olhos face às injustiças, ora com um olhar conciliador à justa decisão. Comungamos
profusamente desta precisão de “afinal, todos vivemos com o fogo da memória”.
Nesta excelente antologia (reiteramos a adjectivação, porque gostamos do poeta e
da sua poesia) percorremos doze anos de primordial inspiração, degustada ao
longo de sete – para nós, número místico e extremamente positivo – brados: Perfeito chão de voar (1994); Sombras e ramos sobre o peito (1997); Infinita é toda a nascente (1998); Há uma eterna liberdade (2000); O instante é a tua face no poema (2001);
Pousado no silêncio (2003); e No ombro o orvalho (2006). Parafraseando
Amândio Sousa Dantas, doze anos pode parecer o percurso curto de uma vida, “mas
o trabalho poético é um processo lento, e o tempo é sempre maior do que aquilo
que nós pensamos”. De facto, e aqui continuamos a concordar com a introspecção
deste inspirado poeta limiano, esta antologia reflecte o percurso do seu autor,
o seu comprometimento com aquilo que é a sua própria vida e o seu desejo de
comunicar com as coisas do mundo e de preservar a sua lealdade aos valores
maiores. E aqui, não excluiremos o confronto entre o poeta e a natureza: Segue a natureza / indiferente ao que dela
nós vemos / a natureza não pensa nada / tudo que cria é um mistério das suas
águas / nós damos nomes às coisas da natureza / porque a nossa fala aponta para
as coisas / pode o poeta amar a luz do crepúsculo / mas a luz naturalmente não
ama o poeta / porque a luz é somente a luz nos seus olhos / o poeta sonha pela
natureza / o que com indiferença a natureza lhe dá / (e a natureza está ali em
cada dia) / e um dia deixamos de a ver / mas esse é o dia em que a natureza se
conhece (p. 25). Tudo tem lugar na alma do poeta Amândio Sousa Dantas: o
supremo tempo, como aconchego; o perfeito chão de voar; o rio (de mágoa ou de
alegria) que, por vezes, nunca se chega a atravessar; os olhos que estremecem
pelo brilho do silêncio; o voo do pássaro, indiferente ao céu que o guia; a
erva crescendo por entre as pedras; o som do mar escutado pela noite; o brilho
do coração como pedra preciosa; a dádiva de um poema, nem que seja para morrer
amanhã; o falar docemente da hora do silêncio; o termos de voltar ao princípio;
a água como o fogo do poema; o rosto fatigado que se quebra no espelho; a luz e
a sombra, incluindo sombras e ramos sobre o peito; a morte dos trabalhadores
por altas construções; o Cristo pregado em verde Cruz, de pedra nua ao frio e
ao vento; o tempo como matriz de distância, sem se o querer perder; a luz da
eternidade; o louvar do amor em cada dia; os olhos perdendo o brilho, pelo envelhecer
do rosto; a Terra como morada suprema; o regresso dos pássaros à morada da
árvore; os olhos pousados nos oceanos; a sabedoria como um dom que vagueia pelo
espírito; o poeta como um ser desamparado; o Deus silencioso, onde nenhuma
oração chega a seus ouvidos; a emigração, onde toda alegria é voz do seu
regresso; a triste luta contra o medo e a morte; a irmanação do religioso e do
profano, quando se canta e dança indiferentes às canseiras do mundo; a eterna
liberdade; o mistério do poema e as suas cores; a luz e a poesia como enigmas;
a oração à Terra; os deuses já não invocados pelos poetas; o espírito das
coisas, amando a realidade de todas as metáforas; a África dos poentes imensos
e dos pássaros nobres; a lisura onde o silêncio vai estendo as suas redes; os
poetas, onde poucos são os eleitos e muitos os esquecidos; o não voltar às
mesmas águas; a realidade, onde todos se afadigam pela hora do crepúsculo; o
chão do tempo, com o silêncio no olhar; o ver o mundo por seus atavios; a
pátria de que muitos não querem ouvir falar; o abrir de uma página sob a luz da
memória; o haver de um tempo onde se morre devagar; o olhar que nos persegue a
vida toda; o mar de todas as aparências; o raro desejo de pousar os olhos na
erva, e ver na erva o orvalho; o poema sem fim: Há um poema e um rouxinol / por sua árvore / e que canta até a hora da
nossa noite, / como o amor que levou a minha alma. / Há uma alma infinita /
Como há um poema sem fim (p. 355); o meditar no tempo; a dor que vagueia
pelo mundo, sendo que a poesia segue a dor lado a lado; a língua como um berço;
o aprender a descobrir tudo pela ausência; o agitar dos ramos do poema; a
tímida espada trazida da infância; o escutar das canções das mulheres do campo;
o barco que se afunda perto da sua margem: Agora
ninguém vê aquele barco pelo seu navegar / só as águas o levam para seu fundo /
longe dos olhos dos homens / como se fosse um peixe a morrer no seu meio. / Só
o poeta pensa ainda salvar o poema (p. 517). Felizmente, para bem de todos
nós, o poeta teima sempre em salvar o poema.
Terminaríamos de igual forma, como a uns anos
atrás: Os poetas e a poesia moram ao nosso lado e talvez não tenhamos dado por
isso. A bem da poesia: Vede-lhe a fronte,
onde transborda o génio!