APRESENTAÇÃO DA
OBRA
BALIZA TRÁGICA
DE UM NAUFRÁGIO, DE MIRANDA REBÔLO
(Braga, Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, 30 de
Janeiro de 2016, 15h30)
Ex.ma
senhora Directora da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva
Dr.ª
Aida Alves
Ex.mo
autor Miranda Rebôlo
Querido
amigo Porfírio Pereira da Silva
Estimadas
amigas e estimados amigos
Acordamos todas as manhãs e, abrindo a
janela, procuramos os sinais do dia que nos espera. Indirectamente, temos
necessidade de saber o que está guardado para nós. Hoje é o dia 30 de Janeiro,
e os poderes que regem este mundo, entenderam por bem dar-me a grata tarefa de
dizer umas palavras sobre um livro. Esses poderes ainda não me juntaram a
outras milhões de coisas que poderiam acontecer, ainda não me juntaram, por
exemplo, a um convite para ser recebido por Sua Santidade, o Papa Francisco,
nem para dar um salto à distante América para cumprimentar o já histórico
Presidente cessante. Tantas coisas poderiam acontecer. O bom destino que vela
por nós, nos seus desígnios insondáveis, entendeu que é o que deve ser que nos
encontremos para falar sobre um assunto muito estranho, um livro.
De facto, é estranho porque, quando
falamos de livros, nunca falamos de assuntos importantes sobre esses livros.
Ainda na última quinta-feira, fui entrevistado para uma revista local a
propósito do encerramento de uma loja alfarrabista de Braga. A amável
jornalista, que recolheu o meu testemunho de cliente habitual da casa, quis
saber o que me atrai ao mercado do livro velho. O que lhe disse então é também
o que me atrai à maternidade dos livros novos, como as cerimónias de
lançamento, ou as editoras, ou as vésperas dos livros, quando eles ainda não
existem e só estão a começar a nascer devido a uma conversa ou devido a uma
ideia que surgiu de repente. Tantos pilares tem a casa de um livro! O pilar da
arte do tipógrafo, o pilar da perícia do encadernador, o pilar do papel que se
irá encontrar com os nossos dedos, o pilar do cheiro do livro novo e do perfume
hipnótico do livro velho… A encimar todos estes pilares está um céu sempre
difícil de abarcar, o céu do significado, o céu estranho que não se confunde
com as próprias palavras em que o livro está escrito, o céu dos sentidos de que
nunca somos donos verdadeiros, o céu Daquilo Que O Escritor Nos Quis Dizer.
30 de Janeiro é, pois, o palco para
celebrarmos o nascimento de um bebé de cultura que irá certamente ter uma vida
mais longa do que qualquer um de nós, e até uma vida mais longa do que a soma
de todas as nossas idades nesta altura da vida, e mais longa do que a soma,
impossível de fazer neste momento, de todos os anos que teremos para viver. Os
livros são uma das formas conhecidas de imortalidade possível que parece estar
ao nosso alcance. Nós não atravessaremos os séculos, mas o livro enigmático de
Miranda Rebôlo, sim, poderá ou não atravessar os séculos; se o conseguir, dará
a alguém do futuro uma imagem de como é viver em Portugal no início do século
XXI.
O dia 30 de Janeiro já viu nascer muitas
coisas grandes e pequenas, boas, más e terríveis para além da imaginação: a
morte de Damião de Góis, o grande humanista português; a assinatura do Tratado
de Paz de Vestefália, na cidade de Münster; o assassinato de Mahatma Gandhi por
um extremista hindu; o último concerto dos Beatles antes de se separarem; o nascimento
de duas escritoras portuguesas, Teolinda Gersão e Maria Filomena Mónica, e do
grande actor norte-americano Gene Hackman.
É, pois, neste palco do tempo e nesta
cidade mais velha do que o país que todos constituímos, para mim uma alegria
muito grande ter a honra de dizer umas palavras públicas sobre um livro que
antes de o lermos já nos está a ler a nós.
Já tinha tido anteriormente oportunidade
de fazer a apresentação de um outro livro de Porfírio Pereira da Silva, com o
título Agramonte, num sábado
maravilhoso e cheio de sol na bonita Biblioteca Municipal de Viana do Castelo,
em Abril de 2012. Pouco mais de um ano depois, no Verão de 2013, fiz o elogio
público da obra cultural vasta do Porfírio, assinalando os seus trinta anos de
actividade literária.
Tenho, como se vê, alguma informação
sobre as inclinações do nosso escritor. Não posso dizer que conheça o seu
coração generoso, tão vasto ele é. Em Agosto de 2013 poderia ter tido, a quem
quer que mo perguntasse, que não me surpreenderia o próximo romance do Porfírio
Pereira da Silva. Como tontos simplórios, julgamos sempre esgotar um assunto a
partir de uma amostra desse assunto. Não poderia estar mais errado se dissesse
essas palavras nesse dia de Verão. Assim como o romance Agramonte me surpreendeu em relação aos anteriores livros, assim
também o presente Baliza Trágica de um
Naufrágio me causa surpresa em relação aos mais de dez livros do Porfírio e
aos mais de setecentos artigos que saíram da sua pena. Eu não estava à espera
deste objecto literário. Confesso a todos, em público, que ainda me sinto um
pouco abalado com a sua leitura.
De que é que se trata neste romance? Não
terei eu esgotado tudo o que há a dizer quando deixei cair a palavra
auto-explicativa de ‘romance’? Ouvindo isto, qualquer pessoa pensará
imediatamente numa narrativa imaginada sem ligação com a grande realidade das
coisas, tendo apenas um fio fino a prendê-la à parte pequena do mundo, os
nossos desejos. Vendo de imediato as epígrafes de toda a obra, encontramos os
nomes pouco literários, que empobrecendo a nossa imaginação também empobreceram
um bocadinho as nossas vidas, de Martin Schulz, do Parlamento Europeu, do
Presidente Aníbal Cavaco Silva, de Carlos Costa, Governador do Banco de
Portugal, do ex-primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, e de figuras
internacionais como o ex-ministro das finanças grego, Yanis Varoufakis, e do
presidente americano Barack Obama. Esta primeira página é o modelo de todas as
outras trezentas e cinquenta que se seguem. O romance é um imenso livro de recortes
de notícias de jornal, de programas televisivos, de colóquios culturais que
aconteceram recentemente e de apontamentos de aulas universitárias. Figuras
públicas, instituições, empresas, apresentadores de programas de televisão,
autores internacionais, particulares com quem se cruzou o autor, tudo isto
povoa as páginas desta Baliza Trágica.
Este estranho livro de recortes procura
fixar uma realidade muito rápida de eventos e de notícias em avalanche
constante. Temendo perder a sua identidade nessa avalanche, Gaspar, o alter ego de Miranda Rebôlo que é o alter ego de Porfírio Pereira da Silva,
tenta o gesto impossível de tentar agarrar o que acontece nos dias que tem de
viver.
Não sentimos a urgência de nós próprios
fazermos o nosso livro de recortes ou algum equivalente seu, como a velha arte
do diário íntimo e da análise de consciência ao final de cada dia, com tradição
multissecular com provável origem pitagórica e, mais tarde, estóica, porque
tudo na nossa vida gira em torno de uma ficção simpática, a ficção de que somos
uma pessoa autónoma que vive no palco do mundo. Nós estamos aqui, o mundo está
ali. Para chegarmos ao coração deste romance temos de imaginar o que seria se
andássemos, desde que acordamos até que nos deitamos, com um gravador ou uma câmara
fotográfica a fazer registos constantes do que nos chega aos ouvidos e aos
olhos. Se tivéssemos esse registo para compensar a fragilidade da nossa atenção
e da nossa memória, veríamos que muitos textos entram no fluxo da nossa
consciência. É difícil imaginar que temos algo mais íntimo do que aquela voz
que nos acompanha o dia todo, e que na falta de melhor rótulo designamos como a
Voz da Consciência, ou o nosso eu. Este romance minhoto dá-nos um raio X
complicado para a nossa auto-estima. Esse raio X é o de que talvez já não
tenhamos nenhuma voz pessoal a falar na nossa consciência. Quem fala, então?
Quem fala são os discursos públicos. Aliás, poderíamos fazer um teste. Neste
sábado, que tipo de palavras secretas nos foi acompanhando ao longo do dia? A ideia
de Miranda Rebôlo é a de que as manchetes de jornais que vimos nos quiosques,
as notícias de televisão e a pequena infinidade de outras fontes discursivas
vão construindo uma narrativa compósita. O conceito parece ser este: cada um
vive numa realidade construída em grande medida por discursos públicos. A
matéria-prima da vida humana parece ser derivada da palavra.
Miranda Rebôlo sabe perfeitamente que a
facilidade com que a palavra constrói realidades paga-se a um preço muito
elevado. Pode acontecer que, ao lado dos discursos intocáveis que formam o
carácter, derivados da grande literatura, dos gestos e cuidados das pessoas que
se preocupam connosco, e das grandes narrativas religiosas, estejam discursos
arregimentados ao serviço de tiranos, tiranetes e tiraninhos, de grandes e de
pequenos interesses particulares. Miranda Rebôlo sofre por não ser capaz de
separar uns dos outros, e, por isso, cola os discursos no seu livro de
recortes. Eis um exemplo das muitas dezenas com que este livro é construído:
«Enquanto lanchava a sua habitual
sanduíche de fiambre … acompanhada pelo não menos habitual sumo de manga,
passava na televisão … o ecléctico Vice-presidente da Câmara do Porto que
tivera a coragem de assumir o degelo das consciências: O Urbanismo é na maioria das câmaras, a forma encapotada e sub-reptícia
de transferir bens públicos para a mão de privados. A palavra para isto é
‘roubo’. É a subversão da democracia.»
Centenas de discursos como este vão-nos
entrando pelos ouvidos ao longo do dia, ao longo da vida. Já ninguém se lembra
do que ouviu ontem ou na semana passada, tal o ritmo com que somos bombardeados
a toda a hora. Miranda Rebôlo não se conforma com o olvido; teme perder o
sentido do real e a sua identidade. Corre, pois, a fixar no seu vasto álbum de
recortes o discurso que, tendo entrado no abraço da sua atenção, por momentos
foi parte de si. Esta é uma homenagem que o escritor faz às palavras públicas
que, como células do corpo, são a células da nossa alma.
Como é evidente, teríamos que perguntar
se esse livro de recortes de palavras que chegam aos nossos ouvidos nos dá a
verdadeira realidade. Miranda Rebôlo não é atormentado por esta pergunta
irritante. Afinal, se os livros de recortes da nossa vida podem ser tão
diversificados quanto os discursos que povoam as horas e os minutos que temos
para viver, poder-se-ia perguntar se os livros de recortes de cada um de nós
são os livros certos, ou se, para grande desgraça nossa, passa-se algo de
fundamentalmente errado com os nossos recortes. Miranda Rebôlo diria que isso é
uma preocupação inútil, a procura de uma realidade em que nunca teremos os pés.
É nesta realidade que vivemos, com estas ruas, com estas paredes, com estas
pessoas, com estes protagonistas da cena pública. O combate que devemos travar
não é o de ingenuamente procurarmos o livro de recortes que tenha os recortes
certos para uma vida feliz; o combate principal para este autor é o que se
trava contra o ácido que tudo corrói do esquecimento.
Este romance ocupa-se de um dos traços
mais notáveis da cultura portuguesa desde o século XIX, o século do Mapa
Cor-de-Rosa e do Ultimato Inglês. Esse traço é a obsessiva reflexão sobre a
vida portuguesa, algo que poderíamos descrever como o ensimesmamento narcísico
da vida do nosso país. Relembrando os dois mitos que, segundo António José
Saraiva, estruturam a cultura portuguesa, o Mito da Cruzada e o Mito da
Decadência, durante os muitos e dolorosos anos recentes em que vivemos sob este
Mito da Decadência parece que só interessa aos Portugueses o seu próprio
espelho. Diz o narrador a certa altura, «os três amigos sentiam-se indignados
pelo estado desmoralizante em que tinha caído este país de brandos costumes,
cujos governantes e uma grande parte dos políticos procuravam atenuar imagens e
incapacidades, com a crise mundial».
Quem são os nossos cicerones por esta
viagem à realidade portuguesa? Temos Gaspar da Rocha Malheiro, formado em leis;
Edmundo Azevedo da Silva, já nosso conhecido dos romances Ermida e Agramonte,
figura com inclinações filosóficas; a companheira de Gaspar, de nome Maria
Pereira; a companheira de Edmundo, de nome Anne Ellington. A apimentar com
pulsão de vida existências esmagadas por recortes que não conduzem à felicidade
de ninguém, surge «a esbelta, trintona, pele cor de chocolate com leite, de
lábios carnudos e pernas roliças», de nome Ana Paula. Só a energia do amor
parece conseguir atenuar a falta de rumo que os protagonistas deste romance
parecem sofrer. Gaspar, em especial, não sendo um símbolo do Portugal dos
nossos dias, porque luta pela memória e pela compreensão do sentido último dos
eventos, sofre da falta de criatividade que, por contágio, vem de fora. Tem uma
«insatisfação pela frustração de nada o motivar ou inspirar à criatividade
literária». É curiosa a maleita, e é ainda mais curiosa a panaceia que sempre
escapa. A matriz deriva do Portugal oitocentista em que, à falta de novas
descobertas nas Índias e Brasis, o português aspirava a uma redenção literária.
Uma frase como «insatisfação pela frustração de nada o motivar ou inspirar à
criatividade empresarial, ou técnica, ou militar, ou agrícola» nunca poderia
ser escrita e apreciada no tempo de Camilo, ou de Eça de Queirós. Miranda
Rebôlo, em linha com a cultura portuguesa da Geração de 70, muito literária e
culturalmente bem formada, aspira a uma salvação literária e culturalista.
Também neste sentido, o romance Baliza
Trágica de um Naufrágio é um símbolo da nossa época. Se se reparar nos rios
de dinheiro e nos discursos públicos sobre a alegada importância da Educação,
verificaremos imediatamente que continuamos sintonizados com as velhas ideias
do Portugal oitocentista. Já colocámos tanto dinheiro e energia no assunto, e o
diabo da salvação pela Educação, pela Literatura ou pela Cultura nunca mais
chega.
A contrabalançar esta ideia de uma
salvação pela cultura, atravessa este enorme romance uma estima intensa por
lugares de convergência de centenas de pessoas, instituições e empresas. O
trabalho talvez não tenha sido muito amado nas letras portuguesas, com a
eventual excepção do Neo-realismo. A Baliza
Trágica de um Naufrágio conta a história dos Estaleiros Navais de Viana do
Castelo. Onde está esta empresa que tanto deu ao país, poderia estar qualquer
outra, já que ela é símbolo do Portugal industrioso que sempre viu no trabalho
a salvação possível. Andamos pelas ruas das nossas cidades sem conhecer os
rostos e as mãos que lhe deram origem. Caminhamos pelos parques sem saber o
nome das árvores e das plantas. Este alheamento em relação ao que está à nossa
volta faz com que vivamos dentro de um escafandro, de uma redoma de imagens. É
um sinal claro de como estamos distantes das coisas, e vivemos vidas mentais,
cerebrais, talvez um bocadinho inautênticas. Miranda Rebôlo olha para a vida de
modo diferente. Com orgulho na obra dos Estaleiros, compraz-se a dissecar a sua
história esforçada de lutas constantes contra o sentimento de que não valia a
pena construir uma empresa de construção naval nessa parte do país. Estaleiros
e fábricas são lugares de convergência em que acontece a vida humana. Ligamos a
televisão e boa parte dos canais passa histórias de culturas que não nos dizem
nada. Os sítios onde de facto nós vivemos passam invisíveis durante décadas.
Temos poucas monografias com estudos de casos sobre empresas portuguesas. A sua
presença na literatura é então verdadeiramente marginal. O debate célebre que
opôs José Régio e o então jovem Álvaro Cunhal sobre o umbilicalismo da
literatura portuguesa parece que ainda não desapareceu. A uma literatura sobre
estados de alma, contrapõe Miranda Rebôlo uma literatura de palavras que se
inspira na literatura de martelos, maçaricos e suor dos estaleiros navais. Só
podemos desejar que este exemplo frutifique.
Há referências preciosas que vão
aparecendo nas páginas da Baliza Trágica
de um Naufrágio. Como é evidente a escolha que irei fazer diz mais sobre
mim do que sobre o romance. Quero sublinhar o modo como a percepção cultural
tem um cânone secreto que elege os autores da nossa literatura que devem ser
consagrados e que em gesto simétrico condena ao esquecimento injusto muitos
autores. O livro de Miranda Rebôlo está cheio de sugestões para enriquecermos o
nosso cânone literário. Sabe-se que na época de um Camilo ou de um Eça muitos
outros grandes escritores ficaram injustamente na sombra. João da Rocha é aqui
um símbolo desses vultos da sensibilidade portuguesa que ainda estão à espera
de serem conhecidos e amados. Quando Miranda Rebôlo nos propõe a releitura de
um génio das trevas injustamente esquecido e não reeditado como esse autor de Diário de um Médium ou dos contos
espantosos reunidos no volume com o título Angústias,
só poderemos agradecer a feliz lembrança. E porque não agradecer também o
convite para a releitura da escritora injustamente esquecida Maria Amália Vaz
de Carvalho?
Noutros países há um debate intelectual
muito grande sobre o cânone. No Brasil, Flávio Kothe tem feito esse trabalho
para a literatura brasileira que, em muitos séculos foi também literatura
portuguesa (de um Gregório de Matos, por exemplo, a um Padre António Vieira).
Em Portugal, a questão parece que só se coloca a propósito dos autores que
deverão constar dos manuais do ensino secundário. O assunto parece que se
limita às famílias com filhos em idade escolar. Não parece ser assunto
importante do debate intelectual português, e, de um modo, todos aceitamos um
cânone que foi proposto por alguém a determinada altura. Essas escolhas, que
não são as nossas, têm vantagens e defeitos: com as primeiras, temos luz; com
os segundos, muitas sombras.
Há pouco dizia que os livros atravessam
séculos e que um leitor futuro da Baliza
Trágica um Naufrágio terá aqui um resumo da alma portuguesa da primeira
década do século XXI. O Professor José Gil já tentou captar essa alma no ensaio
arguto Portugal Hoje: O Medo de Existir.
Outros grandes ensaístas, como Eduardo Lourenço, também o tentaram fazer.
Miranda Rebôlo oferece-nos um retrato da alma portuguesa dos nossos dias.
Parece ser uma alma a quem se roubou a esperança. Os sentimentos do protagonista
são o símbolo dessa alma desesperançada. Persegue-o a vontade de fazer algo que
fique, de autorar um romance decisivo. Sabe muito, viveu muito, prestou atenção
às entrelinhas da história. Contudo, atormenta Gaspar um mal de vontade, um mal
de querer, uma má disposição.
Gaspar é símbolo da perplexidade dos
Portugueses que assistem impotentes a escândalos com figuras públicas, ao
colapso de grandes bancos que sempre foram ícones de respeitabilidade, à
intervenção estrangeira nas finanças públicas nacionais e a uma lista longa de
situações que envergonhariam o Portugal da Conquista de Ceuta, da descoberta do
Brasil, do Caminho Marítimo para a Índia ou da ideia que nos acalenta o coração
de um Portugal espiritual do Quinto Império. Estamos a anos-luz dessa grandeza,
de tal forma que já não a reconhecemos como nossa. O próprio título do romance,
que deriva de um texto do publicista e historiador Carlos Malheiro Dias,
antepassado de Gaspar, em que se descreve a sucessão de eventos tenebrosos que
culminaram com o regicídio de el-rei D. Carlos: «O regicídio é a baliza trágica
de um naufrágio». É esta a ideia que atravessa o romance em que a metáfora
náutica dá rosto à realidade portuguesa. Diz Miranda Rebôlo a certa altura que
«Gaspar da Rocha Malheiro e sua companheira Maria Pereira assistiam ao fim
político de Portugal, desmoronamento do conceito de independência e autonomia
levaria à baliza trágica de um naufrágio».
Há sinais de esperança para o futuro dos
Portugueses neste romance? O tal leitor, que encontrará este debate de Gaspar e
de Edmundo num dia qualquer dos séculos que hão-de vir, como olhará para a
nossa esperança? As três palavras maiores do título resumem tudo: Baliza,
Tragédia e Naufrágio. É assim que Miranda Rebôlo vê a realidade portuguesa.
Poderíamos perguntar se estamos a ler correctamente o seu pensamento. Contra
essas três palavras, há evidentemente razões para ter esperança. O que é que
este romance nos mostra? Mostra-nos que ainda há pessoas que não adormecem ao
som dos cantos financeiros das novas Sereias, que há um húmus riquíssimo na
cultura portuguesa profunda; que há autores que merecem ser redescobertos; que
há liberdade para criticar as figuras públicas… Estes são sinais
indubitavelmente positivos. Miranda Rebôlo, contudo, confronta-nos com a falta
de Esperança, com maiúscula. O Portugal minhoto que ele representa, que vê à
distância os dislates dos governantes que têm ocupado o Terreiro do Paço, S.
Bento e o Palácio de Belém, não nos dá energia para alimentarmos a fome de
Esperança. Reparemos na vida de presépio, vida não de Teatro Nacional ou de
Ópera, mas vida de teatrinho de fantoches para crianças, vida pequenininha, de
Gaspar. O país em que vive não o satisfaz, e a única centelha de paixão que o
anima é embaraçosa. Frequentando um café, cruza-se com a empregada de balcão
desse café, a Ana Paula. Um destes dias, ao fazer zapping nos canais da televisão por cabo, reparei em como o humor
está cada vez mais deselegante. Já não há sedução, corte ou enamoramento nas
séries de televisão. É quase tudo de uma obscenidade mentecapta: sexo e
violência sem fim, como se fôssemos todos atrasados mentais que só precisam de
uma dose de estímulos animalescos porque já não têm sofisticação para assistir
ao cinema de um Fellini, ou de um Ingmar Bergamn. Já não aguentamos hoje assistir
a alegorias da condição humana, como O Sétimo
Selo, ou a arqueologias das almas de cada um, como em Persona. Neste mundo em que já não há sublimação romanesca, mas só
obscenidade primária, Gaspar nem perde tempo a fazer a corte à sua mulher
legítima, nem sequer a uma amante. Símbolo da falta de alma da nossa época, é a
própria empregada de balcão do café que, sem corte nem elegância amorosa, propõe
a Gaspar sexo imediato, não se detendo sequer perante o matrimónio de Gaspar,
prometendo que é só coisa de uma noite e não mais do que uma noite. Não há
romance. Não há sublimação do Amor. Não há Esperança. Aqui e ali, com algumas
alusões à elevação metafísica propiciada pelo amor tântrico, aponta-se para
algo mais. O Leitor fica desesperado com tudo isto. Quer e precisa de algo
mais, mas o que Miranda Rebôlo lhe oferece é amorzinho adúltero, impulso
primário que até parece ficar satisfeito com a morte por acidente de Maria
Pereira, esposa de Gaspar, o que evita que ele tenha de dar justificações de
como só uma noite se multiplicou por muitos dias.
Estes símbolos da nossa época de luxúria
rápida, não sublimada, não espiritualizada, são certamente embaraçosos para
todos nós. Há verdade nisto, uma verdade cruel. Precisamos de escritores e de
ensaístas para nos explicarem o Funeral do Amor em Portugal. Já não falo do
modo como o Estado quer pôr o bedelho naquilo que é a esfera de acção das
famílias, com a questão polémica da Educação Sexual nas Escolas. Penso, em
particular, nas notícias recentes do site
de encontros adúlteros Ashley Madison. Um jornalista teve acesso aos números de
participação de homens e de mulheres casadas neste site de encontros de adultério. São números astronómicos
apropriados a um epitáfio do Amor Romanesco em Portugal. Um amigo meu, chocado
com os números de esposos portugueses que se atraiçoam mutuamente, inventou uma
personagem e inscreveu-se no site Ashley
Madison. Em menos de meia hora recebeu propostas de encontros sexuais de
senhoras casadas. A grande Hannah Arendt falava da banalidade do Mal; em
contexto completamente diferente, podemos hoje falar da banalização do Amor e
do funeral do romance em Portugal.
Estaremos a ver bem as coisas? Responder
a esta pergunta é uma das nossas justificações para ler livros. Procuramos nas
suas páginas mais informação e mais esperança. O retrato da vida portuguesa que
Miranda Rebôlo nos dá em Baliza Trágica
de um Naufrágio não é agradável, certamente. Mas não agradável para quem?
Talvez para mim, rato de biblioteca em que uma vida sem livros e grande literatura
é impensável. Mas nem Miranda Rebôlo nem eu representamos esta época. Somos os
dois um bocadinho patéticos, porque muito anacrónicos. Eu, como professor
universitário, surpreendo-me por os meus alunos não lerem Proust, ou Camões ou
D. Francisco Manuel de Melo, e fico chocado ao reparar nos cemitérios onde
estamos a colocar o Amor Sublimado, a Esperança e a Vida Portuguesa. Pode
acontecer que tudo isto seja velhice precoce. Diz-se que uma senhora da realeza
portuguesa de há séculos atrás causou escândalo quando, ao descer de uma
carruagem, mostrou o tornozelo. Hoje está tudo mostrado, e já sinto saudade da
época em que os tornozelos enchiam a imaginação.
Para terminar, queridos Amigos,
deixem-me resumir o meu pensamento sobre este romance anómalo das letras
portuguesas contemporâneas. É uma Cavalo de Tróia literário: disfarçado de
romance, é, de facto, uma meditação sobre a vida portuguesa desta época. A
concepção filosófica do mundo que está nas suas páginas é um espelho cruel mas
verdadeiro de uma certa forma de viver, sem Quinto Império e com a mão
estendida à Alemanha e à Troika. Atravessa-o uma suspeita conspiratória de que
a realidade política tem agentes nas trevas que orientam os destinos colectivos
segundo interesses de difícil identificação. Esta visão conspiratória do mundo
diz muito sobre os Portugueses de hoje, e diz, sobretudo, que não sentem que
sejam os donos das suas vidas.
Este não é um resultado menor. Todos os
livros que nos ensinam a ver a realidade são preciosos. Com tudo isto, em consciência
só posso fazer duas coisas. A primeira é agradecer a Miranda Rebôlo ter-nos
dado este tesouro literário e esta reflexão, diria ao modo oitocentista de um
Antero de Quental, sobre a realidade portuguesa. Deu-nos muito. Obriga-nos a
pensar em muito. Abro, pois, o meu coração e, na presença de todos, agradeço ao
Porfírio Pereira da Silva aquilo que o seu alter
ego Miranda Rebôlo nos ensinou a ver.
Peço, pois, ao público uma salva de
palmas para o Miranda e para o Porfírio, que tanto nos deram.
Tenho dito!
Professor Doutor Manuel Curado
(ILCH-Universidade do Minho)