Friday, August 31, 2012

Depois da «Tourada» em Viana do Castelo: uma reflexão sobre a «Ética Animal» em Peter Singer e Tom Regan!


“Quase todos os sinais exteriores que nos levam a fazer inferências acerca da dor sentida por outros seres humanos podem ser observados noutras espécies, especialmente naquelas que se encontram mais próximas de nós, como é o caso dos mamíferos ou das aves”.

Peter Singer

Pelo facto de se ter realizado em Viana do Castelo (19 de Agosto, último) a tão propalada tourada, para alguns a reposição da legalidade ou de uma “verdade cultural”, para outros uma “provocação” que se pensaria arredada do vocabulário vianense, muitos foram os amigos a sugerir-nos um pequeno apontamento acerca da problemática da «Ética Animal», tendo em conta a nossa formação académica e alguma especialização em bioética, cujo objectivo foi – e continua a ser – o de reflectir, questionar e desenvolver a sensibilidade humana para a saúde, realidade particularmente fértil em conflitos, dúvidas e manipulações. Aceitando com uma certa cautela esse “desafio”, resolvemos gravitar à volta de duas correntes – Peter Singer, com a libertação animal e Tom Regan, com a argumentação em defesa dos direitos dos animais –, reiteradas pelo bem-estar (utilitarista) ou pelo direito dos animais (kantiana), propomo-nos assim para uma reflexão moral, onde não há razão teórica para excluir os animais do círculo (ou comunidade) moral. Se, por um lado, a família utilitarista pretende alargar o ciclo moral aos animais, onde o maior bem ao maior número supõe o aumento de prazer e a ausência de dor, não se devendo, por isso, excluir os animais, dado que os mesmos também possuem prazer e dor; por outro, aparece-nos aqueles que à defesa dos interesses contrapõem com os direitos – uma perspectiva que seja uma alternativa sistemática do utilitarismo, nele encontrando algumas contradições inerentes ao princípio de utilidade, legitimado pela excepção de sacrificar o menor número de animais, para salvar milhares de pessoas.  
Tendo em conta que a igualdade é sempre um ideal ético, é sempre uma prescrição e não uma descrição, ou seja, por outras palavras, a igualdade é sempre uma característica moral, os primeiros críticos aparecem-nos a lutar contra a discriminação dos animais, dado que os preconceitos que discriminam moralmente a partir de características irrelevantes, acabam por subverter aquilo que Peter Singer defende – a elevação do estatuto dos animais ao estatuto moral dos animais. Segundo Cristina Becker “a noção de bem-estar (welfare), quando aplicada aos animais, adquire contornos e amplitude diversa, podendo ser utilizada em sentido comum ou técnico. Assim, há que distinguir, pelo menos, três acepções do termo: aquele que os próprios exploradores dos animais reclamam, o do senso comum e o do movimento de libertação dos animais”. Para Peter Singer, por exemplo, um interesse é sempre um interesse, independentemente do interesse, e quando argumenta em defesa dos animais não o faz por amor aos mesmos animais, mas por uma razão moral. O seu argumento principal vai no sentido de que, apesar de os humanos terem uma longa história de maltratar animais, não existe justificação moral para esse comportamento. Tal como escreveu Peter King, a propósito da teorização de Peter Singer, “no centro da sua moralidade está o facto de ser errado causar sofrimento desnecessário, mas o sofrimento não vem em qualidades diferentes, das quais apenas algumas são, moralmente, relevantes – não podemos condenar a dor causada a membros de uma espécie e ser indulgentes em relação à dor causada aos membros de outra, do mesmo modo que não o podemos fazer relativamente a diferentes raças ou sexos”. Em suma, Peter Singer defende um princípio da igualdade na consideração de interesses, forma emancipadora para os homens e também para os animais. A dieta vegetariana é, por assim dizer, uma dieta moral. Para o mesmo filósofo, a mesma dieta produz menos sofrimento e mais alimento a um custo ambiental mais reduzido.
 Por outro lado, Tom Regan, apesar de ter andado muito próximo de Peter Singer – assume que nem sempre foi um defensor dos animais –, viria a demarcar-se gradualmente das teorias libertadoras quando se apercebeu das consequências nefastas da perspectiva «consequencialista» do utilitarismo. A principal crítica ao utilitarismo é a possibilidade de abrir excepções; de violar os direitos dos animais em nome do benefício comum, em nome do maior número. Pelo facto de Peter Singer caracterizar os seres como receptáculos, abrindo, assim flancos ao “especismo” (não o combatendo eficazmente), estas excepções acabam por se tornar intoleráveis. Por isso, Tom Regan propõe uma perspectiva abolicionista. Se ele não defende a teoria libertadora de Peter Singer, tende a procurar outra argumentação – recupera Kant (defende o “valor inerente”) – não pensando à letra kantiana, mas a postular o “valor kantiano”: “Por exemplo, estes animais apreciam determinadas coisas e sentem outras como dolorosas. E, o que não constitui surpresa para ninguém, agem em conformidade, procurando encontrar as primeiras e evitar as segundas. Além disso, tanto os seres humanos como os outros mamíferos partilham uma família de capacidades cognitivas (uns e outros são capazes de aprender com a experiência, de recordar o passado, de antecipar o futuro), bem como a grande variedade de emoções”. Parafraseando Paul W. Taylor, considerado filósofo individualista da “Ética Ambiental Biocêntrica”, ao partirmos da perspectiva centrada na vida, temos obrigações enquanto membros da comunidade biótica terrestre: “Somos moralmente obrigados a proteger ou a promover o seu bem por si próprios […]. Assumir uma atitude de respeito para com a Natureza consiste em encarar as plantas selvagens e os animais dos ecossistemas naturais terrestres como portadores de dignidade inerente, o que os tornas sujeitos morais”. Segundo apreendemos das suas palavras, isso significa que a assunção da dignidade inerente de animais e plantas, deverá implicar que estes não possam ser tratados apenas como meios para os fins de alguém. Os seres humanos, têm, assim, obrigação e dever de promover, ou beneficiar, “o bem próprio das entidades possuidoras de dignidade inerente enquanto «fins-em-si» mesmas”. Estamos perante um imperativo ético que se nos apresenta o respeito pela Natureza, numa argumentação em que adquirem plena presença os conceitos da ética kantiana: “fim-em-si”, “dignidade inerente”, “dever”, “respeito”. Tal como um dia afirmaria uma professora da Universidade do Minho, de grata memória para nós, Ana Lúcia Cruz, acérrima defensora dos direitos dos animais, “os seres vivos não podem ser vistos como chávenas, mas como valor moral inerente”.
Depois disto, perguntar-se-á: Será que o homem não deve comer carne dos animais? Por certo que esta pergunta permanecerá no subconsciente de cada um de nós, nomeadamente pelo facto de, circunstancialmente, se estabelecer critérios da senciência como limite para definir quem é ou não digno de ser considerado membro da comunidade moral. Enquanto para Peter Singer “a aplicação do princípio de igualdade à inflicção de sofrimento é, pelo menos em teoria, bastante fácil de entender. A dor e o sofrimento são maus e devem ser evitados ou minimizados, independente da raça, sexo ou espécie do ser que os sofrem”, para Tom Regan, por exemplo, as consequências práticas da defesa dos direitos dos animais, passam pela dissolução da pecuária e do uso nocivo dos animais na ciência, porque eles não são coisas e, tendo em conta que, qualquer argumento baseado na comparação entre benefícios e danos, não se deve remeter apenas para a propositada enumeração dos benefícios, descorando ou procurando ignorar os danos relevantes: “Independentemente da sua lamentável tendência para minimizar os dados infligidos aos animais e da sua determinação inamovível em marginalizar alternativas não animais, os defensores deste argumento sobrestimam os benefícios em termos dos seres humanos atribuíveis à vivissecção, além de ignorarem redondamente os inúmeros danos infligidos aos seres humanos que constituem uma parte essencial da vivissecção”. Ainda para Tom Regan, a prática da vivissecção é errada do ponto de vista moral. Segundo I. Anna S. Olsson, autora do livro «Ética e Bem-Estar Animal», a teoria de Regan sobre os direitos dos animais pode não ser a única defesa possível contra a falta de respeito pelo homem, patente no utilitarismo – aceitar que se criem e matem certos animais para produção alimentar, desde que não haja dor ou angústia –, mas através de uma combinação “de utilitarismo e direitos moderados, a experimentação animal que seja promissora em termos de resultados para benefício humano é permitida, desde que se garanta aos animais a protecção contra dor, angústia e desconforto sérios”.
Terminaremos dizendo que, apesar de reconhecermos a “mea culpa” de sermos consumidores de carne – quiçá, um dia, revoguemos esta nossa cadeia alimentar –, somos pela “ética animal” e, por certo, não aceitaremos qualquer tipo de intolerância insultuosa por parte dos “gladiadores” ou aficionados das touradas. E sem nos pretendermos alvorar em moralistas ou objectores de consciências – porque sempre nos pautamos pelo princípio da tolerância e nada nos move contra os aficionados das touradas –, aconselhávamos, contudo, a leitura de Peter Singer «Escritos sobre uma vida ética», nomeadamente no capítulo de “Notas autobiográficas” – «Libertação Animal: Uma Perspectiva Pessoal», onde a dado momento o mesmo diz que “é vital que o movimento da libertação animal evite a espiral viciosa da violência. Os activistas da libertação animal têm de se posicionar irrevogavelmente contra o uso da violência, mesmo quando os seus adversários usam violência contra si”. De facto, essa será sempre – ou deveria ser – a postura dos defensores dos animais, dado que a luta para alargar a esfera da preocupação moral aos animais não humanos pode mesmo ser mais difícil e longa, mas, se for conduzida com a mesma determinação e o mesmo empenho moral, de certeza que também será ganha. E os defensores das touradas talvez, um dia, poderão vir a entender a imoralidade de tão repugnante espectáculo. O gosto embora possa ser estético (se nos referirmos ao que denominam de “arte tauromáquica”), nunca será ético, porque as críticas aos maus-tratos dos animais e à subsequente crueldade que se faz aos mesmos, sendo que as nossas tradições culturais não podem legitimar as nossas acções, leva a que Peter Singer venha a afirmar que “quase todos os sinais exteriores que nos levam a fazer inferências acerca da dor sentida por outros seres humanos podem ser observados noutras espécies, especialmente naquelas que se encontram mais próximas de nós, como é o caso dos mamíferos e das aves”. Pensem nisso!

N. A. – A imagem que ilustra este nosso desabafo (e não provocação), serviu de logótipo aos nossos artigos «Ponto Crítico», publicados no jornal dos trabalhadores dos ENVC “Roda do Leme”, pelos anos oitenta, do século passado.

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