Friday, December 13, 2013

“Verba volant, scripta manent” ou rito de passagem anim(b)alista!...

“Primeiro tem de se considerar que as disposições de carácter são de uma natureza tal que podem ser destruídas por defeito e por excesso tal como vemos acontecer com o vigor físico e com a saúde (é que temos que fazer uso primeiro do testemunho de coisas visíveis antes de chegar às invisíveis).”

Aristóteles (In, Ética a Nicómaco, 1104a1)

Embora possa parecer de uma forma desconexa ou descontextualizada, o propósito de abordarmos a “senilidade” e falta de ética (quiçá, de carácter) de alguns políticos, hoje iremos abordar a questão do “ritual” – inicialmente de inspiração religiosa, quando era suposto dois tipos de relações: dos homens com os deuses, e, inversamente, dos deuses com os homens; e que Claude Rivière afirma constituírem as primeiras “o domínio dos sacra (ritos sacramentais, sacrifícios, orações, apelando eventualmente para especialistas do oculto), os segundos são os signa, que dispensam o apelo aos sacra e dão a impressão de uma imediatez, apesar de estarem ligados a técnicas de interpretação que revelam da mística” – como uma performance, ou seja, como uma forma de representar, uma prática que tem um carácter repetitivo, uma certa regularidade mais resistente à mudança, estaremos em afirmar que tal acção (porque forma de agir) se “prescreve” num conjunto de actos repetitivos e codificados. Embora nem todos os comportamentos repetitivos possam ser designados de rituais, há por vezes práticas que, pela sua forma de estruturação, eficácia social e simbólica, podem, muitas vezes, conferir-lhes esse sentido. As praxes académicas e os jogos de futebol – com as suas claques –, por exemplo, se lhe conseguirmos descortinar um sistema simbólico inerente à acção, já que, através dessas práticas, os condimentos da oratória, da entoação e da canção, aliados à forma de trajar, podemos “imprimir-lhes”, circunstancialmente, algum sentido ritual. Mas, mesmo assim, são muitos os antropólogos que afirmam a inexistência de ritual nas praxes académicas e/ou nos jogos de futebol, ao conferir-lhes uma prática de divertimento, adaptação ao meio e/ou convívio.
No processo ritual – e parafraseando a antropóloga e nossa particular amiga Manuela Palmeirim – os actores reconhecem quem faz o quê, quando e como. Fazem-no, mas, muitas vezes, não sabem o que esses símbolos significam. Por isso, o ritual é normalmente acção, representação, a prática e não o que os símbolos significam. Aqui, o carácter emocional tem um grande significado. Para autores como Max Black, Tambiah e G. Lewis, importante são as regras, o que fazer e não o seu significado. É nesse sentido que – em oposição à ideia de que os rituais servem para “dizer ou comunicar qualquer coisa” – nos é dado afirmar que, normalmente, os mesmos servem para “fazer qualquer coisa”. Em suma, dizer é fazer, é instituir o mundo.
 Segundo Max Black, a linguagem ritual é de representação, de acção (performance) e essencialmente emocional. Por outras palavras, os símbolos não significam, têm essencialmente um valor emocional. Outro facto a salientar é que nos rituais a linguagem não se confunde com a linguagem comum, dado que as linguagens rituais são oratórias, entoações e canções. A canção, por exemplo, é uma linguagem por excelência ritual. Já Claude Lévis-Strauss (1908-2009) afirmara a difusão da linguagem, enquanto fenómeno de estrutura social, como unificadora de comunidades separadas em comunidades de língua única e o processo inverso de subdivisão em comunidades de línguas diferentes. Sem nos procurarmos desviar do nosso objectivo, “atentaremos” em reforçar a ideia de que a linguagem ritual ao permitir a sua estilização distancia-se assim da linguagem comum.
    

Voltando aos símbolos, recordaremos que Victor W. Turner, numa visão contrária a Lévi-Strauss, define os símbolos como uma abordagem interpretativa, sendo que, para ele, se quisermos penetrar na estrutura interna das ideias contidas num ritual, temos de compreender como é que os participantes nesse mesmo ritual interpretam os seus símbolos. É o próprio Turner que o afirma: Meu método é assim necessariamente o inverso daquele de inúmeros estudiosos que começam por extrair a cosmologia que frequentemente se expressa em termos de ciclos mitológicos e, então, passam a explicar rituais específicos como exemplos ou expressões de “modelos estruturais” que encontraram nos mitos. E dá como exemplo os ndembos – povo do noroeste da Zâmbia que, tal como os iroqueses, estudados por Lewis Henry Morgan (1818-1881), é matrilinear, e combina a agricultura de enxada com a caça, à qual atribuem alto valor ritual – que possuem muito poucos mitos e narrativas cosmológicas ou cosmogónicas. A oposição a Lévi-Strauss – e apesar de Turner concordar quando este acentua que o “pensamento selvagem” tem propriedades tais como homologias, oposições, correlações e transformações, as quais são também características do pensamento requintado – reside no facto de, por exemplo, no caso dos ndembos, os símbolos utilizados indicarem que tais propriedades estão envolvidas por revestimento material, forjado na sua experiência de vida. Victor W. Turner procura através da função social dos símbolos, descodificar o significado dos próprios símbolos, dado que para ele os símbolos não têm, forçosamente, uma significação única: Cada elemento simbólico relaciona-se com algum elemento empírico de experiência conforme claramente revelam as interpretações indígenas dos remédios vegetais. No fundo, a linguagem ritual não passa de uma linguagem emocional de baixo conteúdo proposicional, ou seja, de fracos enunciados. Os símbolos estão aí, ao dobrar de cada esquina…
E porque “ritos de passagem são aqueles que marcam momentos importantes na vida das pessoas” expressar-nos-emos – sem combinarmos a (ndembo) agricultura de enxada com a caça – pelo escrito de acabar com as pescas e a agricultura (incluindo “vacas leiteiras”), subtraindo, anos mais tarde, através do rito de passagem verbal, de voltar as atenções para o mar e o desenvolvimento da agricultura; pelo voto – a par da Margaret Tatcher e do cowboy Ronald Reagan –, da “não libertação” de Nelson Mandela, justificado no tempo presente, de forma verbal, pelo contexto documental de “um incentivo à violência”, só porque reafirmava “a legitimidade da luta do povo da África do Sul e o seu direito a escolher os meios necessários, incluindo a resistência armada, para alcançar a erradicação do apartheid”, evidenciando, ao mesmo tempo, um baixo conteúdo emocional, mesmo quando disfarçado de endeusamentos de circunstância, para ficarem bem na “fotografia”: «Eu tive o privilégio de conhecer Nelson Mandela. Inquestionavelmente, um dos maiores estadistas do século XX…». Palavras [anim(b)alistas] e expressões de “modelos estruturais” que não passam de desculpas esfarrapadas, revestidas (e ainda que nos tornemos repetitivos) de linguagem emocional de baixo conteúdo proposicional, ou seja, de fracos enunciados.
       Será que estamos a assistir a ritos de passagem? Talvez! Daí, e face às circunstâncias da nossa “crucificação” presente, continuarmos a acreditar e a formular: enquanto as palavras voam, o escrito permanece!

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