Friday, November 28, 2014

Viajando das «Outonias» aos «Poemas Tardios» com Domingos da Calçada!...

«Em “Outonias”, obra de poesia, publicada já no distante ano de 1988, Domingos da Calçada não se desterra da paisagem onde levanta o seu memorial, que é a sua aldeia-presépio de Durrães, rincão edénico onde se fez homem e poeta, do qual vive uma saudade antessentida e sofrida…»

Fernando Pinheiro

Já aqui uma vez escrevemos (Junho de 2013), a propósito de uma magnífica obra intitulada “Gente do Vale”, obra que premiaria a importância e a preponderância memorialista de Domingos da Calçada, um dos maiores – senão o maior – contistas que conhecemos até à presente data. Afirmamo-lo, na altura, com tal convicção, que não tememos a rotulação de uma presumível leviandade, que alguém nos pudesse imputar – tal a nossa estética convicção, da arte e literatura pelo gosto –, dado que já conhecemos os seus escritos há mais de trinta anos a esta parte, contextualmente tomada em boa conta, aquando da saída da obra de grande fôlego «Vale do Neiva: Subsídios monográficos» (1982), hoje uma raridade bibliográfica, onde Domingos da Calçada deixaria impressos seis magníficos trabalhos e um soneto. Esse soneto, qual “Senhor do Lírio” (…Agora, brilha ali bem mais escura / a luz que se desprende lá da altura / contra a muralha – ultraje do martírio / que dum recanto puro, abençoado, / sujou da mancha odiosa dum pecado / sem reparar, contra o Senhor do Lírio.) fazia antever a sensibilidade e a alma “Mater” de um poeta que, respirando, vivendo e sentindo, no dizer de Fernando Pinheiro, a sua “aldeia-presépio” de Durrães: Adoro-te, cantinho onde nasci, / jardim de virgens flores perfumadas, / sacrário aonde guardo as mais sagradas / recordações das horas que vivi! – citamos de «Outonias», p. 39, nos propõe em fazer desfilar “diante de nós na sua castiça espontaneidade, tão próprio do minhoto, e preenchem as suas cantantes parlengas com preciosos localismos que enchem a alma a quem gosta de ser seduzido pelas novidades semânticas e pela fantasia da linguagem”, paráfrase arrancada à nota introdutória ao brado poético «Poemas Tardios», magnanimamente assinada por Fernando Pinheiro, e com a qual corroboramos inteiramente.
Domingos da Calçada, pseudónimo literário – quiçá, de guerra – de Domingos de Castro Barbosa Maciel, nascido em Durrães, Barcelos, a 18 de Fevereiro de 1931, foi publicamente homenageado, em 4 de Julho do corrente ano, por altura da XXXII Feira do Livro de Barcelos, pela edilidade barcelense, na pessoa do seu presidente Miguel Costa Gomes, com o Grau Prata, Medalha de Mérito Cultural. Nesse mesmo dia, com a anuência da «Tertúlia Barcelense», foi dada à estampa «Poemas Tardios», pérola da poética regional, porque genuína, perfeita, sentida e saída do espelho da alma. Em segredo, numa cumplicidade assumida com o amigo comum, Mota Leite, já o havíamos lido em «Outonias» (conteúdo que, face à raridade, seria por nós fotocopiado e delicadamente encadernado). «Poemas Tardios», com dedicatória a preceito, ainda que exagerada nas suas deferentes considerações, admiração e estima, acaba por confirmar a nossa percepção, da elevadíssima dimensão de carácter, nobreza, humanismo e sensibilidade criativa em Domingos da Calçada: «Nascer Filho d’Algo ou pobre / que mais tem? Entendo eu / que na falta de Alma Nobre / até o mais nobre é plebeu…», porque «Há palácios brasonados / a atestar, na fidalguia / de ancestrais antepassados, / a mais torpe vilania – Verdade cirúrgica, ajustada à nossa condição de virmos todos ao mundo «à sombra do mesmo Fado: / – ladrão nobre, é porco imundo, / pobre sério, é Nobre e Honrado!» (p. 41).


«Poemas Tardios» é um magnífico livro de poesia, escrito por um não menos magnífico poeta – sim, não é poeta quem quer… –, porque, à boa maneira aristotélica, “encontra-se na epopeia e na tragédia e também na comédia e no ditirambo, bem como em grande parte na música da flauta e da cítara” (1441a 13-16): «Orgulho da minha Raça, / o Doce Rio, ao passar, / dando um ar da sua graça / nunca deixa de entoar / melodias de encantar, / como não consigo ouvir / em qualquer outro lugar / pois, este Rio, ao passar / no seu manso deslizar, / incapaz de se calar…» (p. 11), ou “realiza-se pelo ritmo, pela linguagem e pela melodia”, parecendo que «Poesia é virgindade, grito, anseio / de quem nasceu com alma inconformista / e grava doloroso historial, / burilando palavras escolhidas / e muito raramente compreendidas, / para compor estrofes / que são pedaços d’alma, a ressoar / em gritos de mudez interior / cristalizados no poema…» (p. 14) – simplesmente, sublime. Aqui, nestes «Poemas Tardios», a nosso modesto ver, não há temporalidades, porque da cinza reacendem-se primaveras, denunciando-se, ao mesmo tempo, falsos moralismos e hipocrisias, esses sim, intemporais: «Conheço ilustres senhores / que com toda a hipocrisia / se tornaram ditadores / a pregar democracia. / Há quem chame democratas / aos palhaços palradores, / que simulam as bravatas / engodando os eleitores…» (p. 26). E o Pavão expedito, que passa «a espenujar com jactância / o seu brio da distância / entre o zero e o infinito!» (p. 31), condimentado com o “cão rafeiro”, “camaleões” em trasmuda, “zaganeiros” (ratos enormes) de proa «da ladina rataria, / foram parar a Lisboa / aos cargos de Alta chefia.» (p. 36), e pessoas «em vaidosa presunção, / valem menos que a postura / ou a sombra do meu Cão / e, pensando nessa gente / embusteira, que conheço, / aumento ainda o apreço / pelo meu Cão da corrente!» (p. 37).
E porque seria despropositada a nossa suposta presunção de deambularmos de uma forma minuciosa pelo conteúdo desta maravilhosa poética, e porque achamos que a poesia não se explica (alheado ao facto de que não se pode inventar, o que inventado está), terminaremos citando o escritor-poeta e editor Fernando Pinheiro: “Ao longo de décadas, Domingos da Calçada foi coligindo histórias ouvidas directamente da boca do povo, para as fixar num registo literário que ultrapassa o plano da ficção propriamente dita, mercê do realismo com que estão impregnadas as personagens, as situações relatadas, os locais descritos. Quer isto dizer que a realidade não precisou de ser inventada, porque ela vive e permanece nas páginas das obras de Domingos da Calçada, e a sua representação simbólica permite ao leitor um emocionante com a experiência histórica de um povo que contra ventos e marés sofreu a canga da exploração, combateu as injustiças e lutou pelo seu progresso”. Subscrevemos inteiramente: «Da panóplia dos punhais / a embeber-me o coração / penetram muitos mais / os da pérfida traição!» (p. 38), sumula comportamental de uns tantos “Escariotes”, que “remordem de inveja / por eu ser quem quero ser / e não quem querem que eu seja!”. Assim é o saudável AREJO de Domingos da Calçada, escritor-cronista e poeta do Vale do Neiva, mas cidadão do aquém e além-mundo: «Ninguém como um poeta, sentirá / nos voos d’alma para além do aquém, / que o sonho vive lá, na zona etérea / e, para aquém do além, tudo é matéria» (p. 15). Matéria-prima, de alto quilate, diremos nós!   
          NOTA MÁXIMA!

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