Wednesday, June 17, 2015

Domingos da Calçada edita contos e crónicas do Vale do Neiva!...

«Enquanto esteve em Coimbra, fosse porque se tivesse embrenhado totalmente na conclusão do curso, fosse porque se sentiu comodamente amparado pelos costados da velha família que lhe esmaltavam a origem fidalga mais a ascendência castrense, desvalorizou a obrigação de se apresentar às inspecções militares e foi considerado faltoso.»

Domingos da Calçada

Com esta pequena citação, atrevemo-nos a dar-lhe o cunho pragmático do significado da virtude, assente na força, poder, poder de uma coisa, eficácia. «MUITOS PECADOS – POUCAS VIRTUDES», contos e crónicas do Vale do Neiva, virtudes e sabedoria do grande memorialista DOMINGOS DA CALÇADA, arquitecto da sabedoria, da palavra e do destino das gentes do Vale do Neiva, este HOMEM DO POVO onde o factor criativo se espelha na realidade que não precisa de ser inventada, porque, no dizer do seu editor e nosso particular amigo Fernando Pinheiro, «ela vive e permanece nas páginas das obras de Domingos da Calçada, e a sua representação simbólica permite ao leitor um encontro emocionante com a experiência histórica de um povo que contra ventos e marés sofreu a canga da exploração, combateu as injustiças e lutou pelo seu progresso». No dia 31 de Maio (Domingo), lá fomos até Durrães, num amplexo sincero a Tregosa, porque agora irmanada na “União de Freguesias”, para apresentarmos mais uma obra deste grande escritor que utiliza uma linguagem pura, peculiar, plena rusticidade e de termos caídos em desuso, imprimindo-lhe um estilo quase camiliano, no que toca à «violenta intromissão da consciência narradora no plano da expressão», no dizer de Eduardo Lourenço.


E começaremos precisamente pela Virtude, enquanto hábito que se torna possível, à boa maneira aristotélica, por haver previamente nela uma potencialidade ou capacidade de ser de um modo determinado. De facto, não basta contentarmo-nos com o dizer que a virtude é hábito ou modo de ser, antes é preciso dizer também de forma específica qual é esta maneira de ser em Domingos da Calçada, carácter específico do ser humano maravilhoso que ele é, bem próprio e intransferível, no sentido lato dos actos necessários à virtude, aquilo que faz que cada coisa seja o que é, sem máscaras ou artefactos similares, dado que, circunstancialmente, as máscaras retiram racionalidade à virtude.
Quanto aos pecados, aspectos catódicos da razão, inerentes à força abstractiva da inteligência humana, revelam-se através das funções da consciência, razão e memória. São esses os pecados de Domingos da Calçada: consciência, razão e memória. Acrescentaríamos, a inteligência auxiliada pelos sentidos, faculdades que apresentam o objecto que, abstraído das propriedades materiais e concretas, se unem à inteligência, derivando da natureza do ente. Daí, ser pacífica a dualidade impressa por Domingos da Calçada, entre os “muitos pecados e poucas virtudes”, ou vice-versa.
É evidente que não iremos aqui esmiuçar ou desvelar conteúdos deste magnífico livro de contos e crónicas do Vale do Neiva, pois se eventualmente o fizéssemos, face à subjectividade da nossa apreciação (sim, uma apreciação é sempre subjectiva), isso não seria bom nem para o autor nem para o editor, e, sobretudo, para os leitores. Compete-nos apenas aguçar o apetite dos potenciais leitores (compradores), glosando a caracterização das personagens, estados psíquicos, espaços temporais e comportamentais; a genuína expressão lexical do autor e a facilidade com que nos prende a sua criatividade literária.
Por este «Muitos Pecados – Poucas Virtudes» perpassam Regedores, daqueles que, ao tempo, «costumava dizer-se, consoante o padrão económico do meio, que era genericamente pobre, que quem tivesse um conto de réis a juros podia usar gravata e andar de costas direitas toda a semana, sem precisar de vergar a espinha a manejar a sachola»; criados de servir, materializados no Alfredo da Torre, «coitado. Poucos criados de servir foram mais tosados e explorados do que ele» e na Velhinha de Rosendo: «Falou muito, a velhinha, no pouco tempo de que podíamos dispor»; as histórias contadas, por um pedreiro de Durrães, chamado Adelino Fernandes do Campo, mais conhecido por Adelino Gateiras, um bom conversador que nos derradeiros anos de vida foi deixando para a posteridade várias histórias e casos, quer da sua própria vivência, quer do seu conhecimento pessoal, evitando com a sua verve que caíssem no vazadouro do esquecimento, realçando a do caso do “barrelo” do Tio Lãos de Santa Lucrécia: «Foi famosa a “casa das trancas” duma quinta de Cossourado, que serviu de exemplo ou modelo a várias outras de freguesias ao redor»; o Bento Peliqueiro, negociante de peles, «depois de mais duma semana por terras desconhecidas, sempre a caminhar, a passar fome e a cansar as pernas. O traste espalhou a falsa notícia da sua morte…»; o Ti’Joaquim e o “relaxe da décima”, permitido e auscultado pela Rosa da Fontainha, curadora de maleitas; a compra da espingarda por Antonces, «presumido e obcecado pela usura, que praticava sem o mínimo engulho moral, colocava o seu exclusivo interesse e imagem no vértice de uma pirâmide, cuja base esmagava os pobres e os simples…», ao Zé Sambento.


Por este magnífico livro de Domingos da Calçada, perpassam ainda gente incrível como o Zé da Beata, aquela pessoa que, segundo Domingos da Calçada, «nas suas bizarras conjecturas, se considerou como o mais importante exemplar da espécie humana que jamais existiu à face da terra…»; o professor Domingos Gomes e a pupila D. Amélia, «mulher enigmática, que punha especial cuidado no aspecto físico, sobretudo com o vestuário que lhe fazia sobressair as bem delineadas formações do corpo»; o Moisés, filho dum artista que foi desenhador e pintor de alta sensibilidade e reconhecido mérito, mas que «não encarreirou na esteira das tintas e do craião, que preenchiam as horas e o mundo intelectual do seu progenitor»; o Pato Velho e o Abade Marrancos (assim alcunhado pelas línguas afiadas em lanceta dos velhos capareirenses), dois feirantes que «entachavam tamancos para vender nas feiras e à porta, mas o Pato dedicava-se também à compra de cereais, sobretudo milho, com que chegava, numa só feira, a carregar em pleno um carro puxado a cavalos»; a Virgínia, aquela que «tinha perdido o homem dois anos e meio depois do casamento»; o doutor que trocava por outras a sua prendada senhora, como faziam os antigos reis, nobres e fidalgos; e, o Francelino da Mata, aquele cuja «inquietação dominava-o à laia de remorso…».
O acto perfeito da criatividade memorialista e literária de Domingos da Calçada, evidencia-se também na composição dos enredos, harmonizada pelo bem doseado antagonismo do pecado e da virtude. Nada como um bom enredo para podermos afirmar, com justeza, à boa maneira aristotélica, «que uma tragédia é diferente ou igual: é igual quando tem o mesmo nó e desenlace. Mas muitos que estruturam bem o nó elaboram mal o desenlace» (Poética, 1456a: 5-10). Ao contrário das preocupações educacionais de Aristóteles, Domingos da Calçada, é mestre em harmonizar o nó e o desenlace. São bem exemplo disso: Padres, Padrinhos e Padrecas; O Ladrão das Cabaças; O Inocente; O Rapinanço; e O Moreno. Tudo está em «Muitos Pecados – Poucas Virtudes», através das palavras, emoções, histórias e espaços colectivos, desejos, ideais, conflito de gerações, rectidão e frontalidade, inocências enganadoras, prosperidade e bem-estar, aventuras desventuradas pela ambição e a ganância. Tudo numa escrita escorreita, escorreitamente perfeita.          
         NOTA MÁXIMA!

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