«O autarca de Florença defendeu
ser imperativo investir numa cultura baseada na "sabedoria e conhecimento”
para evitar casos como o de uma professora que se demitiu por mostrar aos
alunos a estátua de David, um nu de Michelangelo.»
LUSA (30 março de 2023 – 14:41)
Nunca pensamos chegar
a assistir, em pleno Século XXI, ao desfecho de um dos maiores atentados contra
a Arte renascentista, perpetrado pelo ignorante assumo do puritanismo de um dos
pais de alunos de uma escola na Florida, nos Estados Unidos, ter protestado por
os alunos de uma turma, com idades entre os 11 e os 12 anos, terem visto um
homem nu sem censura, levando ao extremo inquisitorial de a diretora dessa
mesma escola ter que se demitir, apenas e tão só, por ter mostrado aos alunos
uma imagem da famosa estátua de David, do artista renascentista Michelangelo.
O autarca de Florença,
David Nardella, por exemplo, presente em Nova Iorque para assistir a um evento
das Nações Unidas, indignado e com estupefação, defendeu ser imperativo investir
numa cultura baseada na sabedoria e
conhecimento para evitar casos como este, acreditando que falta de
educação em humanidades e um turismo entendido apenas como entretenimento é que
pode levar a extremos desta natureza: Pensar que o David é um
símbolo de pornografia é a coisa mais estúpida que alguma vez ouvi. Ainda mais
quando é um símbolo do renascimento e da beleza – disse o presidente da câmara numa conversa com a EFE a partir
do Palazzo Vecchio, horas depois de
ter falado com a professora visada, Hope Carrasquilla.
David Nardella depois de uma longa conversa com
a professora, exultou-a pela coragem de não aceitar o ultimato que lhe
foi dado e de se manter coerente com o seu compromisso de ensinar,
tendo expressado, também, a solidariedade do povo de Florença para com ela,
prometendo entregar-lhe um prémio aquando da visita àquela cidade italiana, a
seu convite.
A notícia da demissão da professora, com
repercussões em todo o mundo, deu grande publicidade a esta cidade italiana que
já recebe milhões de turistas anualmente, um volume que não convence o
presidente da câmara, que se declara desapontado com o turismo baseado no consumismo
e no divertimento.
Para os mais incautos, a estátua de David trata-se
da escultura criada e concluída por Michelangelo entre 1501 e 1504 – com um
único bloco de mármore de quase seis toneladas –, e que está exposta na Galeria Accademia, em Florença, onde
recebe quase dois milhões de visitantes por ano, havendo ainda uma réplica em
exposição para transeuntes na Piazza
della Signoria, em frente à câmara municipal, considerada uma das grandes
obras-primas da Arte.
Michelangelo apresenta David como um jovem homem
momentos antes de enfrentar o monstro: os músculos estão rígidos, na mão
direita segura a pedra com a qual vencerá o inimigo enquanto na mão esquerda,
sobre o ombro, segura a funda. O olhar é confiante e concentrado direcionado ao
inimigo, com as sobrancelhas franzidas, as narinas dilatadas e lábios que
revelam certo desprezo por Golias.
Esta escultura em mármore, para além de mostrar
a habilidade artística do seu criador – em pormenores como a tensão nos
músculos e nas mãos, onde o mármore fica transparente e nos mostra as veias, e onde
notamos que o artista queria mostrar cada detalhe do que era capaz –, define,
também, a abordagem artística do Renascimento.
Infelizmente, David, enquanto figura bíblica, na
sua luta contra Golias, continua a enfrentar uns tantos Golias da “ignorância” (apesar
de quererem parecer bem-formados), preconceituosos e retrógrados, esperando, ao
mesmo tempo, que algumas mentes mais inquisitoriais não andem à procura de
querubins “menos bem compostos”, que poleiam pela talha de um ou outro altar em
Portugal ou, quiçá, na região.
Tal como o autarca de Florença, também nós
pensamos que a História da Arte
deveria ser mais ensinada, especialmente a Renascença e não apenas na Europa, e
se perdermos
de vista a cultura, também falharemos em campos como a tecnologia, a economia e
a física.
A não ser que a arte(manha) esteja a esconder a Arte!
(In, Amanhecer das Neves (Viana do Castelo), N.º 361, abril de 2023)
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