Sunday, July 29, 2012

“In perpetuam rei memoriam”: no centenário do nascimento de Jorge Amado (1912-2012)


“Foi um dos maiores escritores de língua portuguesa e, entre estes, o de maior projecção em todo o mundo. É injusto e inexplicável que não tenha sido distinguido, como tanto merecia, com o Prémio Nobel da Literatura”

Manuel Alegre

Não estaríamos aqui a falar do inesquecível e universalista escritor brasileiro Jorge Amado (1912-2001) se não tivéssemos em memória a sua passagem por Viana do Castelo e Ponte de Lima (tendo nesta multisecular vila descerrado uma placa na Adega Cooperativa local) nos anos de 1992 e 1993, e se no corrente ano não se comemorasse o centenário do seu nascimento (10 de Agosto). Se não bastasse tal facto, ainda temos a agravante de – como diria Fernando Henrique Cardoso – “a língua de Jorge Amado é um português que seduz todos os cinco sentidos, sabores e texturas. Um combatente que sempre esteve a favor da Justiça, ao lado dos oprimidos. Um criador que teve a coragem de pintar o Brasil em suas cores reais para a partir delas, propor sua utopia”. É este sentido dos sentidos, universalmente difuso, que sempre despertou em nós uma forte empatia pela sua escrita, as suas fantásticas criaturas e, nomeadamente, a sua mestiçagem cultural. Estamos plenamente de acordo com o que escreveu Miguel Real, em Agosto de 2001, aquando da morte de Jorge Amado, alegando de uma forma quase visionária “quando Jorge Amado chegar ao céu da igreja (que, não raro, tem sido o inferno dos escritores), deixando esta cidade de Salvador enlutada, não terá à sua espera a trindade cristã, Pai, Filho e Espírito Santo, mas a mais alta trindade da literatura brasileira da Bahia”. Miguel Real referia-se ao Padre António Vieira, que “denunciou os senhores dos engenhos de açúcar que, no Maranhão, em Pernambuco e na Bahia, nos séculos XVI e XVII, reduziam os índios à escravidão”; ao poeta setecentista Gregório de Mattos, que, nos seus versos barrocos, “dando voz ao povo mulato e pardo, aos mestres de ofícios, às mexeriqueiras de becos, escalpelizou a vida íntima e pôs a nu a consciência pesada das famílias burguesas e as perversões eclesiásticas de Salvador”; e ao poeta Castro Alves, poeta baiano da liberdade, “luta pela abolição da escravidão e pela implantação da República”.


Jorge Amado, tal como o nosso nobilíssimo José Saramago – depois de ouvirmos o Frei Fernando Ventura a falar da “fé” de José Saramago, retiramos a única pedra que tínhamos no sapato –, porque “geneticamente” vinculado ao “clube dos não-alinhados”, colocou a sua inspiração ao serviço – como escreveria Miguel Real, o qual subscrevemos – “dos negros faxineiros, dos meninos miseráveis, dos mulatos fura-vidas, das prostitutas de becos, dos cachaceiros de rua, dos brancos especuladores, dos comerciantes avarentos, dos coronéis tirânicos, dos jagunços bárbaros, dos capatazes despóticos, das viúvas recalcadas, das solteironas sensuais, das mestiças libidinosas, dos sindicalistas filantrópicos”. Jorge Amado, através das suas personagens, soube assim descrever de uma forma tão peculiar tanto as proezas velhacas do povo como os actos de solidariedade de que este se mostra capaz. Basicamente, este extraordinário escritor brasileiro cedo percebeu que (tal como diria Leodegário A. de Azevedo Filho) o verdadeiro romance nunca poderia ser aquele que copia a realidade contextual, mas o que tem força de agir sobre ela, transformando-a. Concordamos com Leodegário Filho quando afirma que no discurso literário de Jorge Amado “além dos elementos míticos, os elementos sobrenaturais rompem com o contexto, numa relação descontínua entre texto e realidade, abrindo-se então fecundo espaço para o imaginário”. A nossa grande frustração, enquanto leitores de Jorge Amado e pretensos “cabouqueiros” da escrita, é a de nunca termos tido a coragem de assumir, intelectualmente, a nossa “ignorância” e o princípio basilar da independência cognitiva – por influência de alguns críticos literários brasileiros e portugueses, chegando a pôr em dúvida a qualidade da sua obra –, no que toca à produção criativa e reveladora da realidade, ainda que contextual: «Nunca sou candidato a nada. Para um escritor nada é importante, tudo é circunstancial, a não ser o seu próprio trabalho. Nada pode acrescentar-lhe seja o que for. Só o trabalho conta» – disse-o um dia. É por isso que, para nós, Jorge Amado era um invulgar ficcionista.

Na verdade, este romancista, contista, dramaturgo, cronista e crítico literário brasileiro, de seu nome completo Jorge Leal Amado de Faria, esteve ligado a Viana do Castelo por laços afectivos e não só, onde granjeou muitos amigos – sendo de destacar Manuel Natário e Nuno Lima de Carvalho, imortalizados em “Tocaia Grande” como “Capitão Natário da Fonseca” e “Frei Nuno”, respectivamente; Amadeu Costa e Álvaro Salema, entre outros, carinhosamente referenciados em “Navegação e Cabotagem”; Abílio Lima de Carvalho, Sérgio Augusto, Carlos Branco Morais, etc. –, era filho de João Amado de Faria e de Eulália Leal, e nasceu na fazenda de cacau Auricídia, distrito de Ferradas, município de Itabuna, sul da Baía (Brasil), no dia 10 de Agosto de 1912. No ano seguinte ao do seu nascimento, uma praga de varíola obriga a família a deixar a fazenda Auricídia e a estabelecer-se em Ilhéus, onde viveu a maior parte da infância e que lhe serviu de inspiração para vários romances. Foi para o Rio de Janeiro, então capital da república, para estudar na Faculdade de Direito da então Universidade do Rio de Janeiro, actual Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Jorge Amado, o autor brasileiro mais publicado em todo o mundo, foi jornalista e envolveu-se com a política, tornando-se comunista, como muitos da sua geração. Em 1945, foi eleito deputado federal pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), o que lhe rendeu fortes perseguições políticas, tendo até sido proibido – tal como os seus livros – de entrar em Portugal. Viveu exilado na Argentina e no Uruguai (1941 a 1942), em Paris (1948 a 1950) e em Praga (1951 a 1952). Escritor profissional, viveu exclusivamente dos direitos dos seus livros, cujos conteúdos propõem uma literatura voltada para as raízes nacionais. Publicou ao longo da sua vida cerca de cinco dezenas de obras que se tornaram numas das mais significativas da moderna ficção brasileira. São temas constantes nas suas obras os problemas e injustiças sociais, o folclore, a política, crenças e tradições, e a sensualidade do povo brasileiro. A sua obra foi editada em 52 países e traduzida para 49 idiomas e dialectos. Foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 6 de Abril de 1961. Após a sua morte o seu lugar na Academia foi ocupado pela sua companheira de sempre Zélia Gattai, também escritora, de quem teve três filhos. Pela sua profícua actividade literária, recebeu no Brasil e no estrangeiro vários prémios, sendo de destacar a Comenda da Ordem de Santiago da Espada, atribuída pelo governo português, e a medalha da “Ordre des Arts et des Lettres” no grau de Comendador, pelo governo francês, aquando da comemoração do 50.º aniversário da sua carreira literária, em 1981; e o Prémio Camões, Portugal, em 1985.
Jorge Amado morreu no Hospital Aliança (Baía), onde horas antes dera entrada de urgência devido a complicações cardíacas de que fora acometido em casa, numa segunda-feira, 6 de Agosto de 2001, a quatro dias de completar 89 anos.

Impõe-se da nossa parte, por uma questão de gratidão universal, recordá-lo no Centenário do seu Nascimento, que ocorrerá no dia 10 de Agosto de 2012. Tal como diria Agustina Bessa-Luís: “Acaba-se a linha dos grandes momentos dos profissionais da literatura da ficção. Os leitores e amigos devem recordá-lo como um grande escritor romântico”. Assim será!

No comments: