Saturday, July 07, 2012

«Psychanalyse des contes de fées», o estado da nação e a indignação do nosso gato


“Há um tempo certo para determinadas experiências de crescimento, e a infância é o período de aprender a construir pontes sobre a imensa lacuna entre a experiência interna e o mundo real. Os contos de fadas podem parecer sem sentido, fantásticos, amedrontadores e totalmente inacreditáveis para o adulto que foi privado da fantasia do conto de fadas na sua própria infância, ou que reprimiu estas lembranças.”

Bruno Bettelheim

Ultimamente, andamos a tentar – apesar da nossa dificuldade na tradução – ler a edição francesa (Éditions Robert Laffont) do estudo de Bruno Bettelheim (1903-1990) – considerado psicólogo judeu norte-americano, nascido em Viena d’Áustria – «Psychanalyse des contes de fées», uma preciosa oferta da nossa amiga/irmã Maria do Carmo Rocha, e cujo conteúdo, contrariamente ao que se afirma muitas vezes, os contos de fadas não “traumatizam” os seus jovens leitores. Eles respondem de maneira precisa e irrefutável às ansiedades de crianças e adolescentes e exercem sobre eles uma função terapêutica informando dos próximos eventos e esforços necessários. Bruno Bettelheim faz-nos descobrir a riqueza inesgotável deste património intemporal, levando-nos a que, depois deste livro, nunca mais podemos olhar da mesma forma para os contos de fadas. No fundo, situando-nos de volta ao país mágico da infância e devolvendo-nos o encanto e maravilhamento dessa época, Bruno Bettelheim revela-nos nesta sua brilhante obra a inigualável importância dos contos de fadas que, para além do seu papel educativo, estimulam e libertam as nossas emoções de crianças, ou seja, um livro cuja leitura se torna essencial à memória das nossas infância e juventude: «Um adulto que não conseguiu uma integração satisfatória dos dois mundos, o da realidade e o da imaginação, se desnorteia com estes contos. Mas um adulto que na sua própria vida é capaz de integrar a ordem racional com a ilogicidade de seu inconsciente será susceptível à forma como o conto de fadas auxilia a criança nesta integração. Para a criança e para o adulto que, como Sócrates, sabe que ainda existe uma criança dentro do indivíduo mais sábio os contos de fadas exprimem verdades sobre a humanidade e sobre a própria pessoa». Queremos aqui realçar que Bruno Bettelheim, após a anexação da Áustria ao Terceiro Reich, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, foi deportado junto com outros judeus austríacos para o campo de concentração de Dachau e, mais tarde, para Buchenwald. Aí pôde observar os comportamentos humanos quando o indivíduo é sujeito a condições extremas, percepcionadas como radicalmente destrutivas (desumanização), que estiveram mais tarde na base das suas teorias sobre a origem do autismo. Graças a uma amnistia em 1939, Bettelheim e centenas de outros prisioneiros foram libertados, o que lhe salvou a vida. Emigrou então rumo aos Estados Unidos, onde foi professor de psicologia em universidades americanas e dirigiu o Instituto Sonia-Shankman em Chicago para crianças psicóticas, destacando-se o seu trabalho com crianças autistas.
Depois de volutearmos pela psicanálise dos contos de fadas, eis que somos confrontados com manchetes dos jornais nacionais, onde o despautério contrasta com oportuna análise de Bettelheim, quando afirma que as crianças de hoje não crescem mais dentro da segurança de uma família numerosa, ou de uma comunidade bem integrada: «Por conseguinte, mais ainda do que na época em que os contos de fadas foram inventados, é importante prover a criança moderna com imagens de heróis que partiram para o mundo sozinhos e que, apesar de inicialmente ignorando as coisas últimas, encontram lugares seguros no mundo seguindo seus caminhos com uma profunda confiança interior». Partindo da sentida e profunda confiança interior, nós e nosso gato – como que extraído de um conto de fadas, porque handicap ou libertador de emoções negativas – lemos com atenção o que, visualmente, se nos era oferecido: “Estado vai assumir dívidas de Duarte Lima e de Vítor Baía ao BPN”, manchete à qual não nos acresce qualquer tipo de comentário ou desenvolvimento, porque pantanoso habitat de muitos bem-sucedidos políticos e afins, alguns deles ainda bem instalados no poder; “Vale e Azevedo revela uma personalidade compulsiva: no Reino Unido também já deixou um rasto de burlas”, enfrentando nesse mesmo país uma acção que visa impedi-lo de continuar a gerir empresas; “Fisco perdoa luvas dos submarinos”, sendo que à volta desta manchete ficamos a saber que a Justiça alemã revelou que Jürgen Adolff, ex-cônsul honorário de Portugal em Munique, e Rogério d’Oliveira (oficial da Marinha com o posto de contra-almirante e ex-consultor do consórcio alemão) terão recebido comissões no âmbito da compra dos submarinos por Portugal, tendo o último declarado às Finanças um milhão de euros que estava depositado na Suíça desde 2006, mas cuja regularização tributária só foi feita em 2009, ao abrigo do regime excepcional que permitiu o regresso de capitais. Com a adesão ao regime excepcional, este mesmo (pretenso à imaculidade) militar, pagou apenas uma taxa de 5% sobre as verbas depositadas no UBS; e, finalmente, “Deputado do CDS propõe jovens fora da Segurança Social”, em cuja desenvoltura noticiosa ficamos a saber que o deputado do CDS Michael Seufert – tendo em conta à “ciência” há muito rejeitada (mas por nós estudada, por obrigação académica) da “fisiognomonia” o atestaríamos de “campónio”, com o devido respeito por aqueles que o são – estudante e um dos mais novos parlamentares portugueses, defende que os contratos para jovens que procuram o primeiro emprego deviam ser “mais flexíveis” e “isentos de contribuições para a Segurança Social”. Pasmem-se, para este jovem (a nosso modesto ver, ainda por “desmamar”) deputado, as empresas conseguiriam assim cortar trinta por cento nos custos com o trabalhador, e os jovens ficariam fora da Segurança Social. Tal “bacorada” vai mais longe, quando o mesmo admite que a proposta não seja “politicamente correcta”, mas a sua ideia é “embaratecer a contratação sem mexer nas remunerações”: «Entre estar desempregado sem apoio ou com um apoio fraco e ir trabalhar e poder fazer a diferença, acho que era preferível trabalhar» – disse, ou seja, pela profundidade do seu pensamento, colar-lho-íamos à velha máxima de Lili Caneças “o estar morto é o contrário de estar vivo”. Aqui, o nosso gato lançou um balbuciante miar, querendo dar razão aos que acham que há deputados a mais no parlamento. Tornar a máquina do Estado cada vez mais pesada e “vomitar” tão inadequadas – porque patéticas – palavras é dar razão a Bruno Bettelheim quando escreve que «o destino destes heróis [?] convence a criança que, como eles, ela pode-se sentir rejeitada e abandonada no mundo, tacteando no escuro». Para este “herói” da política, a sua geração é do Erasmus e da migração. Talvez fosse uma razão plausível para nunca se ter sentado na cadeira das mordomias, creditadas pelos nossos impostos. Emigrava de vez e estava o caso resolvido…


Pela positiva lemos que Mia Couto escreve para “acalmar os fantasmas” e quase não entende por que recebe prémios. Admite ser caótico no que toca ao método de trabalho e cada vez que parte para um livro sente os mesmos medos com que iniciou a primeira obra. Assim é a humildade que caracteriza os grandes escritores.
Pela negativa, constatamos a colagem bajuladora do director do jornal SOL, José António Saraiva, ao actual Governo da nação. Face aos seus bem “masturbados” editoriais, às vezes temos pena da sua manietada procura do consenso, porque nos cheira a encapotada militância ideológica: «Penso que, no braço-de-ferro europeu, quem tem razão é Merkel e não Hollande» (este ilustre director, se tem esperado alguns dias teria assistido à acção combinada de três países fortes – a Itália, a França e a Espanha – que obrigou os alemães a aceitarem a contragosto que a Europa tem mesmo de ajudar os países em dificuldades e não massacrá-los com austeridade inútil e desgastante. Finalmente, os países europeus conseguiram obrigar Merkel a corrigir o rumo desastroso que escolheu desde 2010 e que tem produzido os mais terríveis resultados na Grécia, na Irlanda, em Itália, em Espanha e também em Portugal) (…) «É preferível haver mais guerras políticas internas, mais instabilidade social – a voltarmos a uma situação de desequilíbrio e descrédito internacional, má sob todos os aspectos», ou ainda «Ainda bem que o Governo não cedeu», compasso de espera que deontologicamente se exigia para se aperceber a tempo e horas que o deficit português, em vez de descer como previam os defensores da austeridade, aumentou! Ficamos assim a saber que Portugal, tal como os outros países, ainda não se livrou da terrível espiral depressiva em que a Merkel nos obrigou a entrar, mas pelo menos há uma nova esperança, a de que os diferentes rumos que a Europa agora escolheu nos livrem desta triste e humilhante miséria em que nos obrigam a viver. Mais uma vez, José António Saraiva falhou na sua análise. Enfim, o jornalismo e os jornalistas que temos!  
Infelizmente – em face da situação presente –, apercebemo-nos que o nosso gato anda cada vez mais indignado (para não dizermos stressado) e, porque conscientemente cúmplices, por simpatia vai-nos contagiando também. Mesmo assim, em cognoscibilidade à criança que há dentro de nós – qual conto de fadas –, é nele que continuamos a confiar. Verdadeira e eticamente falando, ao contrário dos políticos ou de alguns jornalistas de “pacotilha”, o nosso gato é um filósofo em crescente. Preferimos o Gato das Botas ao Pinóquio!

2 comments:

Carla said...

Gosto do Betelheim (mas em português, se faz favor, que em francês demoro mais tempo a ler...), gosto de contos de fadas, e gosto do gato. Só não gosto do Duarte Lima e as suas dívidas, nem do Vale e Azevedo nem da Lili.
E também prefiro o Gato das Botas!

gatosapatos said...

Quando olho para o estado do país e mesmo do mundo, penso: "Só queria ter nascido gato"!