“Mas
esperava-me uma triste surpresa em Giela: as ameias do palácio – mais de uma
dúzia – tinham acabado de ser arrancadas e estavam no chão, algumas desfeitas
em pedaços, outras inteiras, porque a rijeza do granito aguentou a pancada da
queda. Sentia-se que a selvajaria era recente; era como uma ferida que ainda
sangrava”.
José Hermano Saraiva (O Tempo e a Alma)
Sempre que pretendemos
descomprimir as dilacerações da mente, procuramos deambular pelas mais
pitorescas e agradáveis paisagens do Alto Minho, enriquecidas pela fertilidade
dos seus vales e pela altitude e beleza das suas montanhas. Felizmente que é
essa a sensação que sentimos quando amiudadamente nos deslocamos até “Terras de
Valdevez”, cuja posição geográfica lhe empresta a cumulação de uma poética
luxuriante, bem no coração do Vale do Lima, recortada também pelo não menos
mitológico Rio Vez, que nasce e desagua dentro do concelho. Já não era a
primeira vez que nos predispúnhamos a visitar Arcos de Valdevez e, de uma forma
particular, o multisecular Paço de Giela (classificado de Monumento Nacional, através
do Decreto de 16 de Junho de 1910), localizado a cerca de quilómetro e meio da sede
do concelho, na encosta duma pequena elevação, que domina o vale, quase
fronteira à vila. Trata-se de um solar fortificado, uma autêntica preciosidade medieva,
cuja origem está profundamente ligada à origem e formação da terra de Valdevez.
O Paço de Giela, aí
pelos anos vinte do século XX, é descrito por Luís de Figueiredo da Guerra
(1853-1931) como um edifício que se compõe “do alcácer voltado ao sul, tendo
junto para o nascente uma alta e forte torre quadrada, cuja única janela olha
para poente; na sua coroa de ameias, sobre setentrião, existe ainda um machiculis ou parapeito de guarita: o
palácio no gosto manuelino data dessa gloriosa época, e assaz conservado
apresenta uma bonita janela ou varanda de honra, encimada pelo escudo dos Limas
de Galiza (Limas, Silvas e Sottomayores); o senhoril cubo roqueiro é obra dos
fins do século XIV ou princípio do XV, mas posteriormente reedificado: notam-se
nele vestígios de três pavimentos, achando-se apenas ligado por uma quina ao
Paço, servindo actualmente de asilo a pombas. Este morro sobre que assenta o
castelo é contraforte do monte do Morilhões, que fecha o vale pelo nascente”.
Aos nossos olhos, e face a uma investigação efectuada em termos
arquitectónicos, podemos dizer que se trata de uma preciosidade medieva, constituída
por dois corpos distintos, denotando que ambos eram denticulados de ameias: o
torreão medieval (século XIV) da construção primitiva, e a residência paçã, de
estrutura quinhentista. A torre de planta quadrangular, é provida de seteiras e
de um balcão de mata-cães. A residência senhorial, forma um vasto rectângulo
com quatro fachadas. Está arrimada ao torreão e tem um andar rústico.
Valorizando a construção, ainda que de linhas simples, a portada de acesso,
protegida por um arco de volta redonda, sobre a qual poisa a varanda da sacada,
trabalhada em cantaria. Nesta fachada, voltada a Norte, rasgam-se duas janelas
de estilo manuelino, intercaladas entre outras duas, de molduras lisas e linhas
sóbrias, o que faz denotar ser de época posterior. A face oriental, tem duas
janelas, sendo uma delas chanfrada e, no alto, quatro modilhões. Na fachada
oposta, sobressai uma bem estilizada janela, curiosa pela sua decoração com
cordame manuelino, encimada por uma pedra de armas que, face à dificuldade de
leitura pela arrizada cobertura de vegetação, a fazer fé em Figueiredo da
Guerra será dos Limas (Limas, Silvas e Sottomayores). Aliás, por cima da
portada de acesso também ostenta uma singela pedra de armas, bastante
desgastada, que heraldicamente deveria conter os mesmos apelidos. Inferiormente
à janela manuelina, e num recanto, uma acanhada porta ogival, com o limiar
afastado do chão. Na área envolvente a esta preciosidade arquitectónica existem
outros edifícios, também em ruínas, que dizem ter servido de residência aos
caseiros, e uma arruinada capela engolida pela vegetação, cujo patrono era
“Santa Appolonia”. De uma forma sucinta, dado que o espaço desta crónica – e
disso temos consciência – não nos permite alongar muito mais o nosso “apaixonado”
devaneio pelas coisas da nossa terra (do Lima que nos viu nascer e nos vai
inspirando), convenhamos em dizer que em 2 de Janeiro de 1399 deu D. João I,
estando no Porto, a seu vassalo Fernão Anes de Lima, daquele dia para todo o
sempre, para seus filhos, netos e descendentes legítimos por linha direita, as
terras de Fraião em Coura, de S. Martinho, de Santo Estevão (Facha e Geraz), e
de Valdevez, com todos os seus lugares, termos e suas herdades, casais, rendas,
direitos, foros e pertenças, com suas entradas e saídas, rocios, montes,
fontes, rios, ribeiros, pescarias, colheitas, montados, tabeliões e todas as
outras coisas que às ditas terras pertencem; e ainda a sua jurisdição civil,
crime, e mero império, com todos os outros direitos temporais e reais, assim
como el-rei os possuía, reservando somente a correição e alçada. Este mesmo
monarca lhe fez nova mercê quando estava no arraial sobre Tui, em 24 de Junho
daquele mesmo ano de 1399, doando-lhe a casa e honra de Giela, que se achavam
vagas na coroa. Segundo Figueiredo da Guerra, “esta linhagem procede de Limia
na Galiza, donde tomaram o nome; Fernão Anes tomou o partido de Portugal, e
viveu em Valdevez, jazendo à porta da igreja paroquial de Giela; seu filho
Leonel de Lima, como primogénito, herdou a casa da Giela”. E foi assim que tudo
começou!
A última vez que aí nos
deslocamos foi no domingo, 4 de Novembro de 2012, e levávamos connosco a “má impressão”
das visitas anteriores e o longínquo testemunho (1986) negativo de José Hermano
Saraiva (1919-2012) – O atentado cometido
no Paço de Giela vem agudizar o sentimento de urgência de intervenções neste
sentido. O nosso património artístico e monumental está a desaparecer
rapidamente –, mas também a esperança deixada (e/ou prometida) pelo
município arcuense, dinamicamente liderado por Francisco Araújo, em Novembro de
2011, aquando da divulgação do “Concurso de Ideias” para requalificação do
espaço envolvente ao Paço de Giela, já que é proprietário deste importante
imóvel desde 1999, cujo declínio e abandono se começaram a acentuar a partir do
século XIX. Na altura, foram divulgados os três primeiros classificados do
concurso de ideias internacional lançado pelo município, em colaboração com a
Ordem dos Arquitectos da Região Norte, para a referida requalificação da área
envolvente ao Paço e edifícios anexos, a qual corresponde aproximadamente a
17,8 ha: (1.º) ABDA – Arquitectos Botticini – de Appolonia e Associati, SRL;
(2.º) CVDB Arquitectos Associados; (3.º) Giovanni Alessandro Piovene Porto
Godi, Vasco Miguel Pinel de Melo e Mónica Ravazzolo. Segundo foi dito, também, que
“os concorrentes encontraram soluções que asseguram a valorização dos edifícios
existentes, respeitando o cariz específico do local e acima de tudo o Paço e a
forma como é visto, bem como a efectiva comunicação da zona em questão com a
área urbana da Vila”. Aplaudimos a iniciativa, ainda pelo facto de explorarem
temáticas como a “água” e o “garrano”, assim como a criação de condições para a
realização de actividades desportivas, culturais e turísticas, projectando um
Anfiteatro ao ar livre e uma Unidade Hoteleira.
Mesmo tendo nós consciência das dificuldades inerentes à conjuntura
económica presente, que o país e a Europa atravessam, esperamos ansiosamente
pela segunda fase do projecto de recuperação do Paço de Giela e área
envolvente, que passará pela adjudicação da obra e sua concretização. Será bom
para o município e, sobretudo, para toda a região alto minhota!
9 comments:
Um sítio bem giro :)
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