Wednesday, April 30, 2014

O utilitarismo numa perspectiva ética

“A atenção dada pelo Utilitarismo às consequências das acções é genuína exigência ética e indiscutível factor de aceitação do Utilitarismo, bem como a benevolência generalizada que propugna…”

Professor Doutor Roque Cabral‏

Mesmo que alguém possa por em causa algum “formalismo” na teoria utilitarista – corrente ética que engloba diversas doutrinas, que têm em comum avaliar moralmente as acções exclusivamente segundo o carácter vantajoso ou não das suas consequências –, ao assistirmos a transformações profundas nas atitudes morais, nomeadamente no último quartel do séc. XX e início deste século e/ou milénio, estaremos em admitir que esse possível “formalismo” trouxe alguma mudança de atitude, principalmente quando hoje falamos com a maior das transparências – ainda que as questões continuem a ser controversas e podemos defender qualquer das partes sem pôr em risco o nosso estatuto intelectual ou social – acerca do sexo extramatrimonial, da homossexualidade, da pornografia, da eutanásia ou mesmo do suicídio. Apesar destas questões continuarem a ser controversas, o mesmo não se passa a nível da igualdade, dado que houve uma alteração de atitude em relação à desigualdade da cor da pele e sexual: os pressupostos racistas partilhados pela maioria dos Europeus na viragem do século são hoje totalmente inaceitáveis, pelo menos na vida pública. Um poeta não podia hoje escrever sobre «raças inferiores à margem da lei» e manter – na realidade, aumentar – a sua reputação, como fez Rudyard Kipling em 1897. Exemplo disso é o abandono do apartheid por parte da África do Sul, delegando no nosso subconsciente o princípio de que todos os seres humanos – e aqui, mais uma vez, referimo-nos à única raça existente no planeta, a raça humana – são iguais, fazendo parte da ortodoxia política presente e da ética dominante, ética essa que acabou por derrubar preconceitos dentro da comunidade moral. Citando John Rawls, Peter Singer acaba por afirmar que a «personalidade moral» é uma propriedade que todos os seres humanos possuem por igual: por «personalidade moral» Rawls não quer dizer «personalidade moralmente boa»; ele usa o termo «moral» em oposição a «amoral». Uma pessoa moral, segundo Rawls, tem sentido de justiça. Segundo Peter Singer, em termos gerais, poder-se-ia dizer que uma pessoa moral é aquela a quem se podem fazer apelos morais com alguma perspectiva de esse apelo ser atendido. Para John Rawls, a «personalidade moral» – ainda que a sua utilização não esteja isenta de problemas, tendo em conta que, na verdade, nem todos os seres humanos são pessoas morais – é, assim, a base da igualdade humana, assente numa perspectiva que, segundo ele, decorre da sua abordagem «contratualista» da justiça. Esta tradição “contratualista” encara a ética, na óptica de Peter Singer “como uma espécie de acordo mútuo benéfico”.


Pelo facto dos seres humanos diferirem como indivíduos, e não como “raças” ou “sexos”, a superação destes preconceitos dentro da comunidade moral torna-se exigível e, eticamente, essa superação – porque conscientes de que o princípio da igualdade é a «acção afirmativa» – deve impulsionar-nos para a necessidade do alargamento e integração de novos membros. Ao superarmos o “racismo” e o “sexismo”, devemos caminhar para a superação do preconceito de espécie (“especismo /especiesismo”). Por proposta dos autores anteriormente citados, e face aos avanços da reflexão moral, facilmente concluiremos que não há razão teórica para excluirmos os animais da comunidade moral.
Citando Paul Taylor, por exemplo, Maria José Varandas chama-nos à atenção para o facto de as éticas biocêntricas defenderem que qualquer organismo, animal, planta ou microrganismo, tem valor intrínseco, já que todo o ser orgânico é, em si mesmo, uma unidade dinâmica de autopreservação e auto-realização, constituindo cada existência individual a realização do bem próprio do organismo, bem esse que se manifesta como instinto ou impulso vital. Ainda segundo o mesmo pensador, ao partirmos desta perspectiva centrada na vida, temos obrigações enquanto membros da comunidade biótica terrestre: Somos moralmente obrigados a proteger ou a promover o seu bem por si próprios […]. Assumir uma atitude de respeito para com a Natureza consiste em encarar as plantas selvagens e os animais dos ecossistemas naturais terrestres como portadores de dignidade inerente, o que os tornas sujeitos morais. Aliás, disto já aqui falamos em anteriores crónicas.  
Será que o homem não deve comer carne dos animais? Por certo que esta pergunta permanecerá no subconsciente de cada um de nós, nomeadamente pelo facto de, circunstancialmente, se estabelecer critérios da “senciência” como limite para definir quem é ou não digno de ser considerado membro da comunidade moral: Deus abençoou Noé e os seus filhos, e disse-lhes: «Sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra. Sereis temidos e respeitados por todos os animais da terra, por todas as aves do céu, por tudo quanto rasteja sobre a terra e por todos os peixes do mar; entrego-os ao vosso poder. Tudo o que se move e tem vida servir-vos-á de alimento; dou-vos tudo isso como já vos tinha dado as plantas verdes (Col. 2, 16; Tim. 4, 3 s). Somente não comereis a carne com a sua alma, o sangue (17, 14; Act. 15, 20 s). Ficai também a saber que pedirei contas do vosso sangue a todos os animais, por causa das vossas almas; e ao homem, igualmente, pedirei contas da alma do homem, seu irmão (Gen. 9, 1-5) – com as devidas desculpas pela abusiva “apropriação” das citações bíblicas.

Daí, a pertinência da questão: Será que o Utilitarismo, ao propor-se ao princípio de utilidade, legitimado pela excepção de sacrificar o menor número de animais, para salvar milhares de pessoas, estará a contribuir para uma verdadeira perspectiva ética? A pergunta fica no ar!     

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