Friday, January 31, 2014

“Monstros Antigos” em Porfírio Silva!...

“De toda a poesia portuguesa lida em 2013 — estou a falar de inéditos de consagrados, novos e novíssimos —, Monstros Antigos é o livro que mais me instigou…”

Eduardo Pitta

Se eventualmente o título desta nossa crónica pudesse intrigar todos aqueles que, semana a semana, fazem o favor de nos ler, depressa se excluiria tal pressuposto, tendo em conta que o Porfírio Silva em “referência titular” é um filósofo da ciência, cujo trabalho mais recente se centra no tema das sociedades artificiais e no papel social dos robôs. De facto, este Porfírio (Carvalho) Silva (n. 1961), é licenciado e mestre em Filosofia. Doutorou-se em Epistemologia e Filosofia das Ciências, em 2007, com uma tese sobre as ciências do artificial como ciências do humano. Foi Investigador Visitante no Institut Supérieur de Philosophie, da Université Catholique de Louvain, e na Facultad de Filosofía da Universidad Complutense de Madrid. É actualmente investigador no Instituto de Sistemas e Robótica (pólo do Instituto Superior Técnico), como bolseiro de pós-doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia. Aí, tem sido organizador dos Ciclos de Conferências com o título genérico “Das Sociedades Humanas às Sociedades Artificiais”, actividade multidisciplinar que teve em 2011 a sua terceira edição. Publicou os livros A Filosofia da Ciência de Paul Feyerabend (1998, Piaget), A Cibernética: Onde os Reinos se Fundem (2007, Quasi), Das Sociedades Humanas às Sociedades Artificiais (2011, Âncora) e Podemos matar um sinal de trânsito? (2012, Esfera do Caos). É colaborador do Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa e do Projecto MILPLANALTOS.


Regressado há cerca de quatro meses (22 de Setembro de 2013) do Japão, onde esteve como Investigador Visitante no Department of History and Philosophy of Science (Graduate School of Arts and Sciences) da Universidade de Tóquio, Porfírio Silva acaba por nos surpreender com a publicação de «Monstros Antigos», numa bem conseguida edição, porque esteticamente perfeita, da “Esfera do Caos Editores”. E de nada lhe vale dizer que “não passo a ser poeta por escrever um livro de poesia. Podia, pois, hesitar em publicar. Só que não há tempo para burilar justificações: esta é uma poesia da urgência, uma poesia necessária, algo que poderia adiar em tempos de lassidão – mas não hoje. É duro afastar o nevoeiro com as mãos nuas, mas é preciso tentar. Quem diz com as mãos, diz com as palavras”, quando a percepção que temos da poesia, enquanto essência do estar e do ser, leva-nos a creditá-lo como um poeta desentrincheirado, de urgência: “Escrever poesia é uma necessidade quando o dia do cão negro espreita, quando se desequilibra a única aresta do tempo onde passados e futuros se encontram. O que é difícil, em tempos difíceis, é não meter os poemas em trincheiras. Temos de evitar a todo o custo que os poemas se metam em trincheiras. As trincheiras, mesmo que se destinem a ser sepulturas, são cómodas: dizem-nos de que lado estamos, quem supostamente são os nossos e quem supostamente são os outros, para que lado disparar. / Só que uma poesia de urgência não pode entrincheirar-se. Pelo contrário, tem de encontrar os caminhos para se chegar aos sítios onde sempre se esteve e que continuam a parecer pátrias estrangeiras. Porque só o estranho pode tornar-se uma pátria” – lemos em sinopse.


Embora “Monstros Antigos” não seja de leitura fácil para o mais comum dos mortais, principalmente em tempos em que “há palavras por todo o lado / comportando-se com o esvoaçar quebrado dos mosquitos” (p. 63), teimaremos em dizer que estamos perante um extraordinário livro de poesia, que se apresenta como um excelente exercício para mente, mesmo para aqueles que se possam achar menos pensadores. É evidente que a poesia não se explica, sente-se e apreende-se deliciosamente (ou não), mas, mesmo assim, não resistimos à aproximação da “tempestade de silêncio”, onde “as palavras e as bocas desencontraram-se na poeira do mundo” (p. 7). Neste entrosar de palavras, Porfírio Silva acaba para nos despertar para o sentido filosófico dos espaços temporais, físicos e cognitivos; da génese e da “mutação das formas”; do apocalipse criado dentro de nós: “Descubro dentro brinquedos partidos, / mais do que os deixados pela infância. / Carrinhos e bonecas, dardos, arcos e enigmas / desarrumados e sujos dizendo-me que / crescer é aceitar que somos piores / e mais pequenos do que o pensamento” (p. 16); da “separação em espaço e senso, rasgo tenso adrede” (p. 18); da essência da política, onde “o poeta desce aos campos de trigo e cevada / para matar cada ratazana com uma rima” (p. 21), do sorriso, do olhar, da brisa, da lágrima, do toque, do silêncio, da palavra, da âncora, da ponte, do segredo, das memórias, do odor; do “sofrer dores duras como as do parto, / saudoso das antigas crises existenciais, / das que lembram livros e boa filosofia, / antes, durante e depois de um jantar farto” (p. 26); do evitar das palavras metafísicas; da alegoria da caverna, onde “Só as pessoas vêem, não os seus olhos: / estamos sentados num filme de sombras / num futuro certo o Sol vai sucumbir / e todos reclamam que nada importa / num tempo tão depois de agora” (p. 37); dos milagres; da “autoridade do legislador a quem incumbem as definições legais” (p. 42); da máquina de colar as asas nos anjos; do “argumento das mãos sujas à origem do universo” (p. 45); do “impacte visual esperado sobre as superfícies” (p. 51); dos construtores de almas, tendas onde os animais se abrigam, “ao lado dos seus irmãos e dos seus medos” (p. 52); do cruzamento de perguntas e respostas mal emparelhadas; da ficção metalúrgica, onde “as estátuas em bronze da santidade e do pecado, / sobrevivas por séculos ao santo e ao pecador em pessoa” (p. 64); do “pássaro pesado sem asa” e do “navio ferido sem vela”; do haver um ar de luz nas palavras; da escada que não nos leva a lado nenhum: “Mais exacta e capciosamente, / a escada leva à copa das árvores / onde só habitam pássaros (e) refugiados” (p. 75); da fábrica do mundo, onde “as linguagens, como os continentes, derivam e apartam-se” (p. 76); e, a terminar, do fragmento de uma biologia dos monstros antigos, onde poderá perguntar se “estará no poder da tua [nossa] fábrica / compreender a génese ao ponto / de estruturas corporais espantosas resultarem, / produzindo novos monstros antigos, / metade palavra metade silêncio, / vivendo ora nos teus ora nos meus medos?” (p. 79). E, porque temos a noção do limite da nossa contingência (em oposição ao necessário), por aqui nos ficamos, deixando aos outros possíveis leitores deste magnífico – para nós, claro – livro de poesia, a liberdade de interpretação, mesmo que não se venha a saber “quem move o mundo”.
Tal como aconteceu com Eduardo Pitta, também nós fomos instigados à leitura deste “Monstros Antigos” do nosso homónimo Porfírio Silva, e gostamos.

Nota máxima… Leitura que se recomenta!                 

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