“Recordar
a figura e a obra do Prof. Doutor Amadeu Rodrigues Torres é uma tarefa difícil,
dada a sua enorme riqueza pessoal e vastíssima obra literária e científica que
felizmente podemos apreciar”.
José Maria Costa
Foi no dia 9 de
Fevereiro de 2012 – por isso, faz amanhã um ano – que Amadeu Rodrigues Torres
(Castro Gil), professor catedrático, poeta em vernáculo e em latim, escritor e
linguista, deixou esta atribulada vida terrena para viver hoje o eterno
descanso dos justos, local onde nada pode ser medido pelo tempo, porque
projecção do mesmo no infinito. Poderíamos hoje repetir o riquíssimo percurso
vivencial deste nosso amigo/irmão – plasmado em dezenas de artigos e
dissertações que publicamos a seu respeito, ao longo de mais de duas décadas –,
mas somos forçados a acautelar esse pragmatismo, onde “toda a função do
pensamento consiste em produzir hábitos de acção”, por forma a não banalizarmos
a sua dimensão intelectual, recentemente muito mal tratada num maldizente
“escanganho”, disfarçado de “geografia literária”, onde nem Domingos Tarrozo
escapou à “degringolade”. Felizmente que Castro Gil partiu para a eternidade –
quantas confidências, Deus meu!... –, sabendo desta ciumenta animosidade. Mas, para
não cairmos na síndrome do espertalhão que “urde o desfalque e a falcatrua”,
vamos mesmo ficar por aqui…
Como atrás referimos, não nos vamos repetir em minuciosas descrições biográficas – dado que já o fizemos em muitas e variadíssimas publicações periódicas –, porque temos o agradável privilégio de ter “entre mãos” a última obra publicada em vida (15 de Dezembro de 2011) deste ilustríssimo VATE universal, obra essa que nunca chegou a ser difundida pelos escaparates livreiros. Trata-se do quinto volume de “No espólio de Juvenal e noutros”, onde, sem máscaras ou subterfúgios, Amadeu Torres (Castro Gil) se nos revela um poeta sem “caruncho”, atento ao mundo que o rodeia e predisposto a descer do “pedestal” a que, meritoriamente, tinha direito. Apesar da cátedra e clerical função de cónego, ouvimo-lo bradar corajosamente o “escândalo de arromba num país de tanga, / Com cresos mil e mil que não ouço geniais; / Pulha administração-gestão, tropa-fandanga / Que, ao chupar tanta teta, ainda quer mamar mais” e, onde “A alta cultura é hoje a eureira nas hortas; / O espertalhão urde o desfalque e a falcatrua. / A corrupção é mais corrupta em gradas portas; / E o mole tribunal põe os ladrões na rua”. É precisamente aqui, por se achar inspirado em Décimo Júnio Juvenal – E faz já tempo / Em que os sufrágios não estão à venda, / Nem os assuntos públicos lhe importam. / O povo, esse que dava antes impérios, / Fáscios e legiões e tudo, hoje se cala; / E tendo apenas duas coisas, nada o rala, / Ou seja, pão e jogos (Sátira X, 77-81) –, que Amadeu Torres (Castro Gil) transcende os poetas de “escolho”, escondidos em mescladas e betesgas redondilhas (só para ser bonito), mas desprovidas de qualquer conteúdo cognitivo.
Rumando em sentido
contrário aos trovadores de “ninhos e chilreadas”, Amadeu Torres (Castro Gil)
acaba por nos dizer que “é tempo de acabar com governos «boyeiros», / Que
esbanjam orçamento a proteger filhotes / Perante multidões, seiscentos mil
obreiros, / Sem emprego nem mão que tu, amigo, notes”, sugerindo de imediato
que “é tempo de acabar com benesses de tença / – Gasolina, telés, deslocações,
almoços, / Carros topo-de-gama, senhas de presença – / Enquanto para os mais só
restam os caroços”, beliscando ao mesmo tempo, de uma forma cirúrgica, os
“milhões cerca de cento e mais cinquenta eurados / Custa-nos da República a
magna Assembleia: / Um malbarato para cofres esvaziados / Depois das toneladas
de ouro em conta alheia”. E nem mesmo os deputados escapam à sátira do MESTRE,
como carinhosamente o sentíamos, por nos acharmos incondicionais peripatéticos:
“Dos deputados, diz-se, ninguém tenha pena, / Que a um tal sentimento é-lhes
tudo contrário: / Ao perceber-se a ânsia de subir à cena / Uns por amor ao
povo, outros pelo eurário”, condimentado pela certeza que “de facto, carro à
ordem, telefone e conta / Para deslocações, estadias, almoços, / Sem citar o
ordenado não de pouca monta, / Fazem maço de notas muito além dos nossos” e
apontando a solução para “com peso no orçamento a estoirar nas costuras, /
Cento e quinze bastavam, sobejando até, / Se bancada nenhuma estivesse às
escuras / Ou com nudez de gente a enraivecer o Zé”.
Nem a novela do navio
“Atlântida” escapou às “alfinetadas” de Castro Gil, quando na altura se
discutia “em Viana acerca de um navio / Que, se ainda vivo, dera a morte ao
grão Cerqueira: / Gerou-o um cachalote enorme e luzidio… / E abandonou-o, ali,
à geral pasmaceira”, indignando-se de tal forma que acaba por nos dizer que “é
de arrepiar como, um ano já volvido, / O silêncio dos grandes se mantém idiota.
/ Ninguém sabe a quem novas dar do sucedido / Ou atribuir a culpa da grande
anedota” – assim, textualmente. E “é no cais da vergonha que o «ATLÂNTIDA»
aguenta, / Muito mais que o desprezo, o silêncio da malta / Que a sua
construção orientou e hoje tenta / Convencer-nos que deles não há qualquer
falta”, levando à indefinição de futuros vários, qual “after troika” inspiraria
a profecia de Castro Gil: “Provocam-me grande asco os doutores lareiros / Que
pensam saber mais que a Tróica, ideia tonta: / Porque encastelam no ar caminhos
e carreiros / De pagar tantos milhões da eureira conta”. É verdade, isto é
poesia de Amadeu Torres (Castro Gil), professor catedrático, poeta em vernáculo
e em latim, escritor e linguista, e pode-se encontrar no quinto volume de “No
espólio de Juvenal e noutros”. Juramos, por quanto há de mais sagrado, que não
fomos nós que a fizemos.
Um ano depois, aqui fica o nosso “imperativo de memória” em recordar a
pena e a mente de Amadeu Rodrigues Torres (Castro Gil), sempre fiel, mesmo na
eternidade, à “vox populi, vox Dei”!...
No comments:
Post a Comment