“A Condição Humana é uma obra de grande
originalidade, com concepções inesperadas e, em muitos aspectos, mais
importante hoje do que na altura em que surgiu (1958). / Os problemas que
Arendt identificou então, a partir de uma perspectiva histórica (…) são cada
vez mais actuais”.
O Editor “Relógio d’Água”
Pelo simples facto do
nome da filósofa norte-americana Hannah Arendt [N. Hanôver, 1906 – m. Nova
Iorque, 1975] ter sido citado nas “Correntes d’Escritas” pelo poeta Vergílio
Alberto Vieira (dissertação que nos comoveu profundamente), e porque muitos dos
leitores das nossas crónicas insistem na auscultação da nossa opinião no que
toca ao actual estado das nações (mesmo ao mais pequeno Estado do mundo, a
tombos com problemas vários, de natureza ética e moral), procuramos algum
discernimento – dado que temos evitado entrar pelos meandros tórpidos da
política e da religião – de causa-efeito, por forma a reproduzirmos algo que
seja útil à nossa condição, temática de pouco agrado para os fazedores do
“capitalismo selvagem”, destruidor da própria condição humana. E é precisamente
em Hannah Arendt que nos revemos, como condição “sine qua non” para
reflectirmos sobre o tal estado das nações. Para isso, impôs-se-nos a releitura
de Hannah Arendt dos tempos académicos.
Com a expressão vita activa, Hannah Arendt pretende
designar três actividades humanas fundamentais: labor, trabalho e acção. Trata-se de actividades fundamentais porque
cada uma delas corresponde uma das condições básicas mediante as quais a vida
foi dada ao homem na Terra. O labor é a actividade que corresponde ao
processo biológico do corpo humano; o trabalho é a actividade correspondente ao
artificialismo da existência humana; e a acção, a única actividade que se
exerce directamente entre os homens sem mediação das coisas ou da matéria,
corresponde à condição humana da pluralidade. As três actividades e as suas respectivas condições estão intimamente
relacionadas com as condições mais gerais da existência humana: o nascimento e
a morte, a natalidade e a mortalidade. Apesar do labor, do trabalho e da
acção terem raízes na natalidade – na medida em que a sua tarefa é produzir e
preservar o mundo para o constante influxo de recém-chegados que, segundo
Hannah Arendt, vêm a este mundo na qualidade de estranhos, além de os prever e
ter em conta –, a acção é a mais intimamente relacionada com a condição humana
da natalidade. Por isso, todas as actividades humanas possuem um elemento de acção
e, portanto, de natalidade. Para além disso, sendo a acção uma actividade
política por excelência, a natalidade pode constituir a categoria central do
pensamento político, em contraposição ao pensamento metafísico.
Outro factor importante
a ter em conta é que para Hannah Arendt os homens são seres condicionados, dado
que tudo aquilo com o qual entram em contacto torna-se imediatamente uma
condição da sua existência: O que quer
que toque a vida humana ou entre duradoura relação com ela, assume imediatamente
o carácter de condição da existência humana. É por isso que os homens são
sempre seres condicionados.
A condição humana não é
o mesmo que a natureza humana, e a soma total das actividades e capacidades
humanas que correspondem à própria condição humana não constitui algo que se
assemelhe à natureza humana. A condição humana diz respeito às formas de vida
que o homem impõe a si mesmo para sobreviver. São condições que tendem a suprir
a existência do homem: as condições da
existência humana – a própria vida, a natalidade e a mortalidade, a
mundanidade, a pluralidade e o planeta Terra – não podem «explicar» o que somos
ou responder a perguntas sobre o que somos, pela simples razão de que não nos
condicionam de modo absoluto. Segundo Hannah Arendt, esta sempre foi a
opinião da filosofia, em contraposição às ciências – antropologia, psicologia,
biologia, etc. – que também têm no homem o seu objecto de estudo. Outro facto
relevante é que, embora vivamos (ou tenhamos que viver) sob condições terrenas,
não somos meras criaturas terrenas.
Para a mesma filósofa,
a expressão vita activa é perpassada
e sobrecarregada de tradição. Com o desaparecimento da antiga cidade-estado a
expressão vita activa perdeu o seu
significado especificamente político e passou a denotar todo o tipo de
envolvimento activo nas coisas deste mundo: Convém
lembrar que isto não queria dizer que o trabalho e o labor tivessem alcançado
posição mais elevada na hierarquia das actividades humanas e fossem agora tão
dignos como a vida política. De facto, o oposto é que era verdadeiro: a acção
passara a ser vista como uma das necessidades da vida terrena, de tal modo que
a contemplação […] era o único modo
de vida realmente livre. Apesar disso, a enorme superioridade da
contemplação sobre qualquer outro tipo de actividade, inclusive a acção, não é
de origem cristã, dado que encontramo-la na filosofia política de Platão. Sendo
assim, a expressão vita activa
compreendendo todas as actividades humanas e definida do ponto de vista da
absoluta quietude da contemplação, corresponde mais à askholia grega
(«ocupação», «desassossego») com a qual Aristóteles designava toda a
actividade, do que ao bios politikos dos gregos: O primado da contemplação sobre a actividade baseia-se na convicção de
que nenhum trabalho de mãos humanas pode igualar em beleza e verdade o “Kosmos”
físico, que se resolve em torno de si mesmo, em imutável eternidade, sem
qualquer interferência ou assistência externa, seja humana ou divina. Daí,
Hannah Arendt afirmar que, tradicionalmente, a expressão vita activa deriva o seu significado da vita contemplativa. Contudo, para a mesma filósofa, o enorme valor
da contemplação na hierarquia tradicional obscureceu as diferenças e
manifestações no âmbito da própria vita
activa: o uso que dou à expressão
“vita activa” pressupõe que a preocupação subjacente a todas as actividades não
é a mesma preocupação central da “vita contemplativa”, tal como não lhe é
superior nem inferior.
Desde que «os homens de
pensamento e os homens de acção começaram a enveredar por caminhos diferentes»,
as várias formas de envolvimento activo nas coisas deste mundo, por um lado, e
o pensamento puro que culmina na contemplação, por outro, passaram a
corresponder a duas preocupações humanas inteiramente diferentes. A forma mais fácil
de ilustrar estes dois princípios diferentes – e até conflituantes – é lembrar
a diferença entre imortalidade e eternidade: Imortalidade significa continuidade no tempo, vida sem morte nesta
terra e neste mundo, tal como foi dada, segundo o consenso grego, à natureza e
aos deuses do Olimpo. Contra este pano de fundo – a vida perpétua da natureza e
a vida divina, isenta de morte e de velhice – entravam-se os homens mortais, os
únicos mortais num universo imortal mas não eterno, em comparação com as vidas
imortais dos seus deuses mas não sob o domínio de um Deus eterno. Os
homens, face às suas capacidades de realizar feitos imortais, e apesar da sua
mortalidade individual, atingem o seu próprio tipo de imortalidade e demonstram
a sua natureza «divina». A diferença entre o homem e o animal aplica-se à
própria espécie humana. Para Hannah Arendt, só os melhores, que constantemente
provam ser os melhores – e que «preferem
a fama imortal às coisas mortais» –, são realmente humanos; os outros,
porque satisfeitos com os prazeres que a natureza lhes oferece, vivem e morrem
como animais. A experiência do eterno (tal como a tem o filósofo) só pode
ocorrer fora da esfera dos negócios humanos e fora da pluralidade dos homens. E
o exemplo é-nos dado pela alegoria da Caverna de Platão, na qual o filósofo
tendo-se libertado dos grilhões que o prendiam aos seus semelhantes, emerge na
caverna, em perfeita «singularidade», nem acompanhado nem seguido de outros: Politicamente falando, se morrer é o mesmo
que «deixar de estar entre os homens», a experiência do eterno é uma espécie de
morte; a única coisa que a separa da morte real é que não é final pois nenhuma
criatura viva pode suportá-la durante muito tempo. Segundo Hannah Arendt é
isto precisamente que separa a vita
contemplativa da vita activa,
nomeadamente no pensamento medieval.
Para terminarmos, e porque seria incomportável – face à noção do espaço
disponível – falar aqui de outros temas abordados por Hannad Arendt, reiteramos
apenas um conselho para os políticos (?) de todas as nações: Leiam “A Condição
Humana” de Hannah Arendt, sem procurarem “equivalências” ou coisas tais, tendo
em conta que, segundo esta ilustre filósofa, o facto histórico decisivo é que a privacidade moderna, na sua função
mais relevante – proteger aquilo que é íntimo – foi descoberta não como o
oposto da esfera política, mas da esfera social, com a qual, no entanto, tem
laços ainda mais estreitos e mais autênticos. Enquanto isso, continuamos a
pensar que – bebendo em Hannah Arendt – “a nossa crença na realidade da vida e
na realidade do mundo não são, com efeito, a mesma coisa”. Abyssus abyssum invocat!
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