“Só
numa coisa te enganaste, poeta. Aqui estamos nós a lembrar-te, nós os teus
companheiros e os teus leitores. Porque abriste os olhos sobre o nosso mundo,
porque cantaste a rua, a fome, o sofrimento, mas sobretudo porque os soubeste
cantar, sem o que nunca conseguirias que toda a gente visse, sentisse e
sofresse só de ver sofrer”.
João José Cochofel
Com apenas vinte e
quatro anos de idade, mais precisamente a 9 de Março de 1941 – por isso, faz
amanhã setenta e dois anos –, faleceu de tuberculose, em Coimbra, o poeta
vianense Álvaro Feijó, de seu nome completo Álvaro de Castro e Sousa Correia
Feijó, que havia nascido na “Princesa do Lima”, em 5 de Julho de 1916. Filho de
Rui de Menezes de Castro Feijó e de D. Maria Luísa Malheiro de Faria e Távora
Abreu e Lima, fez os estudos secundários no colégio dos jesuítas de La Guardia,
na vizinha Galiza, inscrevendo-se seguidamente na Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra. Influenciado pela obra de seu tio-avô António Feijó
(1859-1917), introdutor e cultor exímio do “Parnasianismo” francês no nosso
país, surgem os “Primeiros Versos” de Álvaro Feijó que, segundo os críticos, “constituem
a manifestação de um talento poético embrionário, caracterizada por um ensaio
de versificação parnasiana. Poemas de adolescência centram-se na subjectividade
do «eu» e nos temas do amor, reeditando a tensão entre o amor espiritual e
carnal, o cerne temático da lírica de Camões, mas com um pendor tendencial para
o amor petrarquista”. Por outro lado, o poeta tenta a definição do próprio
caminho poético, denunciando a sua crise de identidade, dividido entre a sua
condição de aristocrata e as exigências da transformação social: “calcorreei a
estrada, encadernado / de senhor feudal / e, quando eu passava, lentamente, /
desbarretavam-se as gentes, temerosas / do meu guante ferrado, que abatia /
iras incontenidas / sobre justos e injustos, num fatal / julgamento de morte e
destruição!” ou “Da minha Torre branca de Marfim / há vinte anos parti,
brilhante o olhar, / buscando o fim da estrada que, sem fim, / não sei, eu
próprio, ainda, onde vai dar”.
Apesar de já
conhecermos a poesia de Álvaro Feijó há cerca de três décadas e meia, altura em
que adquirimos a 3.ª edição (Setembro de 1978) dos seus poemas (Os Poemas de
Álvaro Feijó), Brasília Editora, muito recentemente, fomos contemplados com o maravilhoso
livro com o mesmo título “Os Poemas de Álvaro Feijó”, edição de “Evoramons
Editores” (Junho de 2005), numa gentil oferta da nossa particular amiga Andrea
Pinto de Castro Feijó, prima em 2.º grau desta figura mítica da geração que, na
Coimbra de finais dos anos trinta do século passado, e como se pode ler em
sinopse na contracapa, “veio a lançar o movimento conhecido como neo-realismo. (…)
Prova disso, a poesia que nos deixou, onde os temas de mais fundas raízes na
cultura e literatura portuguesas se irmanam a uma consciência social em carne
viva”. Esta obra, tal como a edição de 1978, reúne os “Primeiros Versos”,
“Corsário” e o inacabado “Diário de Bordo”. E para que conste, por forma a
acicatar os preconcebidos entorpecimentos, convenhamos em recordar que os versos
de Álvaro Feijó foram publicados em revistas como “Sol Nascente”, “O Diabo”, “Altitude”
e “Seara Nova” e, postumamente, no “Novo Cancioneiro”. Companheiro no exercício
poético de Políbio Gomes dos Santos, Joaquim Namorado e José João Cochofel,
formado nos princípios da escola neo-realista, a sua poesia sofre a trágica
influência da guerra civil de Espanha, entre 1936-1939, e da segunda Grande
Guerra. Não é por acaso que no “Corsário” (1940), o único livro que publicou em
vida, há um apelo fundamental à reforma da sociedade e da justiça social e ao
esvaziamento dos conteúdos religiosos, substituídos por temas laicos. No “Diário
de Bordo”, que ficou incompleto devido à doença implacável, assistimos a uma
nova estratégia temática: “são versos de sarcasmo feroz dirigidos à própria
classe aristocrata, ridicularizada nos seus actos de mundanidade frívola, numa
ironia ao nível queirosiano”. Mas, ainda segundo a crítica, “é no âmbito da
temática religiosa que a poesia de Álvaro Feijó atinge uma perfeição notável de
fundo e de forma”, como no poema «Nossa Senhora da Apresentação», que constitui
uma súmula dos vectores temáticos do neo-realismo: “O altar as vagas, / o
dossel a espuma! / Missas rezadas pelo vento, / ora pelos fiéis defuntos que se
foram / noutras vagas, / ora pelas barcaças que, uma a uma, / buscaram as
sereias na distância / e se foram com elas (…) O dossel a espuma. / O altar as
vagas / – e que altar enorme! – / Entre círios de estrelas, / Nossa Senhora da
Apresentação / e Justificação / – a Fome!” – assim se pode ler no início e na
parte final do poema. Perpassam pelos poemas de Álvaro Feijó “caminhos de
montanha”; o lançar “em linhas tortas / no branco do papel, sinceramente, /
idas fragrâncias de ilusões já mortas, / desejos do presente”; a tão actual nau
perdida (tendo em conta o lado visionário dos poetas), “na rota pelo Mundo / –
ao deus-dará na vaga azul e infinda – / nós vamos – nau perdida em Mar profundo
– / joguetes do tufão; / mas conservando, ainda, / na última Esperança a última
Ilusão”; o temor; a transfiguração; a fraqueza, quando o poeta se encontra
sozinho, “mas animado de uma força rara”; o credo; a fuga, mesmo quando “de
nada serviu a fuga e o sacrifício”; o nascer “numa manhã com neblina de bronze
/ sobre o rio”; a rota sem fim; o marasmo que “há dentro de mim, como num búzio
/ a voz do Mar”; o apelo à “Senhora da Noite, deixa o Mundo / para que todo o
mundo o possa ver”; o livro de horas, onde há a história do destino do poeta; o
palhaço, sendo que o poeta foi palhaço de si mesmo; o poema da renúncia, no
qual brada “que venha a noite e deixe o seu mistério / sobre nós, / e traga,
sobre nós, o esquecimento!"; a gare de “choros e gritos! / Namoradas
perdidas, / mães velhinhas / e os amigos, / numa espécie de inveja dolorida, /
por não poderem partir”; o “Livro de Bordo de Corsário, deixa / que o tempo
apague a tua prosa inútil / e escreve a história imensa / daquela frota em que
tu vais partir / – como pobre navio auxiliar – / à demanda e à conquista / do
Novo Continente!”; o “Diário de Bordo” onde “os cais são as esfinges / do Mar”
e onde se questiona o “Piloto! / – De que serve o sextante / quando o não sabes
usar?”; a largada; o claro-escuro; o sargaceiro; a varina e o porquê da
existência: “Porque existes, não sei! / Mas sei para que existes”. Um poeta
sublime, cujo trajecto vital seria tão curto como fulgurante.
Fica desde já aqui
lançado o repto, em jeito de lembrete, nomeadamente aos agentes culturais de
Viana do Castelo e Ponte de Lima, de que em 2016 se comemora o centenário do
seu nascimento. Até lá, voltaremos a desentediar as indisposições dos que se
têm pautado pela asfixia dos que, tal como Álvaro Feijó, não foram “feitos para
andar ao sol, / continuamente, / nem para ter saudades do passado / ou para
chorar um sonho que se esfolha”. Em memória de Álvaro Feijó, continuaremos a
contar estrelas, ainda que elas morram, à medida que as contamos.
Terminaremos aludindo ao que seu irmão Rui Feijó escreveu nesta magnífica
edição de “Os Poemas de Álvaro Feijó”: “Lembro-me da alegria que ele teve
quando saiu a primeira edição do Corsário e daquilo que escreveu no primeiro
exemplar, que conservo, e que era todo um programa de futuro”. E interroga-se:
“Qual seria hoje a sua alegria se pudesse saber que a sua poesia permanece no
imaginário de várias gerações, que figura em todas as antologias responsáveis
da poesia do tempo em que viveu e que continua a ser editado”. Diremos nós que
– e complementando com a lisura do poeta – por mais que façam contra a poesia e
contra os poetas, “a miséria é tão grande do meu lado / que me apetece ir
combater / do lado dos inimigos” e “eu sinto / que vale mais morrer do outro
lado, / onde se morre mais limpo”.
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