“De
que armas disporemos, senão destas / Que estão dentro do corpo: o pensamento, /
A ideia de polis, resgatada / De um grande abuso, uma noção de casa / E de
hospitalidade e de barulho / Atrás do qual vem o poema, atrás / Do qual virá a
colecção dos feitos / E defeitos humanos, um início”.
Hélia Correia
Já há muito que nos
sentíamos atraídos pelas Correntes d’Escritas, ou simplesmente Correntes, como
é conhecido o encontro anual de escritores de expressão ibérica que decorre
todos os anos, durante o mês de Fevereiro, na Póvoa de Varzim, numa organização
do Pelouro da Cultura da Câmara Municipal local. Normalmente, os escritores que
aqui participam, são provenientes de países e continentes onde se falam as
línguas portuguesa e espanhola, desde a Península Ibérica, passando pela
América Central e do Sul à África Lusófona. O primeiro encontro realizou-se em
Fevereiro de 2000, ano em que se assinalou o Centenário da Morte de Eça de
Queirós. A partir de 2004, passou a ser atribuído um prémio para novas obras em
prosa ou poesia, em anos alternados, chamado Prémio Literário Casino da Póvoa. Este ano, decorreu a 14.ª Edição
das Correntes d'Escritas e o tão “cobiçado” Prémio Literário foi atribuído à poetisa
e dramaturga Hélia Correia, com o seu maravilhoso livro – um dos melhores de
poesia, que lemos até hoje – “A Terceira Miséria”, num empolgante regresso
desta filóloga românica à poesia, à memória e aos clássicos. De facto, e tal
como diria Carlos Vaz Marques (TSF), a paixão pela Grécia, desde há muito
presente na obra de Hélia Correia, desagua agora neste livro de poesia, onde a
Grécia clássica surge como farol e como impossibilidade, similitude nossa na
indigência: “Nós, os ateus, nós, os monoteístas, / Nós, os que reduzimos a
beleza / A pequenas tarefas, nós, os pobres / Adornados, os pobres
confortáveis, / Os que a si mesmos se vigarizavam / Olhando para cima, para as
torres, / Supondo que as podiam habitar, / Glória das águias que nem águias
tem, / Sofremos, sim, de idêntica indigência, / Da ruína da Grécia”.
A escritora Hélia Correia (ao centro) com Ana Cristina Moreira e Porfírio Silva |
Impulsionados pela
imperativa necessidade de nos encontrarmos com a Hélia Correia – por forma a
sentirmos-lhe o “pulsar da glória” –, e, ao mesmo tempo, auscultarmos o questionável
querer temático, aberto aos motes “de que armas disporemos, se não destas que
estão dentro do corpo” e “só o que não se sabe é poesia”, lá rumamos até às
Correntes d'Escritas, onde assistimos a dois extraordinários painéis, que redundaram
num salutar e frutífero convívio, com os escritores: Helena Vasconcelos, Jesús
del Campo, Luís Cardoso, Miguel Miranda, Maria Teresa Horta, Aurelino Costa,
Ivo Machado, João Luís Barreto Guimarães, José Mário Silva, Lauren Mendinueta e
Vergílio Alberto Vieira, magnanimamente moderados por João Gobern e Francisco
José Viegas. Foi lá, no “interlúdio” das magníficas intervenções, que sentimos
o cérebro como “um órgão fazedor de poesia” e que, normalmente, “funciona sob o
garrote da lógica”, qual desafio aristotélico premeditaria, também, a poesia
como provocadora da catarse. Tal como foi sugerido por Helena Vasconcelos, bom
seria que “trocassem as doses maciças de austeridade por doses maciças de
poesia”. E Maria Teresa Horta lá foi dizendo que os poetas são os alquimistas
do futuro e a poesia cada vez mais se vai tornando numa arma mortífera para os
ditadores. Daí, alguma alergia ao “Grândola, vila morena” e ao facto de ela se
negar a receber o Prémio D. Dinis, das mãos do primeiro-ministro Passos Coelho:
“Eu não recebi da mão do primeiro-ministro o prémio e não recebi nada. Nem uma
côdea de pão, mesmo que estivesse a morrer de fome. Não recebo nada da mão
desse senhor”, acrescentando “que bom seria se os fracos legisladores de agora
trocassem a malfadada austeridade, a carga feroz sobre as nossas costas, que
provoca o desequilíbrio, a queda e o desmembrar do tecido da polis, que
trocassem as doses maciças de austeridade por doses maciças de poesia para nos
purgar definitivamente”… Os poetas, os legisladores não reconhecidos do mundo.
Definitivamente, voltamos ao brado de Hélia Correia: “Para que servem poetas se
não podem / Nem delirar, se os textos do delírio / Serão tomados pelo seu
contrário? / A bela rapariga dos cabelos / Cor de violeta, Atenas, onde está? /
Quem escavará o monte até aos ossos / Para que dele ressurjam esses que / Nos
deixaram sozinhos?”. Será que não há nada a dizer sobre a indigência?
Para terminarmos da melhor maneira, e como não podia deixar de ser, o
reencontro com Hélia Correia veio a acontecer, o que forçaria um agradável
acrescento à dedicatória de Outubro de 2012: “Assinalando o reencontro nas
Correntes de Escritas de 2013. Outro beijo...”. E registamos a inquietação de
Hélia Correia: “Para quê, perguntou ele, para que servem / Os poetas em tempo
de indigência? (p. 7)”. Ainda que seja para cantar o "Grândola, vila morena",
diremos nós e disseram eles nas Correntes d'Escritas!
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