“A
religião repousa na diferença essencial
entre o homem e o animal – os animais não
têm religião. É certo que os mais antigos zoógrafos, desprovidos de crítica,
atribuíam ao elefante, entre outras propriedades elogiosas, também a virtude da
religiosidade; só que a religião dos elefantes pertence ao mundo das fábulas”.
Ludwig Feuerbach
Só porque vivemos um
dos períodos mais conturbados do entendimento da verdadeira essência humana e
do fenómeno religioso como criação humana – atente-se ao facto de o Papa
Francisco se permitir aventar a “salvação” mesmo para os ateus, sendo
desautorizado (ou desacreditado) de imediato pelo porta-voz do Vaticano, Thomas
Rosica, quando afirma que pessoas que conhecem a Igreja Católica “não podem ser
salvas” se recusarem-se a entrar nela ou fazer parte dela –, resolvemos fazer,
esta semana, uma pequena reflexão à volta do filósofo alemão Ludwig Feuerbach (1804-1882),
cujo nome está ligado à influência que exerceu sobre o pensamento de Marx, à
primeira tentativa de oposição ao hegelianismo e à primeira crítica da religião
como alienação do homem de e por si próprio. E tomamos por referência reflexiva
A Essência do Cristianismo, pelo
facto desta obra se apresentar como um dos textos fundamentais do século XIX, tendo
em conta que a sua importância vai muito mais para além desse “postulado”, dado
que se constitui, também, numa obra (que lhe viria a conferir notoriedade) de
referência obrigatória em todas as interpretações que nos conduzam ao fenómeno
da religião. Para confirmar tal convicção, como afirma Adriana Veríssimo Serrão
na apresentação desta obra – também por ela traduzida –, “bastaria ter em conta
a imensa série de estudos, comentários e refutações que não mais deixaria de
suscitar, desde a sua publicação em 1841, até aos nossos dias”. Nesta mesma
obra, Feuerbach encontra o fundamento da articulação entre identidade humana e
o divino, ou seja, por outras palavras, o fundamento da íntima articulação e da
identidade essencial entre o humano e o divino.
Remetendo-nos à essência do homem em geral, Feuerbach começa por formular a
diferença entre o homem e o animal através da consciência, sendo que para ele,
onde existe consciência, existe capacidade para a ciência. Não significa com
isto que Feuerbach recuse tal consciência – enquanto “faculdade de
diferenciação sensível, de percepção das coisas exteriores segundo certos
traços perceptíveis” – aos animais. Para o filósofo alemão, isso só acontece
porque o animal é objecto para si enquanto indivíduo, mas não enquanto género,
faltando-lhe a consciência que deriva de ciência. A ciência afirma-se como a
consciência dos géneros. Não é por acaso que Feuerbach afirma que “na vida
lidamos com indivíduos, na ciência com géneros”, e só “um ser que tem como
objecto o seu próprio género, a sua essencialidade, pode tomar por objecto
outras coisas ou seres segundo a sua natureza essencial”. Assim sendo, à vida
dupla do homem, contrapõe-se a vida simples do animal, dado que, neste último,
a sua vida interior coincide com a vida exterior. Por outro lado, no homem a
vida interior é a vida em relação com o seu género – entendendo-se como
verdadeiras funções genéricas, o pensar, o falar, etc. –, com a sua essência
universal, enquanto no animal não há lugar à função genérica sem um outro fora
dele. O homem goza dessa função genérica, dado que “é para si ao mesmo tempo eu
e tu; pode colocar-se no lugar do outro, precisamente porque tem como objecto,
não apenas a sua individualidade, mas o seu género, a sua essência”. É esta
essência que leva à consciência do homem a religião em geral, enquanto idêntica
à própria essência do homem (consciência de si).
Até na consciência do
infinito, a religião ao não ser – e/ou ao não poder ser – outra coisa senão a
consciência que o homem tem da sua essência, acaba por lhe conferir, também,
uma essência infinita. Por outras palavras, parafraseando António José de
Brito, a essência do homem sendo “universal, infinita, ilimitada, ao
contemplar-se crê existir um ente universal, infinito e ilimitado face a ele,
que é Deus. A ideia de Deus é, assim, o começo do autoconhecimento do homem por
si mesmo”. Feuerbach, servindo-se do exemplo da “consciência de uma toupeira” –
contraposição entre vida dupla do homem e a vida simples do animal –, chama-nos
à atenção para as suas vida e essência limitadas a uma espécie determinada de
plantas, conferindo-lhe assim um domínio limitado: “Ela [toupeira] diferencia
estas plantas de outras, mas mais não sabe”. Por se tratar de uma consciência
limitada – mas infalível e segura justamente devido ao seu carácter limitado –,
não lhe atribuímos o nome de consciência, mas instinto. Para este filósofo
alemão “consciência em sentido estrito ou próprio e consciência do infinito é o
mesmo”. Assim sendo, consciência limitada não é consciência. Para Feuerbach, “a
consciência é, por essência, de natureza infinita” e a consciência do infinito
é a consciência da infinitude da consciência. Ou, por outras palavras do mesmo
filósofo, “só na consciência do infinito é que o ser consciente tem como
objectivo a infinitude da própria essência”.
Questiona-se a partir
daqui, o que é a essência do homem, da qual ele tem consciência, ou o que é que
constitui o género, a humanidade propriamente dita do homem? Para Feuerbach é a
razão, a vontade, o coração, dado que um homem para ser completo tem que,
necessariamente, possuir a força do pensar (luz do conhecimento), a força da
vontade (energia do carácter) e a força do coração (amor). Ainda segundo este
mesmo filósofo alemão, razão, amor e força de vontade são perfeições da
essência humana, a que denomina de perfeições essenciais absolutas. Apesar do
homem existir para pensar, para amar, para querer, o fim último é o seu
verdadeiro fundamento e origem. Feuerbach afirma, assim, a nossa condição de
sermos livres, precisamente pelo facto de pensarmos para pensar, amarmos para
amar, querermos para querer. Para ele o fim da razão assenta na razão, do amor
no amor e o da vontade, na liberdade da vontade. Logo, um “verdadeiro ser é um
ser que pensa, ama e quer. Verdadeiro, perfeito, divino é apenas o que existe
em função de si”.
Pena é que alguns dos
“detentores do poder religioso” não consigam interpretar as duas faces da
atitude religiosa, no “dixi” de Adriana Veríssimo Serrão, interpretando
Feuerbach: “por um lado, uma análise de tipo psicológico que desvenda
mecanismos profundos da subjectividade inconsciente, como o são o impulso para
a felicidade e o anseio da vida eterna, desejos que a imaginação concretiza ao
criar as diversificadas imagens das entidades divinas. Por outro lado, a ênfase
colocada no sentido prático e existencial da vida humana, na qual o sentimento
revela possuir maior força e maior poder que o tranquilo exercício da actividade
teórica do conhecimento”.
É nesse sentido que, tendo em conta a intuição estética ou o estado de
espírito moral, continuamos a acreditar que o “Céu” é para todos. Negar esse
“direito” é negar a própria existência de “Deus”, onde foram fundidos todos os
nomes divinos isolados, concretos e individuais, no único nome do SER!
1 comment:
Um post muito interessante, gostei :)
Beijinhos :)
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