“Daí
a razão do título desta obra: Gente do
Vale, porque pertencente a um segmento geográfico possuidor de uma
identidade cultural muito vincada e porque merece honras de ser consagrada por
um grande escritor, quanto o é Domingos da Calçada!”.
Fernando Pinheiro (Editor da Calígrafo)
Acabamos de ler “Gente
do Vale”, obra que premeia a importância e a preponderância memorialista de
Domingos da Calçada, um dos maiores – senão o maior – contistas que conhecemos
até hoje. Esta afirmação não a proferimos de uma forma leviana – mas por
aturada convicção –, dado que já conhecemos os seus escritos há mais de trinta
anos a esta parte, contextualmente tomada em boa conta, aquando da saída da
obra de grande fôlego «Vale do Neiva: Subsídios monográficos» (1982), hoje uma
raridade bibliográfica, onde Domingos da Calçada deixaria impressos seis
magníficos trabalhos e um soneto: “O Senhor do Lírio”, soneto; “O Neiva
piscícola”, truteiro por excelência, é
conhecido de cada pescador de salmonídeos cá do Norte; “Maria Pomba: uma
artista”, pobre de bens materiais e sem
mais ambições para além da sua realização pessoal, num mundo em que a
realização pessoal se entendia uma mania consequente do pouco abono de siso (…);
“Poetas do Vale do Neiva”, perpassando por uma abordagem alusiva a Custódio Bandeira;
“Minério”, procurando alertar para a fenomenologia dos que a ele se devotaram
com esperança e sofrimento; “Um episódio grotesco… Numa recolha do sábio José
Leite de Vasconcelos”, que visitou Durrães por
várias vezes e levou daqui apontamentos de testemunhos, histórias, quadras e
palavras virgens; e, finalmente, “Capelas do Vale do Neiva”, numa viagem
pelos concelhos de Vila Verde (S.
Miguel de Prado, Godinhaços, Pedregais, Duas Igrejas, Azões, Portela de Penela
[ou Das Cabras], Marrancos, Goães, Rio Mau e Arcozelo), Barcelos (Igreja Nova, Alheira, Panque, Cossourado, Balugães,
Aborim, Quintiães, Aguiar, Durrães, Tregosa, Fragoso, Aldreu e Palme), Esposende (Forjães, Belinho e S. Paio de
Antas), Viana do Castelo (Carvoeiro,
Barroselas [Capareiros], Mujães, Portela Suzã, Vila de Punhe, Vila Fria,
Alvarães, S. Romão do Neiva e Castelo do Neiva) e Ponte de Lima (Anais, S. Lourenço do Mato, Friastelas, Cabaços,
Fojo Lobal, Calvelo, Gaifar [S.ta Eulália], Vilar das Almas, Sandiães, Navió,
Freixo [S. Julião], Ardegão, Poiares e Vitorino de Piães), e, mais tarde, de
2001 a 2007, da publicação dos três volumes de contos em SEROEIRA: Rumores d’Águas Passadas (2001),
caracterizando pessoas com seus defeitos e virtudes e a forma de vida que
levaram; Tempos Difíceis (2003), onde
foca especialmente “algumas cenas duma época de duas guerras ao longo de nove
anos, que deixaram marcas de ruinosas feridas – ainda a sangrar no
prolongamento duma longa recessão”; e Em
Busca da Pataqueira (2007), volume de casos, cujos personagens, “na maioria
habitantes deste Vale [do Neiva], demandaram outras terras, tentando a melhoria
de vida que dificilmente conseguiriam naquela que os viu nascer”.
Mas, o que nos trouxe
aqui hoje, neste espaço muito nosso (conscientemente pensado e não manietado), é
a vertente de excelso contista em Domingos da Calçada, pseudónimo literário de
Domingos de Castro Barbosa Maciel, nascido em Durrães, Barcelos, a 18 de Fevereiro de 19 31,
aprazível e bucólica freguesia do Vale do Neiva, onde frequentou a escola
primária, tendo prestado provas de exame na Escola Gonçalo Pereira, na sede do
concelho. No Porto foi aprendiz de caixeiro, no célebre “Passeio dos Carapuceiros”,
que nos princípios do séc. XX se situava no lado esquerdo da rua dos Clérigos.
Prosseguiu a actividade comercial, como trabalhador e gerente, enquanto
desempenhava o ofício de avaliador de propriedades rústicas e urbanas. Ao
estabelecer um contacto directo com as gentes do Vale do Neiva, coleccionou
ocorrências e ouviu casos passados na Ribeira, sempre registados numa linguagem
pura, plena de rusticidade e de termos caídos em desuso: “Os contos que agora
vêm a lume foram publicados no período entre os anos de 2001 e 2007, numa
colecção que Domingos da Calçada intitulou «Seroeira», de cuja edição se
encarregou a Casa do Povo de Durrães. Compõem a colecção três livros (Rumores d’Águas Passadas; Tempos Difíceis;
Em Busca da Pataqueira), que no seu conjunto perfazem sessenta e seis
contos de temática marcadamente rural e inscrita na experiência histórica dos
finais do século XIX e primeira metade do séc. XX. / No decurso desta trilogia,
Domingos da Calçada levanta um extraordinário fresco da gente do vale do Neiva,
captando dela veros e vívidos retratos dos seus costumes, tradições, crenças,
aspirações e lutas num tempo marcado pelo analfabetismo, a doença, a fome e as
péssimas comunicações” – conforme se pode ler em nota do editor à “Gente do
Vale”, enquanto obra cuja realidade não precisou de ser inventada, dado que a
sua representação simbólica se escora numa verdadeira experiência histórica, do
autor e das suas gentes.
Assim, perpassam pelo Gente do Vale dezasseis dos sessenta e
seis contos publicados em Seroeira (O
Vínculo, O Alvião, Ajuste de Velhas Contas, As Libras de Cavalinho, O Nubente,
O Fiel, As Calças Novas, O Legionário, O Galego, O Perdão, A Parturiente, O
Ferreiro, O Sermão, O Relógio, O Pistolão Ferrugento, O Traficante de
Escravos), e que no dizer da editora (fazendo nossas as suas palavras) se
levantam homens e mulheres de grande autenticidade, nas suas misérias e
grandezas, trespassadas de uma enorme intuição existencial e portadoras de uma
notável cédula antropológica: “lavradores, frades, mercadores, artesãos,
feirantes, pedreiros, ferroviários, jornaleiros, padres, romeiros, brasileiros
de torna viagem desfilam diante de nós na sua castiça espontaneidade, tão
própria do minhoto, e preenchem as suas cantantes parlengas com preciosos
localismos que enchem a alma a quem gosta de ser seduzido pelas novidades
semânticas e pela fantasia da linguagem”. Que mais poderíamos acrescentar a
esta extraordinária “constatação analítica” de Fernando Pinheiro? Simplesmente
nada, tendo em conta que o dito não pode ser redito. Se o fizéssemos, ainda que
por outras palavras, cairíamos no “lapsus calami” de muitos dos cronistas do
nosso burgo. Daí, para além da magnanimidade dos contos, apenas glosarmos com
algumas das “novidades” semânticas de antanho, escolhidas aleatoriamente: deixe-se de liornas; naquele chaporro grosso; que sai machorra e não pega; é mais uma p’ra botar no postoiro; e pousasse o barreleiro; podiam ser trabalhos a trouxe-mouxe; p’ra saber quem foi o zaganeiro; mas t’arrenego, mofendo maldito, ‘squemuncha
dos infernos; bô compadrio e melhor
passadio; alembrei-me doitra; ribombou, furibundo, o abade do Couto; os machos saíram remaniscos e as franguinhas
são todas carecas; sume-te, dianho,
p’ra Airão! Inda as maleitas te levem, corrido dos inxurros!; o homem não tinha escapatório; cinco merréis que tinha; quijés portestar; Ah, grande caráfio! T’arrenego, ‘stafermo! Súme-te, arelho dos diabos!;
aquilo era lá com lá e lé com cré; nomes feios como panhona, pastola, sostra,
calaceira…; era obrigado a encostar a
fivela; dou por ele a vostede o valor
da casa e do eido; Non se estexa a
penar com isso! Garde todolos cartos, mail-o eido e a casa! Quedese con todo,
hom, que non tenho mentes de llo pedir! Sequera non cavilei endexamais de lo
esixir, e nin llo quiero!; nenhuma
juradia da aldeia se dava conta; incouçou;
tatulado; fossadores da jeira; bestiagas;
sapateiro assapateirado; deitar contas à vida; bolbo maligno; tomar os nortes; enterrar a
pele e os ossos!; cai lostra da
pesada; antes ser corno, que deixar
de cozer o forno!, etc., etc., que
acabam por reflectir o sentido estético das suas narrativas, porque “estruturadas”
em cima de acontecimentos reais, transformando Domingos da Calçada num
“escritor-cronista (embora de um mundo extinção) na posse de uma base de dados
de inegável riqueza cultural e humana” – citando a própria editora.
Nota máxima para «Gente do Vale» e todo o percurso existencial de
Domingos da Calçada, porque ao ser dotado duma “sapiente sensibilidade” de
carácter, fê-lo possuidor de uma riqueza cultural e humana. Como a gentes do
Vale!...
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