Thursday, March 28, 2013

Máscaras, desertificação, urbanismo e qualidade de vida!


“A nossa civilização está ainda, a meio de uma fase de transição: já não é guiada, totalmente, pelo instinto, mas não é, ainda, conduzida, na totalidade, pela razão”.

Theodore Dreiger

No dia seguinte à defesa da dissertação de Mestrado «O Problema Filosófico da Nosografia Psiquiátrica do Dr. Júlio de Matos: A questão epistemológica da categorização do mental» – do bracarense e nosso particular amigo/irmão Fernando Braga, da qual falamos na nossa anterior crónica –, a convite do Clube de Leitura da Biblioteca Municipal de Viana do Castelo, rumamos (16 de Março) até à cidade de Guimarães – Capital Europeia da Cultura 2012 e Europeia do Desporto 2013 – para participarmos numa extraordinária jornada cultural, onde seria debatido o problema da recuperação dos “Centros Históricos”, no qual Guimarães é um exemplo de sucesso e dinamismo, levando a que hoje o mesmo seja Património Mundial da Humanidade e que, através da aplicação “Mobitur” e da “Plataforma das Artes e da Criatividade”, tivesse conquistado dois dos cinco prémios da “Cidade Perfeita”, projecto numa iniciativa conjunta da revista VISÃO e da SIEMENS, que teve como objectivo dar a conhecer as melhores iniciativas e boas práticas das cidades portuguesas ao nível da governação, sustentabilidade, inclusão, inovação e conectividade. Só por isso, e mesmo que mais nada nos motivasse, não nos poderíamos fazer de rogados a tão simpático convite. Assim, os vianenses (cerca de duas dezenas) que se deslocaram a Guimarães, nos quais nos incluíamos, foram recebidos pela extraordinária “cicerone” Alexandra Parada Barbosa Gesta – diplomada em Arquitectura pela Escola Superior de Belas-Artes do Porto, arquitecta no Município de Guimarães desde 1980, que de 1983 a 1992 e de 1995 a 2007, foi responsável pelo projecto de recuperação do “Centro Histórico” de Guimarães, elevado a Património Mundial da Humanidade em 2001, vereadora do Pelouro do Urbanismo, com as competências no DPPU (Departamento de Projectos Planeamento Urbanístico): Divisão do Gabinete Técnico Local (DGTL) –, que nos viria a proporcionar uma magnífica “lição” de urbanismo e qualidade de vida, presencial e devidamente calcorreada, sem subterfúgios e com “opus artificem probat”. Ficamos a saber que o “Centro Histórico” de Guimarães teve sapiente intervenção do arquitecto Fernando Távora, consultor do Município durante seis anos, desenhando as praças em conformidade com o papel que desenvolveram ao longo da sua história da evolução urbana. Na Praça de Santiago, presenciamos a “estada humana” nas varandas das multiseculares habitações, restauradas a preceito. Corroboramos da visão de Alexandra Gesta, no que toca à desertificação, urbanismo e qualidade de vida, nas vilas e cidades.


Atentando contra à distracção de muitos, e por forma a reforçarmos a partilha da nossa visão com a arquitecta Alexandra Gesta, aqui fica o que escrevemos em Março de 2005, publicado em “Impressões” no “Falcão do Minho”, Ano XVIII, n.º 841, crónica promotora de alguns “pequenos ódios encoirados”, sobrantes para o nosso lado: «Quando devíamos estar a debater o gravíssimo problema da desertificação das pequenas e grandes cidades, eis que a preocupação dos agentes comerciais vai no sentido de apontarem o dedo à proliferação das grandes superfícies. Embora faça sentido, essa preocupação tem sido também dissimulada por alguma apatia ao fenómeno da cidade desabitada, para que se venha a justificar o injustificável. Já uma vez o escrevemos (1991) que a vila de Ponte de Lima faz repensar Viana, não apontando, na altura, os factores circunstanciais que levariam a tal “afirmativo despautério” do nosso subconsciente. De facto, ao fim de semana, a vila de António Feijó, de Norton de Matos e do Cardeal Saraiva continua a fervilhar de gente, dando sinais de uma inter-relação afectiva entre o comércio e o cidadão. Em terras de Ponte, sempre houve a preocupação de combater a desertificação, por forma a se estabelecer essa inter-relação. Os estabelecimentos de restauração – e similares – entendem e cultivam esta ancestral prática (quase familiar) de, no mesmo local do comércio, se reservar o primeiro andar ou divisões confinantes ao rés-do-chão, para habitação.
Pegou a moda de nas pequenas e grandes cidades transformarem todos os espaços disponíveis e habitáveis, em grandes centros comerciais, onde proliferam, de uma forma desordenada – face ao desequilíbrio de forças –, agências bancárias, “prontos-a-vestir” e outras tantas superficialidades, que em nada são convidativas à permanência ou à afectividade do cidadão, já que os residentes há muito que se transferiram para os arredores da cidade, sendo as suas anteriores residências transformadas em escritórios de advogados, laboratórios e outras coisas tais... Queixam-se os comerciantes e queixam-se os cidadãos. Em Viana, por exemplo, já foi normalidade viver sobre o tecto ou paredes-meias com um qualquer estabelecimento comercial, cujos proprietários se queixam, hoje, dessa desenfreada desertificação. Associado a este desânimo vem a insegurança. Deixou-se de ouvir este ou aquele pequeno barulho e o alarme quando dispara, já os “amigos do alheio” estão a fazer contas à vida, bem longe do centro nevrálgico dos malogrados “visitados”. Ninguém ouviu, ou se ouviram disfarçam sorrateiramente e dizem-se “moradores noutro bairro”. Ir ao café era morar ali ao lado!
Ponte de Lima tem sido para nós ponto de encontro, no terreiro ou no pátio, a fervilhar de gente. Bem ao centro da Vila, muitos são os nossos amigos que moram por cima de agências bancárias, cafés ou “prontos-a-vestir”. Uma simbiose perfeita, quando se reflecte nas consequências de decisões irreflectidas. O lucro de hoje, muitas vezes é o prejuízo de amanhã!


Vivemos um tempo em que as grandes superfícies começam a proliferar nos arredores das cidades, bem perto das actuais residências dos cidadãos. Será que ainda não deram por isso?» – Não se trata de profecia, mas apenas a constatação da realidade, porque atentos ao pulsar do quotidiano comunitário!
Depois deste repetitivo desabafo com cerca de uma década, não poderíamos terminar este “ao correr da pena e da mente…” sem darmos conta da nossa visita – em fim de tarde – à “Plataforma das Artes e Criatividade”, numa espécie de regressão às vivências africanas da infância e juventude, auscultando as máscaras ali expostas, “os mais comuns e os mais inquietantes dos objectos, porque é da sua natureza afirmarem e negarem simultaneamente a mesma coisa, esconderem e revelarem, serem secretas e regulares”. Até quando as “máscaras” continuarão a equacionar a mundividência das relações entre os sujeitos humanos e não humanos? As máscaras ali expostas fizeram-nos lembrar a tal ponte que estabelece relações de continuidade entre a matéria e o espírito, entre o objecto e o referente. E as mesmas podem ajudar a desmistificar desertificações, urbanismos e qualidades de vida, desde que se assumam personificações positivas de proximidade. Tal como um dia diria Marlon “a estreiteza espiritual origina, quase sempre, a intolerância”. Por muito que se mascare a razão, muitos dos detentores dessas inquietantes máscaras, normalmente são os menos razoáveis no equacionamento da mundividência e da qualidade de vida. Pensem nisso! 

Friday, March 22, 2013

Fernando Braga defende dissertação sobre “O Problema Filosófico da Nosografia Psiquiátrica do Dr. Júlio de Matos”!


“A dissertação ambiciona identificar problemas e argumentos filosóficos nos textos do Dr. Júlio de Matos sobre a vida mental. Aspira a ser uma análise filosófica sobre um aspecto do problema da consciência normal e alterada no final do século XIX português”.

António Fernando Braga

No passado dia 15 de Março do corrente ano, no Auditório do Instituto de Letras e Ciências Humanas (ILCH) da Universidade do Minho, o nosso prezado amigo/irmão António Fernando Gomes Braga – filho de António Martins da Silva Braga e de Maria Júlia de Almeida Gomes Braga, nascido na freguesia de Maximinos, Braga, em 19 de Setembro de 1964 –, defendeu a sua dissertação de Mestrado «O Problema Filosófico da Nosografia Psiquiátrica do Dr. Júlio de Matos: A questão epistemológica da categorização do mental». Centrando a sua investigação na figura de Júlio de Matos, Fernando Braga acabou por nos trazer à coacção a personalidade deste homem de grande destaque ou com relevo na sociedade portuguesa do seu tempo, cuja influência social das suas ideias acerca da mente anómala ou desviante foi muito acentuada. Segundo Fernando Braga, a obra de Júlio de Matos propõe desde logo um sério desafio filosófico, o de saber em que consistem as doenças psiquiátricas e o que é uma doença psiquiátrica. Por isso, o objectivo principal da sua investigação e subsequente dissertação desenvolveu-se em torno desta grande questão. E Fernando Braga interroga-se e impeliu-nos, também, à cirúrgica interrogação: Que tipo de argumentos tinha ou produziu Júlio de Matos para fundamentar as suas teorias acerca do assunto? Foi aí que o estudo dos argumentos do conhecimento nos seus textos, com a finalidade de encontrar problemas filosóficos, passou a ser uma das directrizes nucleares deste trabalho de investigação do nosso amigo/irmão Fernando Braga, acabando por dizer, perante o júri e seu orientador, que foram detectados alguns destes problemas filosóficos. Para Fernando Braga, a obra de Júlio de Matos é muito rica em áreas filosóficas como ontologia da mente: O que é que há no mundo? Existe mesmo a patologia mental? Existe apenas para o clínico? Para o próprio não existe. E para outros? Existirá? – questionaria Fernando Braga.
Mostrando um discernimento intelectual – qual actor no palco da vida, como o teria visto o Professor José Marques Fernandes naquele dia –, o nosso amigo/irmão Fernando começou por nos dizer que “Júlio de Matos dividiu a sociedade em loucos e não-loucos. À classe dos loucos multiplicou-a, isto é, classificou nosograficamente em diversos grupos ou catálogos todas as patologias por si consideradas. Nesta medida, e relativamente ao contexto epistemológico, a sua obra obriga a profundas reflexões e suscita questões como as seguintes: Como é que se classificam doenças mentais? Como é que se representam as categorias mentais? Como é que se descrevem?”. E deu o exemplo de Michel Foucault ou Ian Hacking, que trabalharam material deste género, sendo que Hacking refere mesmo que determinadas doenças psiquiátricas são “cultivadas pelos terapeutas”, ou seja, elas não são reais. E continuou a sua dissertação: “A homossexualidade, por exemplo, na consideração de Júlio de Matos, era uma patologia mental. Terá isto algum fundo de verdade? Ou terá sido uma doença cultivada pelo terapeuta? Talvez outras ditas doenças mentais não existam de facto”. Foram essas questões, quer no plano ontológico, quer no plano epistemológico, que acabaram por representar alguns problemas filosóficos estudados na dissertação ora apresentada pelo Fernando.

Fernando Braga (ao centro) acompanhado pelos Professores Manuel Curado, Pedro Martins, João Rosas e José Carlos Casulo (da esquerda para a direita).

Naquele dia, positivo e não positivista, ficamos também a saber que a obra de Júlio de Matos divide-se em duas partes: uma técnica; outra filosófica. No entanto, existe uma reciprocidade entre ambas, uma influência mútua: “Neste contexto, refira-se, para além do âmbito clínico, a sua obra divulga paralelamente os ideais positivistas. Júlio de Matos foi um dos principais introdutores e defensores destes ideais em Portugal, tendo sido inclusivamente um dos fundadores da Revista Portuguesa de Filosofia «O Positivismo». Como se sabe, a escola positivista, liderada pela filosofia de August Comte, procurou impor uma disciplina científica, uma doutrina assente no rigor, assente numa leitura do facto concreto e indesmentível, tangível, mensurável e na rejeição de toda e qualquer especulação metafísica” – disse a dado momento o nosso bom amigo/irmão Fernando Braga. E colocaria mais duas interrogações: Poderá este cientificismo esgotar o conhecimento da realidade? Poderá o conhecimento científico explicar na íntegra os estados patológicos de loucura?
Por fim, ficamos a saber que a dissertação ora apresentada procurava destacar a projecção pública dos ideais positivistas defendidos por Júlio de Matos, procurando destacar a influência das suas ideias nos tribunais portugueses do século XIX em temas tão delicados como, por exemplo, o da inimputabilidade penal. A inimputabilidade, o problema do outro, a mente humana com desvios são questões perenes, importantes, questões filosóficas que continuamos a ter nos nossos dias e que, no fundo, realçam a importância a atribuir à obra de Júlio de Matos. E foi isso o que fez o agora MESTRE António Fernando Gomes Braga.
A promessa de continuar a explorar as áreas ou problemas filosóficos, que abarquem a ontologia, epistemologia, filosofia da mente, filosofia política e social, etc. ficou ar. Venha então daí a tese de doutoramento.     
O júri composto pelos Professores Doutores João Rosas (Presidente), José Carlos Casulo, do Instituto de Educação (arguente principal) e Pedro Martins, chefe do Departamento de Filosofia – todos da Universidade do Minho –, atribuiu-lhe a excelente nota de dezassete valores (17), um valor abaixo do que preconizáramos. O orientador da dissertação foi o nosso particular amigo e grande filósofo da mente e das Ciências Cognitivas, Professor Doutor Manuel Curado.
Um bem-haja a todos, por este extraordinário contributo científico para o estudo da mente, enigmático espaço onde gravitam o consciente e o inconsciente. Apesar de, como um dia escreveria o Professor Manuel Curado, “sabermos muito pouco sobre o que faz a consciência num mundo em evolução, os seres humanos sabem como transformar a consciência”. Por que razão existe consciência no mundo físico quando é pensável a sua não existência?

        É isso que o nosso amigo/irmão Fernando Braga se propõe continuar a procurar!

Friday, March 15, 2013

A “Condição Humana” em Hannah Arendt!


A Condição Humana é uma obra de grande originalidade, com concepções inesperadas e, em muitos aspectos, mais importante hoje do que na altura em que surgiu (1958). / Os problemas que Arendt identificou então, a partir de uma perspectiva histórica (…) são cada vez mais actuais”.

O Editor “Relógio d’Água”

Pelo simples facto do nome da filósofa norte-americana Hannah Arendt [N. Hanôver, 1906 – m. Nova Iorque, 1975] ter sido citado nas “Correntes d’Escritas” pelo poeta Vergílio Alberto Vieira (dissertação que nos comoveu profundamente), e porque muitos dos leitores das nossas crónicas insistem na auscultação da nossa opinião no que toca ao actual estado das nações (mesmo ao mais pequeno Estado do mundo, a tombos com problemas vários, de natureza ética e moral), procuramos algum discernimento – dado que temos evitado entrar pelos meandros tórpidos da política e da religião – de causa-efeito, por forma a reproduzirmos algo que seja útil à nossa condição, temática de pouco agrado para os fazedores do “capitalismo selvagem”, destruidor da própria condição humana. E é precisamente em Hannah Arendt que nos revemos, como condição “sine qua non” para reflectirmos sobre o tal estado das nações. Para isso, impôs-se-nos a releitura de Hannah Arendt dos tempos académicos.
Com a expressão vita activa, Hannah Arendt pretende designar três actividades humanas fundamentais: labor, trabalho e acção. Trata-se de actividades fundamentais porque cada uma delas corresponde uma das condições básicas mediante as quais a vida foi dada ao homem na Terra. O labor é a actividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano; o trabalho é a actividade correspondente ao artificialismo da existência humana; e a acção, a única actividade que se exerce directamente entre os homens sem mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade. As três actividades e as suas respectivas condições estão intimamente relacionadas com as condições mais gerais da existência humana: o nascimento e a morte, a natalidade e a mortalidade. Apesar do labor, do trabalho e da acção terem raízes na natalidade – na medida em que a sua tarefa é produzir e preservar o mundo para o constante influxo de recém-chegados que, segundo Hannah Arendt, vêm a este mundo na qualidade de estranhos, além de os prever e ter em conta –, a acção é a mais intimamente relacionada com a condição humana da natalidade. Por isso, todas as actividades humanas possuem um elemento de acção e, portanto, de natalidade. Para além disso, sendo a acção uma actividade política por excelência, a natalidade pode constituir a categoria central do pensamento político, em contraposição ao pensamento metafísico.

Outro factor importante a ter em conta é que para Hannah Arendt os homens são seres condicionados, dado que tudo aquilo com o qual entram em contacto torna-se imediatamente uma condição da sua existência: O que quer que toque a vida humana ou entre duradoura relação com ela, assume imediatamente o carácter de condição da existência humana. É por isso que os homens são sempre seres condicionados.
A condição humana não é o mesmo que a natureza humana, e a soma total das actividades e capacidades humanas que correspondem à própria condição humana não constitui algo que se assemelhe à natureza humana. A condição humana diz respeito às formas de vida que o homem impõe a si mesmo para sobreviver. São condições que tendem a suprir a existência do homem: as condições da existência humana – a própria vida, a natalidade e a mortalidade, a mundanidade, a pluralidade e o planeta Terra – não podem «explicar» o que somos ou responder a perguntas sobre o que somos, pela simples razão de que não nos condicionam de modo absoluto. Segundo Hannah Arendt, esta sempre foi a opinião da filosofia, em contraposição às ciências – antropologia, psicologia, biologia, etc. – que também têm no homem o seu objecto de estudo. Outro facto relevante é que, embora vivamos (ou tenhamos que viver) sob condições terrenas, não somos meras criaturas terrenas.
Para a mesma filósofa, a expressão vita activa é perpassada e sobrecarregada de tradição. Com o desaparecimento da antiga cidade-estado a expressão vita activa perdeu o seu significado especificamente político e passou a denotar todo o tipo de envolvimento activo nas coisas deste mundo: Convém lembrar que isto não queria dizer que o trabalho e o labor tivessem alcançado posição mais elevada na hierarquia das actividades humanas e fossem agora tão dignos como a vida política. De facto, o oposto é que era verdadeiro: a acção passara a ser vista como uma das necessidades da vida terrena, de tal modo que a contemplação […] era o único modo de vida realmente livre. Apesar disso, a enorme superioridade da contemplação sobre qualquer outro tipo de actividade, inclusive a acção, não é de origem cristã, dado que encontramo-la na filosofia política de Platão. Sendo assim, a expressão vita activa compreendendo todas as actividades humanas e definida do ponto de vista da absoluta quietude da contemplação, corresponde mais à askholia grega («ocupação», «desassossego») com a qual Aristóteles designava toda a actividade, do que ao bios politikos dos gregos: O primado da contemplação sobre a actividade baseia-se na convicção de que nenhum trabalho de mãos humanas pode igualar em beleza e verdade o “Kosmos” físico, que se resolve em torno de si mesmo, em imutável eternidade, sem qualquer interferência ou assistência externa, seja humana ou divina. Daí, Hannah Arendt afirmar que, tradicionalmente, a expressão vita activa deriva o seu significado da vita contemplativa. Contudo, para a mesma filósofa, o enorme valor da contemplação na hierarquia tradicional obscureceu as diferenças e manifestações no âmbito da própria vita activa: o uso que dou à expressão “vita activa” pressupõe que a preocupação subjacente a todas as actividades não é a mesma preocupação central da “vita contemplativa”, tal como não lhe é superior nem inferior.
Desde que «os homens de pensamento e os homens de acção começaram a enveredar por caminhos diferentes», as várias formas de envolvimento activo nas coisas deste mundo, por um lado, e o pensamento puro que culmina na contemplação, por outro, passaram a corresponder a duas preocupações humanas inteiramente diferentes. A forma mais fácil de ilustrar estes dois princípios diferentes – e até conflituantes – é lembrar a diferença entre imortalidade e eternidade: Imortalidade significa continuidade no tempo, vida sem morte nesta terra e neste mundo, tal como foi dada, segundo o consenso grego, à natureza e aos deuses do Olimpo. Contra este pano de fundo – a vida perpétua da natureza e a vida divina, isenta de morte e de velhice – entravam-se os homens mortais, os únicos mortais num universo imortal mas não eterno, em comparação com as vidas imortais dos seus deuses mas não sob o domínio de um Deus eterno. Os homens, face às suas capacidades de realizar feitos imortais, e apesar da sua mortalidade individual, atingem o seu próprio tipo de imortalidade e demonstram a sua natureza «divina». A diferença entre o homem e o animal aplica-se à própria espécie humana. Para Hannah Arendt, só os melhores, que constantemente provam ser os melhores – e que «preferem a fama imortal às coisas mortais» –, são realmente humanos; os outros, porque satisfeitos com os prazeres que a natureza lhes oferece, vivem e morrem como animais. A experiência do eterno (tal como a tem o filósofo) só pode ocorrer fora da esfera dos negócios humanos e fora da pluralidade dos homens. E o exemplo é-nos dado pela alegoria da Caverna de Platão, na qual o filósofo tendo-se libertado dos grilhões que o prendiam aos seus semelhantes, emerge na caverna, em perfeita «singularidade», nem acompanhado nem seguido de outros: Politicamente falando, se morrer é o mesmo que «deixar de estar entre os homens», a experiência do eterno é uma espécie de morte; a única coisa que a separa da morte real é que não é final pois nenhuma criatura viva pode suportá-la durante muito tempo. Segundo Hannah Arendt é isto precisamente que separa a vita contemplativa da vita activa, nomeadamente no pensamento medieval.
        Para terminarmos, e porque seria incomportável – face à noção do espaço disponível – falar aqui de outros temas abordados por Hannad Arendt, reiteramos apenas um conselho para os políticos (?) de todas as nações: Leiam “A Condição Humana” de Hannah Arendt, sem procurarem “equivalências” ou coisas tais, tendo em conta que, segundo esta ilustre filósofa, o facto histórico decisivo é que a privacidade moderna, na sua função mais relevante – proteger aquilo que é íntimo – foi descoberta não como o oposto da esfera política, mas da esfera social, com a qual, no entanto, tem laços ainda mais estreitos e mais autênticos. Enquanto isso, continuamos a pensar que – bebendo em Hannah Arendt – “a nossa crença na realidade da vida e na realidade do mundo não são, com efeito, a mesma coisa”. Abyssus abyssum invocat!

Friday, March 08, 2013

Recordar Álvaro Feijó no 72.º aniversário da sua morte!


“Só numa coisa te enganaste, poeta. Aqui estamos nós a lembrar-te, nós os teus companheiros e os teus leitores. Porque abriste os olhos sobre o nosso mundo, porque cantaste a rua, a fome, o sofrimento, mas sobretudo porque os soubeste cantar, sem o que nunca conseguirias que toda a gente visse, sentisse e sofresse só de ver sofrer”.

João José Cochofel

Com apenas vinte e quatro anos de idade, mais precisamente a 9 de Março de 1941 – por isso, faz amanhã setenta e dois anos –, faleceu de tuberculose, em Coimbra, o poeta vianense Álvaro Feijó, de seu nome completo Álvaro de Castro e Sousa Correia Feijó, que havia nascido na “Princesa do Lima”, em 5 de Julho de 1916. Filho de Rui de Menezes de Castro Feijó e de D. Maria Luísa Malheiro de Faria e Távora Abreu e Lima, fez os estudos secundários no colégio dos jesuítas de La Guardia, na vizinha Galiza, inscrevendo-se seguidamente na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Influenciado pela obra de seu tio-avô António Feijó (1859-1917), introdutor e cultor exímio do “Parnasianismo” francês no nosso país, surgem os “Primeiros Versos” de Álvaro Feijó que, segundo os críticos, “constituem a manifestação de um talento poético embrionário, caracterizada por um ensaio de versificação parnasiana. Poemas de adolescência centram-se na subjectividade do «eu» e nos temas do amor, reeditando a tensão entre o amor espiritual e carnal, o cerne temático da lírica de Camões, mas com um pendor tendencial para o amor petrarquista”. Por outro lado, o poeta tenta a definição do próprio caminho poético, denunciando a sua crise de identidade, dividido entre a sua condição de aristocrata e as exigências da transformação social: “calcorreei a estrada, encadernado / de senhor feudal / e, quando eu passava, lentamente, / desbarretavam-se as gentes, temerosas / do meu guante ferrado, que abatia / iras incontenidas / sobre justos e injustos, num fatal / julgamento de morte e destruição!” ou “Da minha Torre branca de Marfim / há vinte anos parti, brilhante o olhar, / buscando o fim da estrada que, sem fim, / não sei, eu próprio, ainda, onde vai dar”.


Apesar de já conhecermos a poesia de Álvaro Feijó há cerca de três décadas e meia, altura em que adquirimos a 3.ª edição (Setembro de 1978) dos seus poemas (Os Poemas de Álvaro Feijó), Brasília Editora, muito recentemente, fomos contemplados com o maravilhoso livro com o mesmo título “Os Poemas de Álvaro Feijó”, edição de “Evoramons Editores” (Junho de 2005), numa gentil oferta da nossa particular amiga Andrea Pinto de Castro Feijó, prima em 2.º grau desta figura mítica da geração que, na Coimbra de finais dos anos trinta do século passado, e como se pode ler em sinopse na contracapa, “veio a lançar o movimento conhecido como neo-realismo. (…) Prova disso, a poesia que nos deixou, onde os temas de mais fundas raízes na cultura e literatura portuguesas se irmanam a uma consciência social em carne viva”. Esta obra, tal como a edição de 1978, reúne os “Primeiros Versos”, “Corsário” e o inacabado “Diário de Bordo”. E para que conste, por forma a acicatar os preconcebidos entorpecimentos, convenhamos em recordar que os versos de Álvaro Feijó foram publicados em revistas como “Sol Nascente”, “O Diabo”, “Altitude” e “Seara Nova” e, postumamente, no “Novo Cancioneiro”. Companheiro no exercício poético de Políbio Gomes dos Santos, Joaquim Namorado e José João Cochofel, formado nos princípios da escola neo-realista, a sua poesia sofre a trágica influência da guerra civil de Espanha, entre 1936-1939, e da segunda Grande Guerra. Não é por acaso que no “Corsário” (1940), o único livro que publicou em vida, há um apelo fundamental à reforma da sociedade e da justiça social e ao esvaziamento dos conteúdos religiosos, substituídos por temas laicos. No “Diário de Bordo”, que ficou incompleto devido à doença implacável, assistimos a uma nova estratégia temática: “são versos de sarcasmo feroz dirigidos à própria classe aristocrata, ridicularizada nos seus actos de mundanidade frívola, numa ironia ao nível queirosiano”. Mas, ainda segundo a crítica, “é no âmbito da temática religiosa que a poesia de Álvaro Feijó atinge uma perfeição notável de fundo e de forma”, como no poema «Nossa Senhora da Apresentação», que constitui uma súmula dos vectores temáticos do neo-realismo: “O altar as vagas, / o dossel a espuma! / Missas rezadas pelo vento, / ora pelos fiéis defuntos que se foram / noutras vagas, / ora pelas barcaças que, uma a uma, / buscaram as sereias na distância / e se foram com elas (…) O dossel a espuma. / O altar as vagas / – e que altar enorme! – / Entre círios de estrelas, / Nossa Senhora da Apresentação / e Justificação / – a Fome!” – assim se pode ler no início e na parte final do poema. Perpassam pelos poemas de Álvaro Feijó “caminhos de montanha”; o lançar “em linhas tortas / no branco do papel, sinceramente, / idas fragrâncias de ilusões já mortas, / desejos do presente”; a tão actual nau perdida (tendo em conta o lado visionário dos poetas), “na rota pelo Mundo / – ao deus-dará na vaga azul e infinda – / nós vamos – nau perdida em Mar profundo – / joguetes do tufão; / mas conservando, ainda, / na última Esperança a última Ilusão”; o temor; a transfiguração; a fraqueza, quando o poeta se encontra sozinho, “mas animado de uma força rara”; o credo; a fuga, mesmo quando “de nada serviu a fuga e o sacrifício”; o nascer “numa manhã com neblina de bronze / sobre o rio”; a rota sem fim; o marasmo que “há dentro de mim, como num búzio / a voz do Mar”; o apelo à “Senhora da Noite, deixa o Mundo / para que todo o mundo o possa ver”; o livro de horas, onde há a história do destino do poeta; o palhaço, sendo que o poeta foi palhaço de si mesmo; o poema da renúncia, no qual brada “que venha a noite e deixe o seu mistério / sobre nós, / e traga, sobre nós, o esquecimento!"; a gare de “choros e gritos! / Namoradas perdidas, / mães velhinhas / e os amigos, / numa espécie de inveja dolorida, / por não poderem partir”; o “Livro de Bordo de Corsário, deixa / que o tempo apague a tua prosa inútil / e escreve a história imensa / daquela frota em que tu vais partir / – como pobre navio auxiliar – / à demanda e à conquista / do Novo Continente!”; o “Diário de Bordo” onde “os cais são as esfinges / do Mar” e onde se questiona o “Piloto! / – De que serve o sextante / quando o não sabes usar?”; a largada; o claro-escuro; o sargaceiro; a varina e o porquê da existência: “Porque existes, não sei! / Mas sei para que existes”. Um poeta sublime, cujo trajecto vital seria tão curto como fulgurante.
Fica desde já aqui lançado o repto, em jeito de lembrete, nomeadamente aos agentes culturais de Viana do Castelo e Ponte de Lima, de que em 2016 se comemora o centenário do seu nascimento. Até lá, voltaremos a desentediar as indisposições dos que se têm pautado pela asfixia dos que, tal como Álvaro Feijó, não foram “feitos para andar ao sol, / continuamente, / nem para ter saudades do passado / ou para chorar um sonho que se esfolha”. Em memória de Álvaro Feijó, continuaremos a contar estrelas, ainda que elas morram, à medida que as contamos.
        Terminaremos aludindo ao que seu irmão Rui Feijó escreveu nesta magnífica edição de “Os Poemas de Álvaro Feijó”: “Lembro-me da alegria que ele teve quando saiu a primeira edição do Corsário e daquilo que escreveu no primeiro exemplar, que conservo, e que era todo um programa de futuro”. E interroga-se: “Qual seria hoje a sua alegria se pudesse saber que a sua poesia permanece no imaginário de várias gerações, que figura em todas as antologias responsáveis da poesia do tempo em que viveu e que continua a ser editado”. Diremos nós que – e complementando com a lisura do poeta – por mais que façam contra a poesia e contra os poetas, “a miséria é tão grande do meu lado / que me apetece ir combater / do lado dos inimigos” e “eu sinto / que vale mais morrer do outro lado, / onde se morre mais limpo”.

Friday, March 01, 2013

Correntes d’Escritas, Hélia Correia e “A Terceira Miséria”!


“De que armas disporemos, senão destas / Que estão dentro do corpo: o pensamento, / A ideia de polis, resgatada / De um grande abuso, uma noção de casa / E de hospitalidade e de barulho / Atrás do qual vem o poema, atrás / Do qual virá a colecção dos feitos / E defeitos humanos, um início”.

Hélia Correia

Já há muito que nos sentíamos atraídos pelas Correntes d’Escritas, ou simplesmente Correntes, como é conhecido o encontro anual de escritores de expressão ibérica que decorre todos os anos, durante o mês de Fevereiro, na Póvoa de Varzim, numa organização do Pelouro da Cultura da Câmara Municipal local. Normalmente, os escritores que aqui participam, são provenientes de países e continentes onde se falam as línguas portuguesa e espanhola, desde a Península Ibérica, passando pela América Central e do Sul à África Lusófona. O primeiro encontro realizou-se em Fevereiro de 2000, ano em que se assinalou o Centenário da Morte de Eça de Queirós. A partir de 2004, passou a ser atribuído um prémio para novas obras em prosa ou poesia, em anos alternados, chamado Prémio Literário Casino da Póvoa. Este ano, decorreu a 14.ª Edição das Correntes d'Escritas e o tão “cobiçado” Prémio Literário foi atribuído à poetisa e dramaturga Hélia Correia, com o seu maravilhoso livro – um dos melhores de poesia, que lemos até hoje – “A Terceira Miséria”, num empolgante regresso desta filóloga românica à poesia, à memória e aos clássicos. De facto, e tal como diria Carlos Vaz Marques (TSF), a paixão pela Grécia, desde há muito presente na obra de Hélia Correia, desagua agora neste livro de poesia, onde a Grécia clássica surge como farol e como impossibilidade, similitude nossa na indigência: “Nós, os ateus, nós, os monoteístas, / Nós, os que reduzimos a beleza / A pequenas tarefas, nós, os pobres / Adornados, os pobres confortáveis, / Os que a si mesmos se vigarizavam / Olhando para cima, para as torres, / Supondo que as podiam habitar, / Glória das águias que nem águias tem, / Sofremos, sim, de idêntica indigência, / Da ruína da Grécia”.

A escritora Hélia Correia (ao centro) com Ana Cristina Moreira e Porfírio Silva

Impulsionados pela imperativa necessidade de nos encontrarmos com a Hélia Correia – por forma a sentirmos-lhe o “pulsar da glória” –, e, ao mesmo tempo, auscultarmos o questionável querer temático, aberto aos motes “de que armas disporemos, se não destas que estão dentro do corpo” e “só o que não se sabe é poesia”, lá rumamos até às Correntes d'Escritas, onde assistimos a dois extraordinários painéis, que redundaram num salutar e frutífero convívio, com os escritores: Helena Vasconcelos, Jesús del Campo, Luís Cardoso, Miguel Miranda, Maria Teresa Horta, Aurelino Costa, Ivo Machado, João Luís Barreto Guimarães, José Mário Silva, Lauren Mendinueta e Vergílio Alberto Vieira, magnanimamente moderados por João Gobern e Francisco José Viegas. Foi lá, no “interlúdio” das magníficas intervenções, que sentimos o cérebro como “um órgão fazedor de poesia” e que, normalmente, “funciona sob o garrote da lógica”, qual desafio aristotélico premeditaria, também, a poesia como provocadora da catarse. Tal como foi sugerido por Helena Vasconcelos, bom seria que “trocassem as doses maciças de austeridade por doses maciças de poesia”. E Maria Teresa Horta lá foi dizendo que os poetas são os alquimistas do futuro e a poesia cada vez mais se vai tornando numa arma mortífera para os ditadores. Daí, alguma alergia ao “Grândola, vila morena” e ao facto de ela se negar a receber o Prémio D. Dinis, das mãos do primeiro-ministro Passos Coelho: “Eu não recebi da mão do primeiro-ministro o prémio e não recebi nada. Nem uma côdea de pão, mesmo que estivesse a morrer de fome. Não recebo nada da mão desse senhor”, acrescentando “que bom seria se os fracos legisladores de agora trocassem a malfadada austeridade, a carga feroz sobre as nossas costas, que provoca o desequilíbrio, a queda e o desmembrar do tecido da polis, que trocassem as doses maciças de austeridade por doses maciças de poesia para nos purgar definitivamente”… Os poetas, os legisladores não reconhecidos do mundo. Definitivamente, voltamos ao brado de Hélia Correia: “Para que servem poetas se não podem / Nem delirar, se os textos do delírio / Serão tomados pelo seu contrário? / A bela rapariga dos cabelos / Cor de violeta, Atenas, onde está? / Quem escavará o monte até aos ossos / Para que dele ressurjam esses que / Nos deixaram sozinhos?”. Será que não há nada a dizer sobre a indigência?
   

          
          Para terminarmos da melhor maneira, e como não podia deixar de ser, o reencontro com Hélia Correia veio a acontecer, o que forçaria um agradável acrescento à dedicatória de Outubro de 2012: “Assinalando o reencontro nas Correntes de Escritas de 2013. Outro beijo...”. E registamos a inquietação de Hélia Correia: “Para quê, perguntou ele, para que servem / Os poetas em tempo de indigência? (p. 7)”. Ainda que seja para cantar o "Grândola, vila morena", diremos nós e disseram eles nas Correntes d'Escritas!