Friday, March 15, 2013

A “Condição Humana” em Hannah Arendt!


A Condição Humana é uma obra de grande originalidade, com concepções inesperadas e, em muitos aspectos, mais importante hoje do que na altura em que surgiu (1958). / Os problemas que Arendt identificou então, a partir de uma perspectiva histórica (…) são cada vez mais actuais”.

O Editor “Relógio d’Água”

Pelo simples facto do nome da filósofa norte-americana Hannah Arendt [N. Hanôver, 1906 – m. Nova Iorque, 1975] ter sido citado nas “Correntes d’Escritas” pelo poeta Vergílio Alberto Vieira (dissertação que nos comoveu profundamente), e porque muitos dos leitores das nossas crónicas insistem na auscultação da nossa opinião no que toca ao actual estado das nações (mesmo ao mais pequeno Estado do mundo, a tombos com problemas vários, de natureza ética e moral), procuramos algum discernimento – dado que temos evitado entrar pelos meandros tórpidos da política e da religião – de causa-efeito, por forma a reproduzirmos algo que seja útil à nossa condição, temática de pouco agrado para os fazedores do “capitalismo selvagem”, destruidor da própria condição humana. E é precisamente em Hannah Arendt que nos revemos, como condição “sine qua non” para reflectirmos sobre o tal estado das nações. Para isso, impôs-se-nos a releitura de Hannah Arendt dos tempos académicos.
Com a expressão vita activa, Hannah Arendt pretende designar três actividades humanas fundamentais: labor, trabalho e acção. Trata-se de actividades fundamentais porque cada uma delas corresponde uma das condições básicas mediante as quais a vida foi dada ao homem na Terra. O labor é a actividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano; o trabalho é a actividade correspondente ao artificialismo da existência humana; e a acção, a única actividade que se exerce directamente entre os homens sem mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade. As três actividades e as suas respectivas condições estão intimamente relacionadas com as condições mais gerais da existência humana: o nascimento e a morte, a natalidade e a mortalidade. Apesar do labor, do trabalho e da acção terem raízes na natalidade – na medida em que a sua tarefa é produzir e preservar o mundo para o constante influxo de recém-chegados que, segundo Hannah Arendt, vêm a este mundo na qualidade de estranhos, além de os prever e ter em conta –, a acção é a mais intimamente relacionada com a condição humana da natalidade. Por isso, todas as actividades humanas possuem um elemento de acção e, portanto, de natalidade. Para além disso, sendo a acção uma actividade política por excelência, a natalidade pode constituir a categoria central do pensamento político, em contraposição ao pensamento metafísico.

Outro factor importante a ter em conta é que para Hannah Arendt os homens são seres condicionados, dado que tudo aquilo com o qual entram em contacto torna-se imediatamente uma condição da sua existência: O que quer que toque a vida humana ou entre duradoura relação com ela, assume imediatamente o carácter de condição da existência humana. É por isso que os homens são sempre seres condicionados.
A condição humana não é o mesmo que a natureza humana, e a soma total das actividades e capacidades humanas que correspondem à própria condição humana não constitui algo que se assemelhe à natureza humana. A condição humana diz respeito às formas de vida que o homem impõe a si mesmo para sobreviver. São condições que tendem a suprir a existência do homem: as condições da existência humana – a própria vida, a natalidade e a mortalidade, a mundanidade, a pluralidade e o planeta Terra – não podem «explicar» o que somos ou responder a perguntas sobre o que somos, pela simples razão de que não nos condicionam de modo absoluto. Segundo Hannah Arendt, esta sempre foi a opinião da filosofia, em contraposição às ciências – antropologia, psicologia, biologia, etc. – que também têm no homem o seu objecto de estudo. Outro facto relevante é que, embora vivamos (ou tenhamos que viver) sob condições terrenas, não somos meras criaturas terrenas.
Para a mesma filósofa, a expressão vita activa é perpassada e sobrecarregada de tradição. Com o desaparecimento da antiga cidade-estado a expressão vita activa perdeu o seu significado especificamente político e passou a denotar todo o tipo de envolvimento activo nas coisas deste mundo: Convém lembrar que isto não queria dizer que o trabalho e o labor tivessem alcançado posição mais elevada na hierarquia das actividades humanas e fossem agora tão dignos como a vida política. De facto, o oposto é que era verdadeiro: a acção passara a ser vista como uma das necessidades da vida terrena, de tal modo que a contemplação […] era o único modo de vida realmente livre. Apesar disso, a enorme superioridade da contemplação sobre qualquer outro tipo de actividade, inclusive a acção, não é de origem cristã, dado que encontramo-la na filosofia política de Platão. Sendo assim, a expressão vita activa compreendendo todas as actividades humanas e definida do ponto de vista da absoluta quietude da contemplação, corresponde mais à askholia grega («ocupação», «desassossego») com a qual Aristóteles designava toda a actividade, do que ao bios politikos dos gregos: O primado da contemplação sobre a actividade baseia-se na convicção de que nenhum trabalho de mãos humanas pode igualar em beleza e verdade o “Kosmos” físico, que se resolve em torno de si mesmo, em imutável eternidade, sem qualquer interferência ou assistência externa, seja humana ou divina. Daí, Hannah Arendt afirmar que, tradicionalmente, a expressão vita activa deriva o seu significado da vita contemplativa. Contudo, para a mesma filósofa, o enorme valor da contemplação na hierarquia tradicional obscureceu as diferenças e manifestações no âmbito da própria vita activa: o uso que dou à expressão “vita activa” pressupõe que a preocupação subjacente a todas as actividades não é a mesma preocupação central da “vita contemplativa”, tal como não lhe é superior nem inferior.
Desde que «os homens de pensamento e os homens de acção começaram a enveredar por caminhos diferentes», as várias formas de envolvimento activo nas coisas deste mundo, por um lado, e o pensamento puro que culmina na contemplação, por outro, passaram a corresponder a duas preocupações humanas inteiramente diferentes. A forma mais fácil de ilustrar estes dois princípios diferentes – e até conflituantes – é lembrar a diferença entre imortalidade e eternidade: Imortalidade significa continuidade no tempo, vida sem morte nesta terra e neste mundo, tal como foi dada, segundo o consenso grego, à natureza e aos deuses do Olimpo. Contra este pano de fundo – a vida perpétua da natureza e a vida divina, isenta de morte e de velhice – entravam-se os homens mortais, os únicos mortais num universo imortal mas não eterno, em comparação com as vidas imortais dos seus deuses mas não sob o domínio de um Deus eterno. Os homens, face às suas capacidades de realizar feitos imortais, e apesar da sua mortalidade individual, atingem o seu próprio tipo de imortalidade e demonstram a sua natureza «divina». A diferença entre o homem e o animal aplica-se à própria espécie humana. Para Hannah Arendt, só os melhores, que constantemente provam ser os melhores – e que «preferem a fama imortal às coisas mortais» –, são realmente humanos; os outros, porque satisfeitos com os prazeres que a natureza lhes oferece, vivem e morrem como animais. A experiência do eterno (tal como a tem o filósofo) só pode ocorrer fora da esfera dos negócios humanos e fora da pluralidade dos homens. E o exemplo é-nos dado pela alegoria da Caverna de Platão, na qual o filósofo tendo-se libertado dos grilhões que o prendiam aos seus semelhantes, emerge na caverna, em perfeita «singularidade», nem acompanhado nem seguido de outros: Politicamente falando, se morrer é o mesmo que «deixar de estar entre os homens», a experiência do eterno é uma espécie de morte; a única coisa que a separa da morte real é que não é final pois nenhuma criatura viva pode suportá-la durante muito tempo. Segundo Hannah Arendt é isto precisamente que separa a vita contemplativa da vita activa, nomeadamente no pensamento medieval.
        Para terminarmos, e porque seria incomportável – face à noção do espaço disponível – falar aqui de outros temas abordados por Hannad Arendt, reiteramos apenas um conselho para os políticos (?) de todas as nações: Leiam “A Condição Humana” de Hannah Arendt, sem procurarem “equivalências” ou coisas tais, tendo em conta que, segundo esta ilustre filósofa, o facto histórico decisivo é que a privacidade moderna, na sua função mais relevante – proteger aquilo que é íntimo – foi descoberta não como o oposto da esfera política, mas da esfera social, com a qual, no entanto, tem laços ainda mais estreitos e mais autênticos. Enquanto isso, continuamos a pensar que – bebendo em Hannah Arendt – “a nossa crença na realidade da vida e na realidade do mundo não são, com efeito, a mesma coisa”. Abyssus abyssum invocat!

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