Friday, October 31, 2014

Alma, movimento ou princípio de vida?!...

«…É, por conseguinte, impossível que a alma possa ser movida, constituindo isto um facto que claramente transparece daquilo que anteriormente se referiu. Contudo, é necessário que ela seja absolutamente subtraída ao movimento, em virtude de ser evidente não poder a alma saber mover-se a si própria.»

Aristóteles

Alma é um termo que deriva do latim Anima, que o mesmo será dizer princípio que dá movimento ao que é vivo, o que é animado ou o que faz mover. De Anima, derivam diversas palavras tais como: animal (em latim, animalia), animador, etc. Antes de Platão, por exemplo, muitas foram as especulações à volta da ideia de alma, cuja complexidade dessas mesmas especulações levaria esse mesmo filósofo a defender um dualismo quase radical do corpo e da alma. Há quem afirme que Platão absorveu o então constituído complexo de especulações sobre a ideia de alma, acabando por o «purificar». De facto, até ali, o domínio das concepções populares, sobretudo até ao final da cultura antiga, representava a alma como um morto (sombra que desce ao seio da terra); “como um alento ou princípio de vida; como realidade aérea que vagueia em redor dos vivos e se manifesta sob a forma de forças e acções, etc.” – citamos Ferrater Mora, representações essas a que não ficaram alheios alguns dos pensadores da cultura antiga, e de que damos exemplo através da “noção homérica da psyche ou alma-sopro vital como uma imagem insubstancial do corpo, a que dá vida e ao qual sobrevive numa existência miserável e exangue no Hades”. Outro dos exemplos vem-nos de Pitágoras, possivelmente o primeiro grego a encarar explicitamente a alma como algo de moralmente importante. Por fim, chegamos a Heraclito, apontado como o primeiro a mostrar com clareza a relevância que o conhecimento da alma tinha para o conhecimento da estrutura dos cosmos. Assim, poderemos afirmar que o conceito da “imortalidade da alma” é muito antigo, sendo que as suas raízes remontam ao princípio da história humana.
Filosófica e religiosamente, nos tempos que correm, a alma é definida como a parte espiritual do homem, que se julga continuar viva após a morte do corpo, podendo o seu destino ser a beatitude celestial, uma temporada no purgatório ou o tormento eterno. Segundo este ponto de vista, a morte é considerada como a passagem da alma para a vida eterna, no domínio espiritual. Santo Agostinho, por exemplo, quando confrontado com a realidade factual da mortalidade do homem, questionou a simultaneidade desse mesmo homem ser feliz e mortal, pelo facto de muitos negarem ao homem a capacidade de ser feliz enquanto vive sujeito à mortalidade. É nesta expectativa que a grande maioria das religiões, cristãs e não-cristãs, concorda em linhas gerais com a definição da alma como imortal. O hinduísmo, por exemplo, crê na transmigração da alma (princípio individual – atman) ao contrário do budismo, que não crê numa alma como é entendida no ocidente, mas somente numa sequência de um momento de aparecimento que dá origem ao seguinte, de forma que a morte representa simplesmente uma nova forma de aparecimento, como ser humano ou animal, no céu ou no inferno. Por isso, no budismo, fala-se de renascimento e não de reencarnação.


Alma, movimento ou princípio de vida? Esta pertinente interrogação coloca-nos outras tantas interrogações, tendo em conta que ao falar-se do conceito de alma não podemos desassociar-lhe o sentido material da realidade corpórea. Como diria Ferrater Mora: o sentido da unidade do corpo e da alma é a relação de uma actualidade com uma potencialidade. Contudo, e em função do enquadramento do conceito de alma ou psyché – ou mito da alma – no âmbito da ontologia, poderemos afirmar que estes conceitos sofreram, ao longo da história do pensamento, constantes transformações. Não é por acaso que muitos são os autores a afirmar que a questão da existência e da natureza da alma humana constitui – principalmente, para nós hoje – uma das questões mais debatidas pelos autores que desenvolvem a perspectiva filosófica das ciências cognitivas. O “momento-chave” do pensamento disjuntivo, assente no dualismo ontológico, fundamenta-se na reminiscência, sendo que esta leva à “fuga do mundo”. Esta forma surpreendente do pensamento, ao contrário da interpretação meramente moral, apresenta-se-nos com uma significação que vai muito para além dessa mesma moralidade. A partir do momento que a “verdade” não é deste mundo – mas do “mundo das ideias” –, que não reside no sensível e nas suas aparências, ela é ontológica.
A questão ontológica, posta em relevo por Parménides – para quem o ser era o fundo ontológico dos fenómenos –, adquire com Platão e com Aristóteles o estatuto de ciência filosófica fundamental. Através de Aristóteles, com a sua Metafísica, abriu-se e fixou-se os caminhos da Filosofia como Ontologia, até que com Descartes, a reflexão se orientou não tanto para a questão do ser como para a questão do saber acerca do ser. Segundo Celestino Pires, na perspectiva da Ontologia – do ente enquanto ente – há uma procura de saber o que é o ser, com base no ente real (aquele que exerce o acto de ser) e não no ente em sentido nominal, comum ao existente e ao possível. Por isso, o conceito de alma, ao assentar nesse dualismo ontológico e ao admitirmos que os diversos tipos de alma – vegetativa, animal, humana –, defendidos por Aristóteles, são diversos tipos de função, facilmente poderemos concluir que as «partes» da alma em cada um destes tipos de função constituem outros tantos modos de operação. Seguindo o raciocínio de Ferrater Mora, no caso concreto da alma humana, o modo de operação principal é o racional, que distingue esta alma de outras no reino orgânico: Isso não significa que não haja nessa alma outras operações. Pode-se falar da parte nutritiva, sensitiva, imaginativa e apetitiva da alma, ou seja de outras tantas operações. Mediante as operações da alma, especialmente da sensível e da pensante, a alma pode reflectir todas as coisas, já que todas são sensíveis ou pensáveis e isso faz que, como diz Aristóteles numa fórmula muito comentada, a alma seja de certo modo de todas as coisas.

Ao especularmos a relação entre o ser e os entes; o saber acerca do ser; a questão das linhas do tempo e do ser; a constatação de que o conhecimento vem sobre aquilo que se realiza; a “verdade” não é deste mundo – mas do “mundo das ideias”; e a alma humana, cujo modo de operação principal é o racional, por certo que nos confrontamos com a dimensão ontológica.

Friday, October 24, 2014

Padre António Vieira e a influência sobre o pensamento de Fernando Pessoa e Agostinho da Silva!...

«Quem despender em banalidades de linguagem a quinta-essência do seu talento, ou ostentar em cambiantes de estilo e formas opalinas de romance os mais rútilos lampejos da sua inteligência, a esse sim, a esse é que no conceito moderno são decretadas as honras e concedidos os foros de verdadeiro orador!»

Padre Gonçalo Alves

Mesmo que nos deixemos levar pela riqueza da oratória sacra e de vernácula, é sempre difícil interpretar qualquer um dos sermões do Padre António Vieira, aquele a quem Fernando Pessoa deu o epíteto de «Imperador da Língua Portuguesa». Tal como escreveria um dia o Padre Gonçalo Alves, em prefácio ao Tomo I das Obras Completas deste insigne pregador, nem antes nem depois do Padre António Vieira, a eloquência sagrada culminou mais triunfantemente nos púlpitos do nosso país. E quando recorremos à “alegoria” do Espírito Santo, lembrar-nos-emos da forma como o Padre António Vieira influenciaria o pensamento de Fernando Pessoa e consequentemente, pela empatia, o de Agostinho da Silva. O Padre António Vieira, ao exortar os futuros missionários a deixarem os «estudos da Europa» pela «escola do Céu», onde só o Espírito Santo é mestre e outorgador das graduações que não se dão «na Baía, nem em Coimbra, nem em Salamanca, senão nas aldeias de palha, nos desertos dos sertões, nos bosques das gentilidades», romperia com as tradições escolásticas tardias onde havia sido educado, sendo que, em face desta “convicção”, a dialéctica abstracta não o seduziria. Consta-se mesmo que ele, aquando estudante, chegou a redigir um compêndio de Filos e outro de Teologia, para uso pessoal.
Há nos sermões do Padre António Vieira – e o Sermão da Sexagésima (VII) não foge à regra – uma evidente multiplicidade de conhecimentos, que facilmente se descobre nos subsídios tanto sagrados como profanos que “adornam” esses mesmos sermões. Tal como um dia escreveria Francisco Freire de Carvalho, nos sermões do Padre António Vieira se deixa ver «uma frase pura, uma imaginação fecunda em pensamentos novos, variados, vigorosos, enérgicos, pinturas vivas, descrições brilhantes, posto que muitas vezes todo este aparato de riqueza oratória seja empregado em subtilizar e provar com pouco acerto, em sustentar e engrandecer uma maneira de pensar que lhe particularíssima e na qual imita o corruptor da eloquência romana, o filósofo Sécena; donde resulta que, devendo o Padre António Vieira ser havido por um dos mais perfeitos mestres da pura e bela locução portuguesa, não assim deve ser acolhido às cegas, e sem grande crítica, para modelo de sã e verdadeira eloquência». Daí, como afirmara Eça de Queirós, os seus sermões ter encantado a gente inculta do Brasil, mas também a casta requintada dos prelados de Roma.


O engenho subtil e penetrante que possuía, fez dele homem singular e extraordinário. Propugnador da liberdade dos índios acentuou nos seus sermões uma espécie de campanha contra os abusos de exploradores, aliás, atitude que, circunstancialmente, originou contra ele caluniosas agressões. A opulência universal da língua pátria, face à alteza do pensamento filosófico, tem nele – por afirmação de alguns outros pensadores –, a par de Luís de Camões, a máxima glória literária de Portugal.
Voltando ao sermão, e tomando como alegoria os Apóstolos pescadores de homens, sentimos na linguagem argumentativa do Padre António Vieira uma demonstração e/ou raciocínio rigoroso, numa ascensão do sensível para o inteligível (Platão). A lógica formal (Escolástica) é ultrapassada pela Dialéctica, aquela que Pedro da Fonseca soube afirmar como émula da Metafísica. A ciência de princípios, como inventário sistemático de todos os conhecimentos provenientes da razão pura ou doutrina da essência das coisas, é ultrapassada pela arte de raciocinar. E isso se constata neste sermão do Padre António Vieira: A pregação tem umas cousas de mais peso e de mais fundo, e tem outras mais superficiais e mais leves, e governar o leve e o pesado, só o sabe fazer quem faz a rede. Na boca de quem não faz a pregação, até o chumbo é cortiça. As razões não hão-de ser enxertadas, hão-de ser nascidas. O pregar não é recitar. As razões próprias nascem do entendimento, as alheias vão pegadas à memória, e os homens não se convencem pela memória, senão pelo entendimento.
Com isto, o Padre António Vieira procura abrir ao entendimento da pessoa em si, enquanto ser individual, construtor das suas próprias redes, e, parafraseando Paulo Borges, no seu grande tema “adunam-se numa muito livre exegese a apocalíptica arcaica e judaico-cristã, a patrística da renovação da criação e do conhecimento temporal do Corpo Místico de Cristo, e as múltiplas formas das escatologias suas contemporâneas, acentuando a dimensão terrena do Reino de Deus, por vezes explicitamente filiadas em Joaquim de Flora e no joaquimismo”. Ainda segundo Paulo Borges, o Padre António Vieira é exemplo vivo de homem total e do universalismo português («Para nascer, Portugal. Para morrer, todo o mundo»), sendo que a sua vida e a sua obra formam uma unidade onde o pensamento não detém a maior parte.
Tal como afirmara Pedro da Fonseca “os universais são por nós conhecidos a partir dos singulares, em que existem, por abstração ou certa separação, não todavia real, mas de razão e de consideração ”, também o Padre António Vieira, ao abraçar as missões excluiria as carreiras académicas, pelo facto dos muitos anos que aí gravitasse, segundo ele, perder-se-iam incontáveis almas. A universalidade a partir do singular manifesta-se na singularidade, ainda que universal, do Espírito Santo: Uma língua só sobre Pedro, porque a língua de Pedro não serve a André; outra língua só sobre André, porque a língua de André não serve a Filipe; outra língua só sobre Filipe, porque a língua de Filipe não serve a Bartolomeu, e assim dos mais.
Conhecer o Padre António Vieira é conhecer os seus sermões. Segundo o Padre Gonçalo Alves, só lendo os seus sermões é que podemos avaliar e compreender “a desmesurada proporção que atingia o vulto sublime da sua imensa glória, quando os auditórios fremiam e palpitavam ansiosos sob a influência magnética do seu verbo, os seus olhos fuzilavam relâmpagos de paixão, no seu gesto passava o raio que fulmina e a majestade que se impõe e a sua fronte rebrilhava circuncingida com essa divina auréola fulgentíssima que depois do ciclo ateniense, cingiu e iluminou a cabeça de Agostinho, a cabeça de Crisóstomo e poucas mais no mundo”.
Através da leitura deste sermão concluímos que o Padre António Vieira rompe assim com as regras predefinidas que “obrigava” à pregação das normas teológicas, para se manifestar pela defesa dos valores e princípios permanentes de uma doutrina social da Igreja. No fundo, o Espírito Santo acaba por funcionar como a forma de iluminar a – ou a iluminura da – realidade com que o Padre António Vieira se expressa, apostando, de uma forma clara, na filosofia das pessoas. Põe de lado a retórica e as ideias desencarnadas, para apostar na filosofia da vida: Veio o Espírito Santo sobre os Apóstolos, e quando as línguas desciam do Céu, cuidava eu que se lhes haviam de pôr na boca; mas elas foram-se pôr na cabeça. Pois porque na cabeça e não boca que é o lugar da língua? Porque o que há-de dizer o pregador, não lhe há-de sair só da boca; há-lhe de sair pela boca, mas da cabeça. O que sai só da boca, pára nos ouvidos; o que nasce do juízo penetra e convence o entendimento.
         Padre António Vieira, Primus inter pares, diremos nós!

Friday, October 17, 2014

Os rituais seculares ou definição de “ritual” revisitada!...

«Meu método é assim necessariamente o inverso daquele de inúmeros estudiosos que começam por extrair a cosmologia que frequentemente se expressa em termos de ciclos mitológicos e, então, passam a explicar rituais específicos como exemplos ou expressões de “modelos estruturais” que encontraram nos mitos»

Victor W. Turner

Na nossa crónica de hoje iremos abordar os rituais seculares como uma emanação do colectivo. De facto, quando no tempo presente se questiona a secularização das chamadas festas tradicionais, temos que ter em linha de conta que as mesmas, apesar de eventualmente terem perdido a sua essência – no que diz respeito à ritualização e/ou ao sagrado – face à sua inevitável inovação, assumem um forte pendor profano e passam da sua essência ritual e sagrada para o “estádio” de lazer. Contudo, há festas tradicionais que conservam o seu pendor ritual, de que são exemplo as festas por altura do Natal e da Páscoa, sendo que esta última se sobrepõe ao melancólico e triste dia dos Fiéis Defuntos. O antagonismo reside, precisamente, na ancestral manifestação “espiritual/religiosa” da morte e ressurreição. Outro facto a reter são as festas tradicionais, muitas vezes carregadas de um forte simbolismo, revelado por práticas ancestrais de culto e de fé, e de que são exemplo, principalmente, aquelas em que se comemoram santos padroeiros.    
Um “ritual secular”, que encerra uma sacralidade intensa, fortemente inspirada na fé, é o culto da água, revisitado no baptismo e no “banho santo”, de que tomaremos como exemplo a festa anual de S. Bartolomeu, padroeiro da freguesia de Mar, concelho de Esposende, distrito de Braga. Aqui, expressamo-nos no permanente conflito com aquilo que nos é menos agradável reiterando esse sentimento na visualização e personificação do “demo”. S. Bartolomeu, apóstolo que foi de Cristo, aparece ligado à evangelização na Licaónia, na Índia e, de uma forma particular, na Arménia, onde viria a ser martirizado, esfolado vivo. Embora não haja muitas certezas quanto ao martírio e às suas deambulações geográficas, iconograficamente é representado com uma faca (ou tridente, porque retirado ao “diabo”) numa das mãos, com a sua pele noutra e o “diabo” acorrentado aos pés. Geralmente o “demo” é representado com cabeça de cão, corpo de homem e rabo de peixe. Esta forma singela de o representar é que levou à tradição de se afirmar que no dia de S. Bartolomeu o “diabo anda à solta”.


S. Miguel e S. Bartolomeu, por exemplo, desempenham um papel importante em termos de “rituais seculares”. Ambos lutaram contra o lado oculto e tenebroso da guerra, da tortura e da perseguição, plasmado na denominada figura do “diabo”. S. Miguel, por exemplo, anda associado às colheitas dos frutos e sementeiras e S. Bartolomeu marca o início das colheitas. Na capela de S. João d’Arga, esse pequeno e deslumbrante santuário implantado no sopé do cabeço da Arga de S. João, Caminha, e onde proliferam lendas maravilhosas – das quais destacamos a do Santo Aginha –, existe uma imagem de S. Miguel Arcanjo com o demónio a seus pés, apontando-lhe uma lança serrilhada. Este demónio tem cabeça de cão e corpo de homem, mas dos seus dedos saem afiadas garras.
Como nos foi dado constatar, no dia das festividades em honra de S. Bartolomeu (Mar), a nostalgia festiva, ainda que passiva de algum cunho manifestamente cultural, impulsionador à participação e exaltação colectivas, leva a que milhares de pessoas comecem a afluir à Igreja do apóstolo mártir e por três vezes passem por baixo do seu andor, como que simulando um regresso ao ventre materno. Por três vezes dão também voltas à Igreja, no sentido contrário ao do movimento dos ponteiros do relógio. Crianças e adultos de mãos dadas transportam frangos (sobretudo negros ou pedreses – mas também os haviam de outra cor) envoltos em saca, de plástico, com apenas a cabeça de fora, que alugam numa pequena e improvisada “capoeira” instalada ao lado esquerdo do templo. Outros trazem-nos de casa, engalanados numa cestinha de vime. A secularização da festa de S. Bartolomeu reside, precisamente, no “Banho Santo”.
Dos seis “banhos santos” que existiram em Portugal, apenas este é que subsiste. Ordinariamente, a festa de S. Bartolomeu está sempre ligada à água. Por isso aparece sempre junto aos rios, a nascentes ou ao mar. Tudo resulta de factores naturais. Isto era uma romaria antiga e todos os dias os romeiros iam ao mar. Como, normalmente, a romaria tem a duração de nove dias (novena), daí resulta o número ímpar. Depois, quem não podia vir à romaria vinha num fim-de-semana.
Segundo Jean Maisonneuve, ao referir-se a um inquérito europeu consagrado aos “valores do tempo presente”, elaborado e sintetizado sob a orientação de J. Stoetzel, alerta-nos para o facto de que o mesmo estudo introduz diversos elementos globais e específicos respeitantes às atitudes religiosas – mais do que se refere às crenças do que às práticas. Verifica-se em primeiro lugar que mais de 60% das pessoas inquiridas (numa amostra que incide em nove países) afirmam possuir uma “certa religião” e mantêm – digam-se elas crestes ou descrentes – valores judeu-cristãos sem disso terem sempre uma nítida consciência. Daí, ser compreensível toda essa apreensão, dado que muitas são as interpretações e as conveniências emocionais. O frango, por exemplo, e segundo a opinião do antigo pároco da freguesia de Mar, nosso particular amigo Carlindo Martins Vieira, funcionava como um corolário de oferta ao santo. A não ser que, à razão da prática de o povo oferecer aquilo que tinha em casa, se sobreponha a extra-sensorial simbologia da decapitação e do esfolamento como renovação, pelo sangue derramado. Mas, não é previsível ir-se por aí. Infelizmente, nos últimos tempos, isto tem sido indecentemente explorado, principalmente por pessoas que não estudam este fenómeno convenientemente e de uma forma séria, a ponto de classificarem isto como uma frustração e um desmoralizante paganismo.
Convém salientar, e para terminar, que o culto a S. Bartolomeu perde-se no tempo, encontrando-se vários elementos nesta festividade que nos reportam ao pré-cristianismo, através da água como símbolo da purificação, e ao cristianismo, através do baptismo, em muito associado à purificação. E como é inevitável, aparece sempre um pouco de superstição. Mais que não seja, o culto a S. Bartolomeu teima em continuar a existir até para conservar o culto da água, um dos elementos essenciais à própria vida.
 Circunstancialmente, Claude Rivière alerta-nos para esta natural apetência do sobrenatural e misterioso, quando afirma que esta sagração, ambientalmente pura ou impura, não será por aí que a hipóstase da força colectiva do corpus social e o rito, constituirão pois uma expressão simbólica dos valores fundamentais que unificam os membros de uma sociedade. Segundo ele, tal comportamento se manifesta pela acção de fazer transbordar o religioso para uma noção mais vasta do sagrado, indicando a sociedade como fonte dessa mesma sacralidade. Ainda a propósito do culto a S. Bartolomeu, Franquelim Neiva Soares, professor jubilado da Universidade do Minho, quando, em resposta aos detractores e vilipendiadores do sentimento e devoção populares, alertara para a remota possibilidade da morte desta romaria tendo como causa-efeito o materialismo crescente, o sensualismo desavergonhado e a perda paulatina do sentimento religioso. E, para que isso não venha a acontecer, sugerira um melhor esclarecimento e mais positiva orientação; o que urge mais, e quanto antes, é a catequização positiva e persistente do nosso povo, ainda crente e bom, mas com uma ignorância que brada aos céus.
      Ignorância ou não, acabamos por constatar, in loco, que algo extraordinariamente emocional levava a que aquela gente se revisse no ancestral culto da água.

Saturday, October 11, 2014

A expiação da injustiça em Anaximandro!...

«1. Tudo se dissipa nisso de onde provém, e todas as coisas se dissipam em virtude do grau de culpabilidade, porque retribuem umas às outras o castigo e a expiação pelas injustiças, consoante o tempo determina. / 2. O ilimitado (apeiron) é eterno. / 3. O ilimitado é imortal e indissolúvel.»

Fragmentos de Anaximandro
In GOMES, Pinharanda – Filosofia Pré-Socrática. p. 126.

Anaximandro [N. Mileto, c. 610 – m. 546 a.C.], filósofo grego, sucessor de Tales na direcção da Escola de Mileto, criador do conceito de apeiron (άπειρου), cujo significado, levado à letra, nos aponta para o infinito, “não no sentido matemático, mas no de ilimitação ou indeterminação”, insere-se na conexão do nascimento da filosofia naturalista e que, sendo tomado como exemplo, é apontado por Werner Jaeger como a figura mais imponente dos físicos milesianos. José Nunes Carreira vai mais longe, ao vincular Anaximandro à criação da noção do cosmos, quando afirma uma ordem das coisas correspondente à que existe entre os homens: «donde advém a origem ao ser, no mesmo sentido vai o acaso, segundo as determinações do destino; pois um ao outro deve pagar castigo e pena, de acordo com a sentença do tempo».
A tradição atribui a Anaximandro a autoria de um livro com o título padrão Sobre a Natureza (c. 547 a.C.), a construção de um mapa-mundo, de uma carta celeste, de um modelo esférico para representar os corpos celestes, o primeiro a descobrir o equinócio e os solstícios e a introduzir o gnómon – já conhecido na Babilónia – na Grécia, mas o que chegou até nós é indirecto e fragmentário. Referimo-nos ao fragmento – no fundo, uma reconstrução de um texto tardio – que se revelou no que há de mais enigmático na filosofia grega. G. S. Kirk dá-nos conta que parte da informação fornecida por Teofrasto sobre a matéria originadora de Anaximandro encontra-se em Simplício. No entanto, ainda hoje se discute se o mesmo recebeu estes e outros extractos doxográficos semelhantes directamente de uma versão de Teofrasto, ou por intermédio do comentário de Alexandre, hoje perdido sobre a Física.
Luciano Crescenzo define Anaximandro através dos seus fragmentos, cuja interpretação “deve ter colocado em apuros mais que um historiador de filosofia”, como aquele que concebeu os elementos como deuses sempre prontos a atacar os seus opostos: o Calor gostaria de dominar o Frio, o Seco gostaria de dominar o Húmido e vice-versa, mas a necessidade domina-os a todos e impõe-lhes que certas proporções permaneçam inalteráveis. E aqui, se nos referimos ou aludimos à justiça, teremos que entender apenas o respeito pelos limites estabelecidos, o ver mais longe do que um simples equilíbrio entre elementos diferentes, como a «necessidade» e a «expiação», revelando no seu pensamento o desejo místico de uma ordem suprema. Disso nos dá testemunho Plutarco, quando descreve a visão do filósofo da escola Mileto, acerca do nascimento do Universo: «Ele afirma que do Eterno se separaram o calor e o frio e que uma esfera de fogo se espalhou em torno do ar que envolvia a Terra como a cortiça envolve a árvore; depois, a esfera partiu-se e separou-se em círculos e assim se formaram o Sol, a Lua e os astros».


Não é por acaso que para Werner Jaeger, a concepção da Terra e do mundo em Anaximandro é uma vitória do espírito geométrico. Segundo o mesmo autor, o mundo de Anaximandro é construído segundo rigorosas proporções matemáticas. Num dos relatos de Teofrasto, atribuído a Hipólito, afirma-se que o filósofo de Mileto dizia que o princípio material das coisas que existem era uma natureza do apeiron, de que provêm os céus e o mundo neles contidos e, esta natureza, para além de envolver todos os mundos, é eterna e não envelhece. Daí, concluirmos que há uma pluralidade de inúmeros mundos coexistentes, e a fonte da geração das coisas – citando Simplício – que existem é aquela em que se verifica também a destruição «segundo a necessidade; pois pagam o castigo e retribuição umas às outras, pela sua injustiça, de acordo com o decreto do Tempo».
Um facto curioso é que José Trindade dos Santos ao referir-se aos filósofos Milénios, dá-os como os iniciadores da reflexão filosófica na Grécia, mas, sempre vai dizendo que de Tales, de Anaximandro, ou de Anaxímenes não nos chegou qualquer texto, com a possível excepção de um fragmento atribuído a Anaximandro. No entanto, a importância destes pensadores é inegável e universalmente reconhecida por todos os estudiosos da tradição reflexiva grega, nomeadamente por Aristóteles, quando a eles se refere, englobando-os no grupo dos «primeiros filósofos», com a denominação de «físicos» ou «fisiólogos».
  Embora muitos autores afirmem que do pouco que resta do pensamento de Anaximandro nos impede de saber, de um modo certo e objectivo, o que realmente pretendeu teorizar – ou dizer –, fica-nos a sensação de uma concepção pré-científica do mundo. Para Copleston, a doutrina de Anaximandro supõe um avanço em relação à doutrina do seu antecessor, Tales, que ao superar a designação de um elemento determinado como primordial, chega a conceber um infinito indeterminado, de que provêm todas as coisas, permitindo, ainda, pelo menos responder de algum modo à velha questão de como o mundo evolui a partir daquele «elemento primeiro».
Uma sugestão para os pseudo-divinizados (quiçá, até na política) deste jardim à beira-mar plantado: Leiam um pouco dos fragmentos de Anaximandro e talvez cheguem à conclusão que ele não confere qualquer lugar às divindades dos mitos, dado que tende apenas a humanizar o seu apeiron, a fim de explicar a ordem do mundo. Daí, o princípio devia estar para lá de toda a realidade observável e limitada, pois o apeiron sendo indeterminado é infinito na duração, imortal e indestrutível, em movimento perpétuo, sem ser infinitamente criador, nem infinito no espaço, revelando-se numa espécie de enorme massa matricial que nela engendra o mundo (cosmos) e o «orienta», o governa divinamente.

Não devemos ficar só pelo De audito!   

Friday, October 03, 2014

Zoroastro: entre o ocidente e o oriente!...

“Os crentes de todas as religiões, junto com os homens de boa vontade, abandonando qualquer forma de intolerância e discriminação, estão convocados a construir a paz”.

João Paulo II

O título desta nossa crónica remete-nos para um desafio lançado, aquando das nossas vivências académicas, a propósito de um Simpósio sobre Filosofias Orientais, condimentado com o contraditório de alguns participantes que colocavam a inexistência do conceito filosófico em Zoroastro ou mesmo em Santo Agostinho, sendo que deste último, alguns teimam em o acantonar, nomeadamente nas prateleiras das bibliotecas, na área da religião, quando «A Cidade de Deus» é um verdadeiro tratado filosófico: A respeito dos deuses, há quem julgue que uns são bons e outros maus. Mas há quem, fazendo deles o melhor conceito, lhes atribua honra e glória tais que não se atreve a pensar que haja algum deus mau. Mas os que afirmaram que havia deuses bons e deuses maus, também aos demónios deram nome de deuses; e às vezes, embora raramente, também deram o nome de demónios aos deuses – reconhecendo que o próprio Júpiter, de quem eles fazem o rei e chefe dos outros deuses, foi alcunhado de demónio por Homero. – citamos do filósofo santo. E questiona-se Santo Agostinho se entre os demónios, que são inferiores aos deuses, haverá alguns bons sob cuja protecção possa a alma humana alcançar a verdadeira felicidade?  
Mas, voltando ao nosso raciocínio “percurso-titular”, teremos em dizer que Zoroastro (ou Zaratustra), reformador do masdeísmo – terá sido a religião dos Persas a partir da época dos Arqueménidas até à queda dos Sassânidas (651 a.C.), que recebe também o nome de Zoroastrismo –, foi considerado um profeta misterioso ou mago, segundo a acepção oriental, tendo apregoado o dualismo dos princípios do bem e do mal compreendidos num Deus único.


Ao contrário do bramanismo, as comunidades de Jina (Jainismo) e do Buda (Budismo), por exemplo, sendo irmãs na sua concepção, dado terem nascido no mesmo meio geográfico e social – daí, o paralelismo vivencial – parece terem sido constituídas sobre uma certa influência da reforma iraniana, instaurada por Zoroastro, idênticas no repúdio dos cultos rituais, manifestando-se apenas a preocupação de luz e de pureza. Numa delas, existe mesmo uma liberdade quase total em relação à tradição védica.
O paralelismo com a comunidade – sendo que alguém a denomina de seita – de Zoroastro, espelha-se na iniciativa inteiramente humana. A única diferença é que, enquanto Zoroastro se apresenta como porta-voz de um deus, Jina e Buda se apresentam como guias, e não deuses, semi-deuses ou mesmo profetas, quando nos é dado saber que a função de Zoroastro era claramente definida: é aquele que vem anunciar o super-homem e o eterno retorno – «O homem foi feito para ser ultrapassado» e «o curso do mundo não se dirige para nenhum fim: retorna incessantemente para si próprio como se fosse um jogo gratuito».
Outro facto relevante da influência de ideias zoroastrianas, reporta-nos a três anos após a sua morte (541 a.C.), quando o Rei Persa Ciro capturou a Babilónia, incorporando-a no Império Persa. Foi nessa altura que se tornou possível aos exilados judeus o seu regresso, espaço de tempo em que, circunstancialmente, o ensinamento religioso e filosófico de Zaratustra exercera uma ampla influência na Pérsia, a ponto dos exilados judeus terem ficado profundamente impregnados pelas suas ideias. E aqui, teremos que ter em conta que a Pérsia era o verdadeiro Médio Oriente, o ponto de encontro entre o oriente e o ocidente. Não é por acaso que foi precisamente no Médio Oriente que três grandes religiões monoteístas mundiais tiveram início: o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo.
Nietzsche, numa das suas obras mais famosas, «Assim falava Zaratustra» – …Ele desceu da montanha e, falando ao povo, disse – Anuncio-vos o Super-Homem, Aquele que há-de dominar a Terra –, tenta retomar o conceito zoroastriano do dualismo dos princípios do bem e do mal compreendidos num Deus único, situando-o, no entanto «para além do bem e do mal». De facto, na vasta produção literária de Nietzsche, este poema filosófico, na figura de Zaratustra, é geralmente considerado como obra fundamental para qualificar a complexa personalidade do apaixonado filósofo. Os princípios de um nietzschiano, como alguém aventaria, "encontram aqui, mais do que em qualquer outra obra, a sua expressão num estilo vigoroso que ora lembra a solenidade dos profetas bíblicos, ora recorda a contundência cáustica e a mordacidade dos enciclopedistas". Nietzsche pensava que este livro seria eminentemente importante para a humanidade.
Nestes tempos conturbados em que vivemos, onde deuses feitos demónios e demónios feitos deuses partilham do mesmo espaço, e são tronco do mesmo tronco, a luta pelos estados, na figura do monoteísmo tripartido (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo), através da violência e da morte em muito vem contrair o pensamento de Zaratustra: Mas como poderá morrer a tempo aquele que nunca viveu a tempo? Mais valera que nunca tivesse nascido! É o conselho que dou aos que estão a mais – reflexão necessária quando alguém reclama por um Estado religioso-monoteísta, degolando inocentes e ameaçando pacifistas.
       E, tal como Zaratustra, também nós entramos em nós próprios e tornamo-nos a sentar na enorme pedra, reflectindo e questionando: Estado de quê? Guerra Santa de demónios ou de deuses? Homens superiores em quê? – E acredita-me, caro tumulto infernal! Os maiores acontecimentos não são as nossas horas mais barulhentas, mas os nossos instantes mais silenciosos (…) E acrescento ainda para os destruidores de colunas: não há maior loucura que deitar sal no mar e colunas no lodo… – assim falou Zaratustra!