Friday, August 31, 2012

Depois da «Tourada» em Viana do Castelo: uma reflexão sobre a «Ética Animal» em Peter Singer e Tom Regan!


“Quase todos os sinais exteriores que nos levam a fazer inferências acerca da dor sentida por outros seres humanos podem ser observados noutras espécies, especialmente naquelas que se encontram mais próximas de nós, como é o caso dos mamíferos ou das aves”.

Peter Singer

Pelo facto de se ter realizado em Viana do Castelo (19 de Agosto, último) a tão propalada tourada, para alguns a reposição da legalidade ou de uma “verdade cultural”, para outros uma “provocação” que se pensaria arredada do vocabulário vianense, muitos foram os amigos a sugerir-nos um pequeno apontamento acerca da problemática da «Ética Animal», tendo em conta a nossa formação académica e alguma especialização em bioética, cujo objectivo foi – e continua a ser – o de reflectir, questionar e desenvolver a sensibilidade humana para a saúde, realidade particularmente fértil em conflitos, dúvidas e manipulações. Aceitando com uma certa cautela esse “desafio”, resolvemos gravitar à volta de duas correntes – Peter Singer, com a libertação animal e Tom Regan, com a argumentação em defesa dos direitos dos animais –, reiteradas pelo bem-estar (utilitarista) ou pelo direito dos animais (kantiana), propomo-nos assim para uma reflexão moral, onde não há razão teórica para excluir os animais do círculo (ou comunidade) moral. Se, por um lado, a família utilitarista pretende alargar o ciclo moral aos animais, onde o maior bem ao maior número supõe o aumento de prazer e a ausência de dor, não se devendo, por isso, excluir os animais, dado que os mesmos também possuem prazer e dor; por outro, aparece-nos aqueles que à defesa dos interesses contrapõem com os direitos – uma perspectiva que seja uma alternativa sistemática do utilitarismo, nele encontrando algumas contradições inerentes ao princípio de utilidade, legitimado pela excepção de sacrificar o menor número de animais, para salvar milhares de pessoas.  
Tendo em conta que a igualdade é sempre um ideal ético, é sempre uma prescrição e não uma descrição, ou seja, por outras palavras, a igualdade é sempre uma característica moral, os primeiros críticos aparecem-nos a lutar contra a discriminação dos animais, dado que os preconceitos que discriminam moralmente a partir de características irrelevantes, acabam por subverter aquilo que Peter Singer defende – a elevação do estatuto dos animais ao estatuto moral dos animais. Segundo Cristina Becker “a noção de bem-estar (welfare), quando aplicada aos animais, adquire contornos e amplitude diversa, podendo ser utilizada em sentido comum ou técnico. Assim, há que distinguir, pelo menos, três acepções do termo: aquele que os próprios exploradores dos animais reclamam, o do senso comum e o do movimento de libertação dos animais”. Para Peter Singer, por exemplo, um interesse é sempre um interesse, independentemente do interesse, e quando argumenta em defesa dos animais não o faz por amor aos mesmos animais, mas por uma razão moral. O seu argumento principal vai no sentido de que, apesar de os humanos terem uma longa história de maltratar animais, não existe justificação moral para esse comportamento. Tal como escreveu Peter King, a propósito da teorização de Peter Singer, “no centro da sua moralidade está o facto de ser errado causar sofrimento desnecessário, mas o sofrimento não vem em qualidades diferentes, das quais apenas algumas são, moralmente, relevantes – não podemos condenar a dor causada a membros de uma espécie e ser indulgentes em relação à dor causada aos membros de outra, do mesmo modo que não o podemos fazer relativamente a diferentes raças ou sexos”. Em suma, Peter Singer defende um princípio da igualdade na consideração de interesses, forma emancipadora para os homens e também para os animais. A dieta vegetariana é, por assim dizer, uma dieta moral. Para o mesmo filósofo, a mesma dieta produz menos sofrimento e mais alimento a um custo ambiental mais reduzido.
 Por outro lado, Tom Regan, apesar de ter andado muito próximo de Peter Singer – assume que nem sempre foi um defensor dos animais –, viria a demarcar-se gradualmente das teorias libertadoras quando se apercebeu das consequências nefastas da perspectiva «consequencialista» do utilitarismo. A principal crítica ao utilitarismo é a possibilidade de abrir excepções; de violar os direitos dos animais em nome do benefício comum, em nome do maior número. Pelo facto de Peter Singer caracterizar os seres como receptáculos, abrindo, assim flancos ao “especismo” (não o combatendo eficazmente), estas excepções acabam por se tornar intoleráveis. Por isso, Tom Regan propõe uma perspectiva abolicionista. Se ele não defende a teoria libertadora de Peter Singer, tende a procurar outra argumentação – recupera Kant (defende o “valor inerente”) – não pensando à letra kantiana, mas a postular o “valor kantiano”: “Por exemplo, estes animais apreciam determinadas coisas e sentem outras como dolorosas. E, o que não constitui surpresa para ninguém, agem em conformidade, procurando encontrar as primeiras e evitar as segundas. Além disso, tanto os seres humanos como os outros mamíferos partilham uma família de capacidades cognitivas (uns e outros são capazes de aprender com a experiência, de recordar o passado, de antecipar o futuro), bem como a grande variedade de emoções”. Parafraseando Paul W. Taylor, considerado filósofo individualista da “Ética Ambiental Biocêntrica”, ao partirmos da perspectiva centrada na vida, temos obrigações enquanto membros da comunidade biótica terrestre: “Somos moralmente obrigados a proteger ou a promover o seu bem por si próprios […]. Assumir uma atitude de respeito para com a Natureza consiste em encarar as plantas selvagens e os animais dos ecossistemas naturais terrestres como portadores de dignidade inerente, o que os tornas sujeitos morais”. Segundo apreendemos das suas palavras, isso significa que a assunção da dignidade inerente de animais e plantas, deverá implicar que estes não possam ser tratados apenas como meios para os fins de alguém. Os seres humanos, têm, assim, obrigação e dever de promover, ou beneficiar, “o bem próprio das entidades possuidoras de dignidade inerente enquanto «fins-em-si» mesmas”. Estamos perante um imperativo ético que se nos apresenta o respeito pela Natureza, numa argumentação em que adquirem plena presença os conceitos da ética kantiana: “fim-em-si”, “dignidade inerente”, “dever”, “respeito”. Tal como um dia afirmaria uma professora da Universidade do Minho, de grata memória para nós, Ana Lúcia Cruz, acérrima defensora dos direitos dos animais, “os seres vivos não podem ser vistos como chávenas, mas como valor moral inerente”.
Depois disto, perguntar-se-á: Será que o homem não deve comer carne dos animais? Por certo que esta pergunta permanecerá no subconsciente de cada um de nós, nomeadamente pelo facto de, circunstancialmente, se estabelecer critérios da senciência como limite para definir quem é ou não digno de ser considerado membro da comunidade moral. Enquanto para Peter Singer “a aplicação do princípio de igualdade à inflicção de sofrimento é, pelo menos em teoria, bastante fácil de entender. A dor e o sofrimento são maus e devem ser evitados ou minimizados, independente da raça, sexo ou espécie do ser que os sofrem”, para Tom Regan, por exemplo, as consequências práticas da defesa dos direitos dos animais, passam pela dissolução da pecuária e do uso nocivo dos animais na ciência, porque eles não são coisas e, tendo em conta que, qualquer argumento baseado na comparação entre benefícios e danos, não se deve remeter apenas para a propositada enumeração dos benefícios, descorando ou procurando ignorar os danos relevantes: “Independentemente da sua lamentável tendência para minimizar os dados infligidos aos animais e da sua determinação inamovível em marginalizar alternativas não animais, os defensores deste argumento sobrestimam os benefícios em termos dos seres humanos atribuíveis à vivissecção, além de ignorarem redondamente os inúmeros danos infligidos aos seres humanos que constituem uma parte essencial da vivissecção”. Ainda para Tom Regan, a prática da vivissecção é errada do ponto de vista moral. Segundo I. Anna S. Olsson, autora do livro «Ética e Bem-Estar Animal», a teoria de Regan sobre os direitos dos animais pode não ser a única defesa possível contra a falta de respeito pelo homem, patente no utilitarismo – aceitar que se criem e matem certos animais para produção alimentar, desde que não haja dor ou angústia –, mas através de uma combinação “de utilitarismo e direitos moderados, a experimentação animal que seja promissora em termos de resultados para benefício humano é permitida, desde que se garanta aos animais a protecção contra dor, angústia e desconforto sérios”.
Terminaremos dizendo que, apesar de reconhecermos a “mea culpa” de sermos consumidores de carne – quiçá, um dia, revoguemos esta nossa cadeia alimentar –, somos pela “ética animal” e, por certo, não aceitaremos qualquer tipo de intolerância insultuosa por parte dos “gladiadores” ou aficionados das touradas. E sem nos pretendermos alvorar em moralistas ou objectores de consciências – porque sempre nos pautamos pelo princípio da tolerância e nada nos move contra os aficionados das touradas –, aconselhávamos, contudo, a leitura de Peter Singer «Escritos sobre uma vida ética», nomeadamente no capítulo de “Notas autobiográficas” – «Libertação Animal: Uma Perspectiva Pessoal», onde a dado momento o mesmo diz que “é vital que o movimento da libertação animal evite a espiral viciosa da violência. Os activistas da libertação animal têm de se posicionar irrevogavelmente contra o uso da violência, mesmo quando os seus adversários usam violência contra si”. De facto, essa será sempre – ou deveria ser – a postura dos defensores dos animais, dado que a luta para alargar a esfera da preocupação moral aos animais não humanos pode mesmo ser mais difícil e longa, mas, se for conduzida com a mesma determinação e o mesmo empenho moral, de certeza que também será ganha. E os defensores das touradas talvez, um dia, poderão vir a entender a imoralidade de tão repugnante espectáculo. O gosto embora possa ser estético (se nos referirmos ao que denominam de “arte tauromáquica”), nunca será ético, porque as críticas aos maus-tratos dos animais e à subsequente crueldade que se faz aos mesmos, sendo que as nossas tradições culturais não podem legitimar as nossas acções, leva a que Peter Singer venha a afirmar que “quase todos os sinais exteriores que nos levam a fazer inferências acerca da dor sentida por outros seres humanos podem ser observados noutras espécies, especialmente naquelas que se encontram mais próximas de nós, como é o caso dos mamíferos e das aves”. Pensem nisso!

N. A. – A imagem que ilustra este nosso desabafo (e não provocação), serviu de logótipo aos nossos artigos «Ponto Crítico», publicados no jornal dos trabalhadores dos ENVC “Roda do Leme”, pelos anos oitenta, do século passado.

Friday, August 24, 2012

Recordando Jean-Jacques Rousseau e o seu pensamento, no tricentenário do seu nascimento!


“Considero que os homens atingiram aquele ponto em que os obstáculos que prejudicam a sua conservação no estado de natureza levam a melhor, pela resistência, sobre as forças que cada indivíduo pode empregar para se manter neste estado”.

Jean-Jacques Rousseau

Pelo simples razão de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) ter participado activamente no século que mudou o rumo da cultura ocidental, nomeadamente entre o iluminismo e o romantismo, e se comemorar no presente ano o tricentenário do seu nascimento (1712-2012), é que resolvemos trazer à memória esta figura ímpar do pensamento universal. Nascido em Genebra, em 28 de Junho de 1872, no seio de uma família protestante de cidadãos burgueses, a sua vida e a sua personalidade estiveram sempre intimamente ligadas à sua obra. Tal como afirmam muitos dos analistas da sua obra e do seu pensamento – sem nos alvorarmos em tal pretensão de analista, ficamo-nos pela constatação filosófica –, a música, o indivíduo, a tolerância, a oposição entre a ciência e religião ou entre sentimento e razão, os direitos naturais, em suma, todos os grandes temas e conflitos do «Século das Luzes», que resultaram na Revolução Francesa, em 1789, fizeram parte das inquietações vitais e intelectuais deste pensador.
   Outro aspecto a salientar no seu pensamento filosófico, e que nos cativa profundamente, reside no facto de o mesmo exprimir através da sua filosofia as tensões entre a razão e os sentimentos que constituíam as linhas fundamentais sobre as quais discorriam as reflexões dos seus contemporâneos. Pela “leitura” que fazemos – como empirista que somos – “o pensamento rousseauniano não é produto de um processo racional, mas sim o fruto da sua experiência vital perante o acontecer do mundo”. Daí que alguns vejam nele um pensador proto-existencialista. Não vamos aqui falar, a fim de não ferirmos susceptibilidades, do facto dos iluministas se terem oposto à Igreja, por se oporem aos mitos e às superstições porque tinham observado o atraso que estes representavam para o progresso intelectual das sociedades, mas lembrar que a crítica e a razão dominaram o pensamento do século, não se podendo separar desse contexto a inteligência e a paixão. Na altura, muitos dos filósofos consideravam que o motor do homem tinha os seus princípios nas paixões e que a sua natureza principal se encontrava nelas e não na razão, contrariando assim o princípio do iluminismo, cujas razões eram empíricas e provinham da ciência. Por isso, Rousseau ao ver a metafísica demasiado afastada dos princípios de uma filosofia cuja função deveria ser a de conhecer o homem, associou a sinceridade pessoal à verdade filosófica, cujo fim é chegar à compreensão racional do ser humano. E, para este mesmo filósofo – gravitando através da compreensão racional do ser humano como objectivo –, tal compreensão só se pode alcançar partindo do próprio indivíduo e dos seus sentimentos.
Contrariando as práticas do “imperialismo financeiro” (o termo é nosso) – egoisticamente pessoal e/ou de interesse particular –, actualmente instalado no mundo, e que nos envergonha profundamente, Jean-Jacques Rousseau, ao seu tempo, era apologista de um modelo social baseado no pacto social. O mesmo filósofo acreditava, face à inclinação egoísta dos interesses particulares, ser possível no cidadão a sua tendência para o colectivo: «o homem nasceu livre e está acorrentado por todos os lados» – citamos d’ “O Contrato Social”, uma das suas mais emblemáticas obras. De facto, Rousseau questionava-se sobre essa escravidão (nascer livre e estar acorrentado) e como legitimar o regresso à liberdade. A ordem social era para ele um direito não baseado na natureza, mas sim nas convenções, que se deveriam conhecer. Assim, neste ponto, Rousseau separava-se da opinião de John Locke (1632-1704), no que se refere ao carácter natural da lei da maioria para adoptar uma lei baseada no acto de convenção. Rousseau estudou as sociedades primitivas e a sua revolução até chegar ao pacto social: «Pelo pacto social demos existência e vida ao corpo político. Trata-se agora de lhe dar movimento e vontade através da legislação, porque o acto primordial pelo qual este corpo se forma e se une não determina ainda nada a respeito do que ele deve fazer para se conservar. É este o objectivo para o qual tende a ciência da legislação» – citamos “O Contrato Social”, Livro II, Capítulo I, “Objectivo da Legislação”. Para o mesmo filósofo, o modelo social político mais antigo era a família, que se mantinha até os filhos terem capacidade para substituir, libertando-se da obediência paterna. Após esta etapa só a convenção e não a necessidade os poderia fazer permanecer unidos. Apesar de negar qualquer paralelismo entre família e sociedade, achava que as liberdades particulares eram alienadas unicamente pela utilidade que responde ao princípio fundamental de conservação.
A rejeição de qualquer tese tradicional sobre a origem da sociedade política está muito enraizada no pensamento de Jean-Jacques Rousseau, ao ponto de não aceitar a autoridade política baseada na força: poder físico e moral eram – e continuam a ser – conceitos opostos. Esta figura ímpar do pensamento universal chegou a investigar o direito de matar os vencidos nas guerras e o direito de conquista para concluir que não existe esse direito de escravatura antagónico e irreconciliável nos seus próprios termos: «O Estado ou a cidade constituem uma pessoa moral cuja vida consiste na ajuda e na união dos seus membros; a primeira e mais importante das suas preocupações é a da sua própria conservação, tarefa que necessita de uma força universal e compulsiva para mover e dispor cada parte da maneira mais conveniente para o todo. Assim, da mesma forma que a natureza dá a cada homem um poder absoluto sobre os seus membros, o pacto social dá ao corpo político um poder absoluto sobre os seus, e é esse mesmo poder, cujo exercício é dirigido pela vontade geral, que tem, como já havia dito, o nome de soberania» (“O Contrato Social”, Livro I, Capítulo VI, “Dos respectivos direitos do soberano e do cidadão”). Para além disso, para ele, os homens dispunham de dois instrumentos de conservação, a força e a liberdade, e esta última só se adquiria com o desenvolvimento das capacidades humanas, inseparáveis da sua relação com os seus congéneres, pressupondo que “já não é só o homem que actua instintiva e cegamente, mas sim um ser capaz de reflectir e que observa o alheio para além do amour de soi. Vontade e razão dirigem a sua actuação para uma forma de liberdade mais completa que concilia o individual com o colectivo”.
Reflectindo sobre os tempos que correm – nomeadamente no que concerne à prática política em Portugal – que dizer do pensamento de Jean-Jacques Rousseau, que ao tempo soube analisar a soberania derivada da vontade geral e o exercício do seu governo a partir do interesse comum? Reforçaríamos a sua convicção de que o princípio de soberania era absoluto e indivisível, mas os políticos – tal como agora – dividiam o seu objecto em força e vontade, que correspondem aos poderes legislativo e executivo, respectivamente. Rousseau considerava que a soberania residia no povo – sendo que o poder era legitimado pela vontade geral –, o que queria dizer que também era inalienável, não se podendo renunciar a ela. E poderíamos discorrer aqui sobre a “vontade geral e vontade de todos”; “o pacto social e as leis”; “a função do legislador”; “vontade geral e soberania política”; “formas de governo”; “o objectivo do bom governo”, comutando-o com a conservação e a prosperidades dos seus membros; “a eficácia da vontade geral”, onde afirma que no estado de perfeição é impossível enganar as pessoas simples com subtilezas políticas; “a vontade geral e o sufrágio”, de modos a que enquanto prevalece a unanimidade e não se abre a brecha dos interesses particulares no Estado – tão irreal nos tempos que correm –; e, porque não, “a religião como meio de sociabilidade”, sendo que Rousseau juntou intolerância civil e religiosa, devendo tolerar-se todas as religiões enquanto os seus dogmas não se opuserem aos deveres civis; mas quedamo-nos pela noção de espaço e complacência de quem nos lê.
Terminaremos parafraseando João Lopes Alves, responsável pela introdução e notas à mais recente reedição d’ “O Contrato Social” (2008), que há leituras do pensamento de Rousseau ora como manifesto de libertarianismo radical, se não mesmo de anarquismo, ora como expoente por excelência do império da lei; havendo, também, os que o acusam de propor uma geometria do político com traços de paleototalitarismo e os que lhe reconhecem o papel de teórico fundamental da democracia. Pena é que os “democratas/políticos” de hoje não o lêem. Talvez se revissem na falta do “bom senso” – e até propositado alheamento – no exercício dos seus governos a partir do interesse comum!

Wednesday, August 22, 2012

MULHER DE ANGOLA: SABOR A FRUTA

Em homenagem a todas as mulheres de Angola, e de uma forma especial à nossa tia Rosa Pambahamgumbo Afonso, angolana de Sá da Bandeira, com raízes no Cunene.

Friday, August 10, 2012

A linha do horizonte na última viagem do “Bessie Surtees”: do mar para terra, deambulando pela Cultura Clássica!


“Primeiro chegarás às Sereias, que fascinam todos os homens / que junto delas abordarem. / Seja quem for que se aproxime incauto e escute / a voz das Sereias, a esse nem a mulher nem os filhos inocentes / hão-de acolhê-lo e alegrar-se com o seu regresso a casa”.

HOMERO, in Odisseia (XII, 39-43)

Já lá vão alguns anos, mas lembramo-nos como se fosse hoje. Naturalmente impressionados com as coisas terrenas, sempre fomos admiradores das bases sólidas e robustas que, tal como em Tróia, nos criam uma sensação de segurança e estabilidade. A cantaria cinzelada (por exemplo) faz-nos perpetuar o passado rebuscando memórias. Elas podem ler-se na pedra porque a pedra é terrena, sólida e robusta. O mesmo não se pode dizer da água e de tudo quanto nela flutua.
Momentos há que, só nos mergulhos a grandes profundidades, se podem rebuscar memórias do passado, porque essas residem em terra, mormente diluídas pela imensidão do mar... Por isso, para que nasça em nós a paixão pelo mar, tem que haver trigonometria, porque a areia e a água, somente, tornam-se agrestes e agridem o nosso espírito. O verde é um elemento necessário ao nosso “ego”, local privilegiado de súplica à virgem mãe de Deus, detentora da égide divina, plasmada no branco caiado das serpenteadas capelinhas. A filha de Zeus, moldada aos tempos que correm. Culturalmente, a égide de sermos filhos da Grécia!
Temos as raízes em terra! Assim, só porque se tratava da última viagem daquela “construção flutuante”, nos decidimos em aceitar o desafio e, decerto, a íntima e ansiada experiência de aventura.


Já tínhamos “ido” ao mar – esse elemento fundamental das epopeias – num rebocador, mas, desta vez, levávamos outro sentimento de mãos dadas com a odisseia pessoal – intimamente marcada pela poética camoniana de convocar as alvas filhas de Nereu, / com toda a mais cerúlea companhia, / que, porque no salgado mar nasceu, / das águas o poder lhe obedecia (Lusíadas: II, 19) –, um sentimento fundo de tudo ver com outros olhos. Se calhar, inconscientemente, era a simbiose com o derradeiro alento daquele barco. Uma sensação de perda. A expectativa da despedida.
Falou-se de borda, convés, leme, bombordo e estibordo, de milhas, de norte e sul, nordeste e sudoeste, de correntes, de bóias, de coletes, de sinais, de porões, de cobertas, de tanques, de vigias, enquanto nascia em nós, primeiro escondidamente e depois fundo e largo, um sentimento pungente mas indefinível, enquanto olhávamos para a linha do horizonte sulcada pela passagem de um veleiro e pontilhada por embarcações de pesca artesanal. Aqui e acolá as marcas sinalizadoras das redes, bóias embandeiradas, demarcando áreas. Para trás ficava a cidade e o seu verde e, connosco, um ressaibo de nostalgia... Era a cidade vista noutra dimensão. Ali, em pleno mar, ao sinal de um dos tripulantes, mudavam-se rumos para fugir às bóias, cujo silvo do vento norte lhes conferia a partitura do canto das sereias. O mar estava “chão”. Uma paz silenciosa como uma serena calmaria. Na linha do horizonte o veleiro rumava para norte, enquanto a nossa embarcação, de leme a estibordo – depois que passamos ao largo e não se ouvia já / a voz das sereias nem o seu canto (Odisseia: XII, 196-197) –, descrevia uma volta de 180 graus, de regresso a casa.
Ao longe, Viana amuralhada – qual sólido navio chegaria à ilha das Sereias –, num outro horizonte, tendo como pano de fundo a altivez e a serenidade do verde esperança que se derramava aos pés de Santa Luzia. Cumpria-se os oráculos revelados por Circe. A linha prolongava-se para norte e sul reproduzindo aguarelas de um progresso “anárquico” com o predomínio de torres ferindo o recorte harmonioso da Natureza. Inconscientemente uma memória feriu-nos. Uma memória que transpondo o passado evanescente nos deixou ver a mesma linha de costa espraiando-se aos pés da Montanha, onde velejavam as caravelas e as embarcações de antanho, do tempo áureo dos descobrimentos e do comércio marítimo com os seus ciclos dos panos e do sal, do ferro e do bacalhau, do açúcar brasileiro. A costa rochosa da ilha, feita cidade (Polis), deixou de ser berço dos encantadores génios marinhos: Vem cá, Ulisses celebrado, dos Aqueus glória suprema! / Detém o navio, para escutares a nossa voz. / Jamais alguém passou ao largo com a negra nau, / sem que ouvisse o doce canto que sai da nossa boca (Odisseia: XII, 183-186). Não fosse o facto de Ulisses, prudente e curioso ao mesmo tempo, ordenar os seus marinheiros que tapassem os ouvidos e o amarrassem ao mastro – Um a um, tapo com cera os ouvidos dos meus homens todos. / Por sua vez, eles ligam-me de pernas e braços / e amarram-me, de pé, ao mastro central. / Depois, sentados, batem com os remos o mar pardacento (Odisseia: XII, 176-179) –, por certo que, uma vez levados pelo encanto das Sereias, viriam os seus navios desfazerem-se contra as rochas, num cenário desolador de naufrágios envoltos pelo mar encapelado, qual Adamastor Assi contava, e c’um medonho choro / Súbito d’ante os olhos se apartou; / Desfez-se a nuvem negra, e c’um sonoro / Bramido muito longe o mar soou. / Eu, levantando as mãos ao santo coro / Dos Anjos, que tão longe nos guiou, / A Deus pedi que removesse os duros / Casos que Adamastor contou futuros (Lusíadas: V, 60).
Uma memória... uma fuga à voz doce das Sereias e do prado florido, sem amarras, junto ao mastro-real. As “sirenes” (Σειρηνες.) de agora passaram a ter outra função. Passaram a alertar-nos para o perigo de proximidade à costa. O hoje, outra vez, em terra: «… Sigamos estas Deusas, e vejamos / Se fantásticas são, se verdadeiras!» / Isto dito, velozes mais que gamos, / Se lançaram a correr pelas ribeiras. / Fugindo as Ninfas vão por entre os ramos, / Mas, mais industriosas que ligeiras, / Pouco e pouco, sorrindo e gritos dando, / Se deixam ir dos galgos alcançando (Lusíadas: IX, 70).
Desvaneceram-se as caravelas. O passado... Naquele dia, feitos mareantes, a bordo do “Bessie Surtees”, sentimos Viana de uma maneira diferente.
Que bom seria se os arquitectos das bases sólidas, quando pensassem alterar a linha do horizonte, não o fizessem de terra para terra, mas de mar para terra, auscultando os deuses bem-aventurados, aqueles que não apreciam o mal, / mas prestam honra à justiça e às acções sensatas dos homens (Odisseia: XIV, 83-84).
Bastaria escolher um dia de mar “chão” – ainda que se vislumbrasse uma serena calmaria – e viajar num barco, mesmo que fosse um barco a abater. Decerto, pensariam tudo de uma maneira diferente!...
À noite, na calmaria do nosso quarto, impôs-se-nos a necessidade de uma séria reflexão, a propósito do encanto e desencanto dos espíritos do campo, plasmados nas “jovens mulheres” que o povoam (Ninfas), deambulando também pelos bosques e pelas águas, personificando os diversos aspectos da natureza. Naquela mesma noite, voltaríamos a perscrutar a nossa ancestralidade greco-romana. Embora hoje outros sejam os cânticos sedutores que provocam os naufrágios, os “demónios marinhos” – sejam eles sob a forma de ave ou de peixe com cabeça e peito de mulher (Sereias) –permanecem aconchegados e/ou actuam no nosso subconsciente.

São outros os rostos dos deuses, mas as preces continuam a ser as mesmas. Dos deuses pensados à imagem do homem até nos defeitos – ludibriosos e vingativos, sendo que suas paixões é que determinam os sofrimentos dos homem – (Ilíada), passamos aos deuses mais distanciados e justiceiros – os sofrimentos impostos são uma consequência do comportamento dos homens – (Odisseia). A precariedade do homem perante a divindade, lutando pela Glória, a “Arete”: Mas Zeus acrescenta ou diminui o valor dos homens, / conforme lhe apraz, pois ele é o mais poderoso de todos (Ilíada: XX, 242-243). Por outro lado, o mar será sempre fonte de inspiração de outras tantas epopeias. Ainda que se procure que Cessem do sábio grego e do troiano / As navegações grandes que fizeram; / Cale-se de Alexandre e de Trajano / A fama das vitórias que tiveram (Lusíadas: I, 3), jamais se conseguirá apagar o espargir do mundo a partir do qual o nosso nasceu, seja através da estrutura social e política, das ideias, das crenças, ou até mesmo dos costumes. E, ingenuamente, lá vamos andando de costas viradas ao mar, dizendo-nos e afirmando-nos filhos da Europa!

Friday, August 03, 2012

«Portugal na hora da verdade: como vencer a crise nacional»: não diz a bota com a perdigota!


“As pessoas não valem por aquilo que escrevem ou dizem, mas por aquilo que são capazes de fazer pelo seu semelhante, no momento oportuno”

F. Serrão

Sempre fomos leitores inveterados de teses científicas, em qualquer vertente da teoria do conhecimento, acreditando – ainda que com algumas reservas – naquilo que os seus autores podem trazer de novo ao pensamento universal. E quando essas teses se apresentam como soluções aos acidentes de percurso das áreas a que se confinam, faz aumentar em nós a “curiosidade especulativa”.
Vem isto a propósito de uma “conceptual” leitura que presentemente fizemos do livro de Álvaro Santos Pereira – actual ministro da economia, mas que na altura era docente da Simon Fraser University (Vancouver, Canadá), onde leccionava Política Económica e Desenvolvimento Económico. Licenciado pela Universidade de Coimbra, doutorou-se em Economia na Simon Fraser University e já leccionou na University of York e também na British Columbia University, local onde permaneceu como professor convidado de Macroeconomia, até entrar para o Governo –, com o título «Portugal na hora da verdade: como vencer a crise nacional», editado pela Editora Gradiva, em 2011. É evidente que não vamos aqui discorrer pelas suas 576 páginas, com o intuito de nos afoitarmos a qualquer tipo de recensão crítica, tendo em conta que alguma da nossa aversão aos meandros da economia contemporânea vem-nos da leitura (por obrigação académica) de Karl Marx – exigindo, por isso, que não nos rotulem de marxistas – e do actualíssimo «O Capital»: “Desde o seu nascimento, os grandes bancos adornados de títulos nacionais eram apenas sociedades de especuladores privados, que se colocavam do lado dos governos e que, graças aos privilégios recebidos, estavam em condições de lhes adiantar dinheiro. Portanto, a acumulação da dívida do Estado não tem nenhuma escala de medida mais infalível do que o sucessivo subir das acções desses bancos, cujo pleno desabrochar data da fundação do Banco de Inglaterra (1694)” – assim podemos ler no vigésimo quarto capítulo, «a chamada acumulação original», que nos adianta ainda que “com as dívidas de Estado surgiu um sistema de crédito internacional”. Olvidar tal argumentação é alimentarmo-nos pela ignorância dos factos tão reais, como à época o diria Karl Marx, no mesmo vigésimo quarto capítulo d’«O Capital»: “Esta expropriação [logo que os operários foram transformados em proletários] completa-se pelo jogo das leis imanentes da própria produção capitalista, pela centralização dos capitais. Um capitalista mata sempre muitos. De braço dado com esta centralização ou com esta expropriação de muitos capitalistas por poucos (…)”. Pena é que se pretenda ignorar esta triste realidade tão actual, preconizada – em termos de pensamento – há cerca de século e meio, mais concretamente em 1867, altura da primeira edição desta mesma valiosíssima obra (infelizmente inacabada), que uns poucos, erradamente, transformaram em mera corrente ideológica.
Mas, vamos à realidade actual, “pela pena e pela mente” de Álvaro Santos Pereira – aquele que após tomar posse como ministro, e contrariando os apelativos dos defensores dos prefixos (pão quentinho a sair do forno de Miguel Relvas), aconselhou a que o chamassem de Álvaro, sem o doutor (aplaudimos de pé) – que ao longo do livro «Portugal na hora da verdade: como vencer a crise nacional» procura mostrar que Portugal vive hoje três grandes crises: a crise das finanças públicas, a crise da competitividade e do crescimento e a crise do endividamento externo. Entre as questões debatidas, incluem-se as seguintes: qual é o verdadeiro estado das nossas finanças públicas? Porque é que o nosso Estado gasta tanto? Quantos institutos e outras entidades públicas existem e quanto gastam? E porque estamos tão endividados? Será a dívida nacional sustentável? Quão grave é o problema de competitividade das nossas exportações? – questões e interrogações pertinentes, reforçadas pelo facto de ele mesmo sublinhar ao longo da mesma “dissertação” que havia fortes indícios de que o nosso Estado estava a matar a economia nacional, afirmando mesmo que os funcionários públicos não eram responsáveis por esta situação: “Uma verdadeira reforma do Estado que torne as nossas contas públicas saudáveis e sustentáveis não deve ser feita contra os funcionários públicos ou contra o serviço público. Muito pelo contrário. Uma verdadeira reforma da administração pública terá de melhorar o serviço público, não piorá-lo. Uma verdadeira reforma da função pública terá de aumentar o prestígio do emprego público, não diminuí-lo. Uma verdadeira reforma do Estado terá de incentivar a auto-estima dos funcionários públicos e fazer com que sejam eles próprios a estimular a mudança de que a nossa administração pública necessita”.
A propósito deste livro de Álvaro Santos Pereira, diria a crítica na altura que «Portugal na hora da verdade: como vencer a crise nacional» estava “pensado também para o leitor sem formação em economia, «Portugal na Hora da Verdade» responde a estas e outras questões numa linguagem acessível e clara, apresentando novos dados e uma interpretação mais abrangente da crise nacional, seguidos de soluções concretas para os problemas económicos do país. É, portanto, um livro fundamental para compreender as dificuldades actuais e pensar em saídas possíveis para a crise nacional”. E se na altura achávamos ter percebido a denominada linguagem acessível e clara, depressa constatamos, ao tomarmo-nos pela conjuntura presente de o visionarmos como ministro da economia, que bem pregava o “Frei Tomás”: “Finalmente, uma verdadeira e duradoura reforma do nosso Estado não poderá encarar a necessária dieta da administração pública como uma mera poupança de euros e de despesa pública, mas sim como uma oportunidade única para melhorar a eficiência do Estado e, assim, simplificar e auxiliar a vida dos portugueses. É neste sentido que uma reforma da administração pública tem de ser feita com os funcionários públicos e não contra eles” (Pereira, 2011: 511). E diz porquê: “Porque toda e qualquer reforma que seja contra os funcionários públicos está condenada ao fracasso (…)” –  ou ainda – “A culpa do descalabro das finanças públicas nacionais não é dos funcionários públicos, é dos governos”. Teorização tão “clara e acessível”, acaba por nos deixar estupefactos perante aos efeitos práticos de quem vincularia tais afirmações, num sugestivo capítulo da denominada “dissertação”, com o título “políticas para retomar o sucesso”. É caso para dizer-se, face ao descalabro das finanças públicas e subsequente asfixia da função pública (quiçá acabando com a classe média), que “a bota não diz com a perdigota”… ou, infelizmente, o ministro encontra-se manietado pela incompetência de terceiros e, quiçá, interesses instalados.
      Terminaremos, sugestionados pelo pensamento de Armand-Jean du Plessis (1585-1642), o conturbado e polémico Cardeal-duque de Richelieu, no seu «Testamento Político», hoje com novos protagonistas, mas com os mesmos princípios: “O aumento dos impostos é capaz de reduzir ao ócio um grande número de súbditos do Rei, sendo certo que a maior parte do povo pobre e dos artesãos empregados nas manufacturas preferirão ficar ociosos e de braços cruzados a conformar-se toda a vida a um trabalho ingrato e inútil, se a grandeza dos impostos, impedindo a venda dos frutos da terra e das produções, os impedir também, por essa via, de receber o do suor do seu corpo”. Por concordarmos com provérbio latino «Asinus asinum fricat», ficamo-nos por aqui, sem que antes, e em face à conjuntura presente, albarde-se o burro à vontade do dono!