Friday, June 27, 2014

História e etnologia em Claude Lévi-Strauss!...

“Acabamos de distinguir a língua e a palavra por meio dos sistemas temporais aos quais cada um pertence. Ora, também o mito se define por um sistema temporal que combina as propriedades dos dois outros”.

Claude Lévi-Strauss

Claude Lévi-Strauss, antropólogo, professor e filósofo francês, considerado o fundador da Antropologia Estruturalista e um dos grandes intelectuais do século XX, nasceu em Bruxelas a 28 de Novembro de 1908 e faleceu em Paris a 30 de Outubro de 2009, a cerca de um mês de completar cento e um anos de idade. Efectuou os seus estudos superiores em Paris (Sorbonne), onde concluiu a licenciatura em Filosofia (1931), depois a agregação e, mais tarde, o doutoramento em Letras (1948), com a tese sobre as estruturas de parentesco. Ainda, em Sorbonne, chegou a frequentar Direito, mas não viria a concluir. Em 1959, Lévi-Strauss foi nomeado para a cadeira de Antropologia Social do Collège de France e, por volta desse período – mais concretamente, em 1958 –, publicou Antropologia estrutural, uma colecção de ensaios em que oferece tanto exemplos como manifestos programáticos do estruturalismo. Começou a organizar uma série de instituições e confrontos entre as visões existencialista e estruturalista.
Para Catherine Clément, por exemplo, ninguém mais do que Lévi-Strauss terá combatido a ideia de dialéctica e o sentido da História. Este episódio começa com Sartre, cujo rigor nas descrições das experiências sociais era apreciado por Lévi-Strauss. Só que, para o mesmo antropólogo, Sartre definia o homem pela dialéctica, e a dialéctica pela História e não tem dificuldade em demonstrar que a História é, para Sartre, uma mística ou um mito, que funciona segundo a imagem de um sentido linear ao longo do qual se dispõem os acontecimentos. Como qualquer ciência, a História necessita de um código, que é a cronologia (Clément, 2004: 101).


Segundo Lévi-Strauss, mais de meio século se passou desde que Hauser e Simiand expuseram e opuseram as diferenças entre a história e a sociologia, que se prendiam essencialmente com o carácter comparativo do método sociológico, monográfico e funcional do método histórico. Hauser e Simiand apenas divergiam acerca do valor respectivo de cada método. E se, por um lado, a história ateve-se ao – ainda que modesto e lúcido – programa proposto e desenvolveu-se, por outro, a sociologia, desenvolveu-se sem consenso de método: Do ponto de vista da história, os problemas de princípio e de método parecem definitivamente resolvidos. Quanto à sociologia, o problema é diferente: não se poderia dizer que ela não se desenvolveu; aqueles de seus ramos dos quais nos ocuparemos mais particularmente aqui, a etnografia e a etnologia, desabrocharam, no curso dos últimos [quarenta] anos, numa prodigiosa floração de estudos teóricos e descritivos, mas a custa de conflitos, discórdias e confusões onde se reconhece, transporto ao próprio seio da etnologia, o debate tradicional – e quão mais simples sob esta forma – que parecia opor a etnologia em seu conjunto uma outra disciplina, a história, igualmente considerada em seu conjunto (Lévi-Strauss, 2003: 13-14). Deste modo, enquanto a etnografia nos aparece assim como a observação e análise de grupos humanos considerados na sua particularidade, visando a reconstituição, tanto fiel quanto possível, da vida de cada um deles, a etnologia utiliza de modo comparativo os documentos apresentados pelo etnógrafo. Para Lévi-Strauss, com estas definições, a etnografia toma o mesmo sentido em todos os países; e a etnologia corresponde aproximadamente ao que se entende, nos países anglo-saxões, por antropologia social e cultural: a antropologia social consagrando-se sobretudo ao estudo das instituições consideradas como sistemas de representações, e a antropologia cultural ao estudo das técnicas, e, eventualmente, também das instituições consideradas como técnica ao serviço da vida social (Lévi-Strauss, 2003: 14-15). Posto o problema das relações entre as ciências etnológicas e a história, as mesmas ciências se vinculam à dimensão diacrónica dos fenómenos, ou seja, à sua ordem no tempo, tornando-se incapazes de traçar-lhes a história; ou, por outro lado, procuram trabalhar à maneira do historiador, e a dimensão do tempo lhes escapa. Para Lévi-Strauss, pretender reconstituir um passado do qual se é impotente para atingir a história, ou querer fazer a história de um presente sem passado, drama da etnologia num caso, da etnografia no outro, tal é, em todo caso, o dilema no qual o desenvolvimento delas, ao longo dos últimos cinquenta anos, pareceu muito frequentemente colocá-las (Lévi-Strauss, 2003: 15).
Uma questão se coloca: que diferenças há, efectivamente, entre o método da etnografia e o da história? Ambos estudam sociedades que são outras que não aquela onde vivemos. E, pelo facto de existir o melhor estudo etnográfico nunca transformará o leitor em indígena. Por isso, e segundo Lévi-Strauss, o paralelismo metodológico que se pretende traçar entre etnografia e história, para se oporem, é ilusório. Em suma, a história organiza os seus dados em relação às expressões conscientes, a etnologia em relação às condições inconscientes da vida social. Assim, a etnologia não pode permanecer indiferente aos processos históricos e às expressões mais altamente conscientes dos fenómenos sociais. Daí, ser inexacto dizer-se que, no caminho do conhecimento do homem que vai do estudo dos conteúdos conscientes ao das formas inconscientes, o historiador e o etnólogo caminham em direcções inversas: ambos se dirigem no mesmo sentido (Lévi-Strauss, 2003: 40).
       Bom seria que todos os historiadores, etnógrafos ou etnólogos locais tivessem consciência disso. Talvez com um pouco mais de leitura e de seriedade intelectual, não se cometessem tantos erros de interpretação. Mas, pior ainda é o permanente ou sistemático plágio, irritantemente repetitivo!

Friday, June 20, 2014

Daniela Arbex e o Holocausto Brasileiro!...

“Caro Porfírio Silva, este livro nasceu do sonho de dar voz aos socialmente mudos. Meu desejo é que ele nos inspire na busca permanente da verdade e da justiça”.

Daniela Arbex

O choque foi nos dado por Daniela Arbex, uma das jornalistas brasileiras mais premiadas da sua geração: «Milhares de crianças, mulheres e homens foram violentamente torturados e mortos no hospício de Colónia, em Barbacena, fundado em 1903. A maioria foi internada sem diagnóstico de doença mental: eram meninas violadas que engravidaram dos patrões, homossexuais, epilépticos, mulheres que os maridos não queriam mais, alcoólicos, prostitutas. Ou simplesmente seres humanos em profunda tristeza. Sem documentos, sem roupa e sem destino, tornaram-se filhos de ninguém». Nestas poucas linhas, em jeito de sinopse, dá para perceber a dimensão da vida e do genocídio das cerca de sessenta mil mortes, ocorridas no maior hospício do Brasil.
O papel e conduta ontológico-exemplar de Daniela Arbex, repórter especial do jornal Tribuna de Minas há dezoito anos, uma repórter que luta contra o esquecimento, e que tem no currículo mais de vinte prémios nacionais e internacionais, entre eles três prémios Esso, o mais recente recebido em 2012 com a série «Holocausto Brasileiro» – e que ora dá título ao livro –, dois prémios Vladimir Herzog (menção honrosa), o Knight Internacional Journalism Award, entregue nos Estados Unidos (2010), e o prémio IPYS de Melhor Investigação Jornalística da América Latina e Caribe (Transparência Internacional e Instituto Prensa y Sociedad), recebido por ela em 2009, quando foi a vencedora, e 2012 (menção honrosa). Em 2002, foi premiada na Europa com Natali Prize (menção honrosa), transforma em palavra o que era silêncio, devolvendo “nome, história e identidade àqueles que, até então, eram registados como «Ignorados de tal». Eram um não ser.” – como nos diz Eliane Brum, em jeito de prefácio «OS LOUCOS SOMOS NÓS», despertando-nos, ao mesmo tempo, para a triste e trágica realidade de que “as palavras sofrem com a banalização. Quando abusadas pelo nosso despudor, são roubadas de sentido. Holocausto é uma palavra assim.”


Daniela Arbex, que tivemos o grato prazer de conhecer nas “V Jornadas Internacionais de História da Psiquiatria e Saúde Mental”, em Coimbra, através deste seu meticuloso trabalho jornalístico, resgata do esquecimento esta chocante e macabra história do século XX brasileiro: um genocídio feito pelas mãos do Estado, com a conivência de médicos, funcionários e população que roubou a dignidade e a vida às já citadas sessenta mil pessoas. Dividido em catorze capítulos, numa abordagem bem documentada (com fotografias – imagens do horror – de Luiz Alfredo, da revista O Cruzeiro), como nos revela Eliane Brum, esta é a história que “Daniela Arbex desvela, documenta e transforma em memória (…), um genocídio cometido, sistematicamente, pelo Estado brasileiro, com a conivência de médicos, de funcionários e também da sociedade”. Tudo isto, só por si, torna-se deveras arrepiante, mas a indignação ou a revolta vai aumentando, à medida que vamos lendo os catorze capítulos: I – O Pavilhão Afonso Pena, “apesar do tamanho, o complexo não podia ser visto do lado de fora, por causa da muralha que cercava todo o terreno. Lá dentro, a dimensão daquele espaço asperamente cinza, tomado por prédios com janelas amplas, porém gradeadas, impressionava”; II – Na Roda da Loucura, “fome e sede eram sensações permanentes no local onde o esgoto que cortava os pavilhões era fonte de água”; III – O Único Homem que Amou o Colónia, “corre, que seu filho está nascendo. O mestre-de-obras do Colónia, Raul Ferreira Carneiro, largou as ferramentas no chão e seguiu em direcção à chácara do sogro, Adolfo Cisalpino de Carvalho, administrador do hospital em 1925…”; IV – A Venda de Cadáveres, “quando os corpos começaram a não ter mais interesse para as faculdades de medicina, que ficaram abarrotadas de cadáveres, eles foram decompostos em ácido, na frente dos pacientes, dentro de tonéis que ficavam no pátio de Colónia. O objectivo é que as ossadas pudessem, então, ser comercializadas”; V – Os Meninos de Oliveira, “crianças mantidas em berços dentro do Colónia, de onde não saiam nem para tomar sol”; VI – A Mãe dos Meninos de Barbacena, “da cabeleireira à dentista, muitos profissionais foram seduzidos pela causa dos meninos de Barbacena. A comunidade, aos poucos, foi enxergando o ser humano por trás de deficiência que os faria babar ou passar o dia balançando o corpo de frente para trás”; VII – A Filha da Menina de Oliveira, “Débora Aparecida Soares nasceu dentro do hospital e foi doada ao nascer. Hoje tem vinte e sete anos”; VIII – Sobrevivendo ao Holocausto, “Tânia, a psicóloga das residências terapêuticas, é uma das pessoas por quem eles sempre oram”; IX – Encontro, Desencontro, Reencontro, “havia tantas mulheres caídas no chão, espalhadas pelos cantos, em meio a fezes, que a gestante foi tomada pelo pânico”; X – A História por trás da História, “O fotógrafo da revista O Cruzeiro Luiz Alfredo estava prestes a registar as imagens mais dramáticas da sua carreira, embora não soubesse disso, quando se deparou com o portão de ferro que daria acesso ao interior do Colónia, em Barbacena, naquele Abril de 1961”; XI – Turismo com Foucault, “– Realmente, o louco não merece nenhuma consideração. Veja este pátio cimentado. Não há sequer uma árvore ou sombra. Os pacientes não precisam de nada, afinal, no conceito de vocês, eles não são gente. / A resposta do psiquiatra fez o enfermeiro emudecer”; XII – A Luta entre o Velho e o Novo, “a medicina brasileira tem tradição de cárcere. Por isso, a lógica da internação faz com que os recursos médicos sejam predominantemente hospitalares, subtraindo recursos do tratamento ambulatório, comunitário, aberto” – defendia Paulo Delgado; XIII – Tributo às Vítimas, “vocês precisam entender que não somos tomadores de conta. Somos cuidadores. Os doentes têm direito de retornar para a sociedade”; XIV – A Herança do Colónia, “quando o Colónia for finalmente desactivado com a saída de todos os pacientes asilares, os prédios do lendário manicómio poderão ganhar nova destinação em uma cidade carente de espaços públicos”.


Terminaremos, citando Eliane Brum: «Neste livro, Daniela Arbex salvou do esquecimento um capítulo da história do Brasil. Agora, é preciso lembrar. Porque a história não pode ser esquecida. Porque o holocausto ainda não acabou». Verdade única, quando por aí há muitos holocaustos!                           
          NOTA MÁXIMA!

Friday, June 13, 2014

Escritas Privadas da Mobilidade e da Guerra!...

“Os usos da escrita são decisivos para compreendermos como as comunidades e os indivíduos constroem representações de um mundo que é seu”.

Do Prólogo

Acabou de sair em suporte de papel, numa edição da Fundação Caixa Agrícola do Noroeste, uma obra que teve uma primeira edição em formato digital, que correspondia a parte do projecto inicialmente delineado pelos seus coordenadores: Henrique Rodrigues e Ernesto Português. De facto, «Escritas Privadas da Mobilidade e da Guerra», e como nos explica o editor, “foi dado a público, numa primeira fase, uma brochura com índices, resumos e currícula dos autores juntamente com um CDrom, sob os auspícios da Câmara Municipal de Monção, de reduzida circulação pelos circuitos comerciais”, levando a que, por forma a divulgar o projecto por um público mais alargado, quer académicos quer os leitores em geral, os coordenadores procuraram encontrar um parceiro editorial com capacidade para atingir tal desiderato, como bem explica o editor, Fundação Caixa Agrícola do Noroeste.
Colaboraram neste projecto diversos investigadores de várias academias, entre os quais encontramos docentes do Instituto Politécnico de Viana do Castelo, Universidade de Lisboa, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Universidade do Porto, Universidade Portucalense-Infante D. Henrique, Universidade Nova de Lisboa e Universidade Pontifícia de São Paulo, através da divulgação de vários e valiosíssimos documentos, que, como afirma José Emílio Pedreira Moreira em nota de abertura, ajudam a “fazer” a “nossa história individual, familiar e mesmo nacional, sem disso, talvez, terem intenção e consciência. São outra fonte documental de acesso às ideias, aos problemas, aos projectos, às lutas, à cultura, à dimensão económica, à organização social e política, ao nível educacional, enfim, ao domínio do imaginário singular e colectivo que sempre anima e dirige uma região, uma nação e uma época. É que a linguagem, mesmo na sua faceta oral e espontânea de interpretar e comunicar, é o reflexo mais fiel do indivíduo e da sociedade que a fala” – síntese com a qual corroboramos e que, sobremaneira, reflecte o conteúdo da obra.


Esta magnífica obra apresenta-se com treze trabalhos, repartidos por catorze autores: Ernesto Português, com «O sentido de Estado na correspondência familiar de João Pereira Caldas, Governador de Grão Pará entre 1772 e 1780», p. 17-38; Maria Izilda Matos, com «Possibilidades de pesquisa e perspectivas didácticas (Portugal e Brasil)», p. 39-58; Henrique Rodrigues, com «Epistolário popular e imagens da emigração oitocentista», numa abordagem às cartas enviadas do Brasil para Viana do Castelo, p. 59-124; Ana Sílvia Albuquerque, com «Escritas da mobilidade em contextos familiares», numa análise de correspondência de emigração no primeiro quartel de Novecentos, p. 125-132; Ernesto Português, com «Escritas da Casa de Sende (Monção)», numa abordagem às correspondências de uma família do Alto Minho do Século XVIII, p. 133-156; Henrique Rodrigues, com «Correspondência de emigrantes do Alto Minho no período da República», p. 157-194; Joana Pontes, com «Cartas de Guerra», p. 195-206; Henrique Rodrigues, Clara Coutinho, Marta Pires, Sofia Ramos e Sónia Simões, com «Escrever para não morrer», numa análise a correspondências de um soldado de Monção na Guerra Colonial, p. 207-262; Maria Olinda Rodrigues Santana, com «Escritos da mobilidade no arquivo pessoal António Maria Mourinho», com perspectivas didácticas», p. 263-294; Filipa Lopes, com «Os forais afonsino e manuelino de Viana da Foz do Lima», numa abordagem didáctica, p. 295-324; Gonçalo Maia Marques, com «As escritas de Baco como fonte histórica, perspectiva didáctica», p. 325-332; Manuela Cachadinha, com «As histórias de vida na investigação em Educação e Interculturalidade», p. 333-353; e, finalmente, Pedro Teixeira Pereira, com «As Escritas do Poder no Estado Novo», numa abordagem didáctica de escritos e ditos, p. 355-364. Esta obra termina com os resumos dos trabalhos, dum irrepreensível rigor científico, p. 365-372; e uma síntese biográfica dos autores, p. 373-380.
Em termos de conteúdos, perpassam pelos diversos trabalhos excelentes investigações, que vão no sentido de interpretar cartas e correspondências ou outros suportes documentais, sempre numa perspectiva didáctico-cultural e historiográfica, tendo em conta que os mesmos nos podem abrir janelas sobre o passado. Tal como afirma Joana Pontes, as cartas, por exemplo, “cruzam todas as classes sociais e tornam-se parte da vida de todos os dias, às vezes durante um longo período do tempo. Podemos estudá-las como textos em si e ouvi-las como fontes, fortemente ancoradas em contextos particulares”, proporcionando, ao mesmo tempo, o “acesso às ideias, aos problemas, aos projectos, às lutas, à cultura, à dimensão económica, à organização social e política, ao nível educacional, enfim, ao domínio do imaginário singular e colectivo que sempre anima e dirige uma região, uma nação e uma época” – citando, de novo, José Emílio Pedreira Moreira.
Ao Professor Doutor Henrique Rodrigues o nosso profundo agradecimento pela elevada consideração, reflectida em tão gentil oferta e imerecida dedicatória, e os nossos parabéns aos coordenadores, autores e editor, pelo extraordinário contributo dado para a valorização da investigação científica, nomeadamente no que toca à “História das Ideias”, em Portugal. Um livro esteticamente perfeito (magnífica capa de Henrique Rodrigues), uma leitura que se recomenda.
        Nota máxima!

Friday, June 06, 2014

Álvaro de Oliveira publica “Murmúrio Íntimo”!...

“Se ontem disse que os meus livros eram os meus pecados de quase nada; hoje sinto que os meus livros são os meus pedaços de quase tudo”.

Álvaro de Oliveira

«Atravessando um Fevereiro quente, daqueles que o adágio diz trazer o diabo no ventre, dou comigo por arrumos na biblioteca entre livros e pastas de arquivo sem medir as consequências que possam advir deste Inverno sem chuva a causar medos de nefasta seca» – assim começa o justificativo de “causa-efeito”, para o aparecimento do MURMÚRIO ÍNTIMO de Álvaro de Oliveira, numa edição da Calígrafo – sonho concretizado na partilha com os outros do bom amigo Fernando Pinheiro –, partilhado pela afirmação de serem, segundo o autor, «coisas nossas, passagens do dia-a-dia, memórias, fragmentos de paixões e descontentamentos. Tudo resultado de um tempo que decido agora registar em livro (…), sem critérios de selecção, sem ordem cronológica, aleatoriamente e sem data de publicação. Por aqui se registam e perfilam os nomes de muitos companheiros de jornadas, homens e mulheres das artes e das letras a quem presto justa homenagem», como se houvesse necessidade de explicação para intemporalidade dos bons escritores, como será o caso do Álvaro de Oliveira: «O meu espaço é, por necessidade e gosto, este cantinho que um dia elegi para, letra a letra, dar corpo a uma pertinente e quase indomável escrita» – citamos da “p(r)oética” em Álvaro de Oliveira, qual murmúrio inicial o levaria a descobrir que o dilema da escrita era forçosamente permanecer na ausência e adormecer com o silêncio: «Por vezes nenhum silêncio nos magoa, nenhum olhar de aceno nos comove, parece até que nenhuma palavra nos aquece a alma». Só uma alma poética como a de Álvaro de Oliveira poderá dizer que «Só o silêncio, noite fora, me permite trabalhar sem incorrer naquela distracção que às vezes me perturba o raciocínio», preferindo «atravessar a noite à espera de qualquer coisa… Talvez uma frase, um verso, um poema com que possa expressar uma ideia de luz amarela que ilumina esta mesa, a vontade sem vontade, um rio seco, uma árvore sem ramos, sem folhas…». Felizmente que, para nós, Álvaro de Oliveira é daqueles escritores que não se cala, escrevendo até ao último escoar dos dias. Mais que não seja, em homenagem aos homens e mulheres que morreram pela liberdade de expressão e pensamento, repetidamente presentes em conjunturas similares: «Portanto, fechados nesta redoma e tangidos por leis laborais que nos remetem para a penúria do recibo verde e outras precariedades, sem poder sequer dar um pio, depressa nos encontramos manietados sobre nós próprios, gerindo conflitos e desconcertos e, espantados, a atirar um olhar patético para famigerados prumos contabilísticos e demais indicadores que dão nota pesada sobre a inacreditável soma de 3 milhões de portugueses que se viram forçados, como noutro tempo assim aconteceu, a abandonar o seu país e procurar, lá fora, um novo rumo para dar à vida».

Mesa de apresentação: Fernando Pinheiro (Editor), Álvaro de Oliveira (Autor) e Porfírio Silva (Apresentador)

Falar de «Murmúrio Íntimo», o que nos levará ao atrevimento de o conjugar no plural, tendo em conta a harmonia do todo na partilha do olhar poético, observador – sim, um bom escritor tem que ser, forçosamente, um bom observador –, aquele olhar poético «ligado às origens e às causas, atravessar as sombras que passam rente aos gestos que nos falam da intimidade dos frutos» e dos outros, aqueles em que muitas vezes «os guardas do poder» espancam violentamente os trabalhadores e os melhores filhos do povo do nosso país, levando-o e/ou levando-nos à revolta, com aquele «olhar íntimo» dos rostos que ainda nos acompanham, quase como um «menino perdido na noite, embrulhado no calor das palavras», esquecido de si, deixando-se seduzir pelo silêncio a ouvir a melodia de infância.


Há um olhar atento de Álvaro de Oliveira: na música, qual «harmonia musical de todas as palavras, na linha exacta dos valores que fundem estas duas chamas vivas (noite e solidão) a legendar o adro da nossa memória, como ainda tenho o privilégio de encontrar tanta coragem, tanta lucidez e tanta inteligência!»; na literatura; nas artes; no morder do tempo; na voz do sonho, mesmo quando em voos mágicos de infância se deixa andar muito próximo do ritmo do andar da sua Professora de português, provando assim «pelo cálice da amargura o silêncio destes dias inacabados» e sem esquecer, por uma vez que fosse, «a voz doce da (sua) Professora de português» quando lhe lia um poema de Fernando Pessoa; no sopro da razão, «a enferma sedução de viver num mar de ausências quando deixámos de ser nós e mergulhamos no mais arreliador de todos os silêncios», descobrindo-o na exaltação ao pôr-do-sol «mais envolvente que chama para este lugar sossegado homens das ciências, das artes e das letras, que atira convites para uma soberba fruição da natureza e que se expõe na grande mesa onde o cardápio mostra sabores desconhecidos»; no caminhar sobre si mesmo, questionando abismos que nos roubarão o pensamento; na difícil travessia para nos libertar de outros medos e de outras loucuras; no interrogar os senhores do poder: – Afinal, se viveis tão bem instalados, cheios de ouro e de prata, e rodeados de tanta beleza e tanta maravilha, qual a razão para fazeres a guerra e com ela destruíres centenas de cidades e milhões de seres humanos?; no sorver do ar frio, pensando «na transcendência que ditou este arrefecido anoitecer, nos instantes que sempre lhes inspiraram o sonho e nos dias que lhes [ou nos] serviram de berço»; na transfiguração da velha cidade; no sonhar acordado, lembrando-se dos dias que hão-de vir, mas vivendo «o sonho de uma história real onde o homem possa viver com dignidade»; na Semana Santa – mais doces e menos Páscoa, mais foguetes e menos solidariedade, mais crendice e menos fé, mais crucificados e menos ressurreição –, contrastando com as poéticas manhãs floridas de Abril, «este cheirinho à flor da laranjeira e este sol a cair a pique nas nossas mãos libertas para a vida», e onde haverá tempo para reflectirmos sobre quem somos, o que somos e o que fazemos; no declinar do exercício à reflexão, quando recusamos o desafio à consciência, continuando «a fazer do dia-a-dia o inferno onde o nosso próximo se derrete nas chamas do desprezo e do abandono; na Poesia onde, e citando Assis Brasil, se manifesta a criatividade do homem, sendo que o poema é apenas um mero objecto onde ela se realiza; na relação de “nós com os outros”, viajando «pelos caminhos da amizade, recuar uns tantos anos e fruir momentos vividos desse inesquecível tempo da tertúlia, das reuniões, dos debates à mesa do café, às vezes em almoços, abordando a temática literária», parando, «não só para reparar a vida, mas para dar à vida aquilo que ela [dele] mais pode esperar: um poema…»; no escrever para não morrer, habitando o interior das palavras rudes e incómodas, sendo indomável e insubmisso; no cirúrgico desabafo de «na infância tolhiam-nos a esperança, a razão e o sonho; na juventude amordaçavam-nos as palavras e atiravam-nos para uma guerra que era a guerra dos grandes interesses…», etc., etc… Riquíssimo e complexo lexical em que devíamos, de contínuo, ter usado aspas, visto que extraído da inspiração deste nosso extraordinário poeta e escritor, Álvaro de Oliveira.
           Nota máxima!