Friday, June 29, 2012

Da Conjura à Teoria Geral do Esquecimento


“Os monstros nunca são totalmente monstros, há alguma coisa de humanidade sempre dentro dessas pessoas, mesmo dentro daquelas que constroem monstruosidades, como dentro dos heróis há sempre um lado escuro. As pessoas são isso mesmo. (…) E é sobre isso que eu também tento reflectir neste livro”

José Eduardo Agualusa

Quando sondamos a nossa própria consciência (onde, por vezes, tal como nas personagens ficcionadas ou não de Agualusa, também gravitam monstros e heróis), a propósito da nossa costela de africanidade angolana – por aí vivermos a nossa infância e juventude, e aí terem nascido nossos irmãos –, empaticamente recorremos à leitura de Mia Couto (ainda que moçambicano), Luandino Vieira, Pepetela e José Eduardo Agualusa, sendo que este último faz o favor de ser nosso amigo há mais de vinte anos, altura em que o mesmo foi contemplado, por mérito próprio, com o Prémio Revelação Sonangol 1988, tendo como ponto de referência o romance histórico “A conjura”, um relato dos infaustos acontecimentos que se deram nessa sua terra (mas também nossa) de S. Paulo da Assunção de Luanda, no dia 16 de Junho de 1911: “Entre 1880 e 1911, na velha cidade de S. Paulo da Assunção de Luanda, estórias se passaram que a História não guardou. Estórias de amores e de prodígios; rumores que persistem em antigas canções. Nessa época, de turbulentos sucessos e mudanças, quando nas ruas de Luanda se cruzavam as tipóias dos nobres senhores africanos com as quibucas de escravos e os degredados vindos do Reino se entranhavam pelos matos em busca de fortuna, nessa época todos os sonhos eram ainda possíveis. A Conjura conta um desses sonhos. Talvez o maior…” – assim se pode ler na sinopse a este extraordinário e premiado romance, na altura publicado pela “Caminho”, em 1989. Constituíram então o júri desse prémio: Luandino Vieira, Gabriela Antunes, Arnaldo Santos, E. Bonavena e José Domingos. A partir dali, nascia assim um dos nomes mais importantes da nova literatura africana em língua portuguesa.


De lá para cá José Eduardo Agualusa, através da sua profícua actividade literária, ajudou-nos a viajar através da história da língua portuguesa, das suas origens à actualidade, percorrendo os diferentes territórios aos quais a mesma se vem afeiçoando; até ao âmago de Lídia do Carmo Ferreira, poetisa e historiadora angolana, misteriosamente desaparecida em Luanda, em 1992; até à maravilhosa história de amor secreto: a misteriosa ligação entre o aventureiro português Carlos Fradique Mendes – cuja correspondência Eça de Queiroz recolheu – e Ana Olímpia Vaz de Caminha, que, tendo nascido escrava, foi uma das pessoas mais ricas e poderosas de Angola; até a histórias que não são visíveis mas são visitáveis, através do sonho, do delírio, da vergonha, da fé, da pele, da memória, do feitiço, etc.; até à crueldade feminina que fascina os homens; até aos morros do Rio de Janeiro, local místico onde Zumbi, o mítico herói do Quilombo de Palmares, voltou para o tomar; até ao candomblé; até ao âmago de Félix Ventura, vendedor de passados falsos, cujos clientes são prósperos empresários, políticos, generais, enfim, a emergente burguesia angolana, que lhes falta um bom passado, sendo que o mesmo fabrica-lhes uma genealogia de luxo, memórias felizes, consegue-lhes os retratos dos ancestrais ilustres (um retrato similar do Portugal Contemporâneo); até ao renascimento de África, continente afectado por problemas terríveis, mas abençoado pelo talento da música, o sempre renovado vigor das mulheres e o secreto poder de deuses muito antigos; até à mulher que cai do céu durante uma tempestade tropical; e, finalmente, até à mulher portuguesa que, na Luanda de 1975, aterrorizada com a evolução dos acontecimentos (véspera da independência), ergue uma parede separando o seu apartamento do resto do edifício – do resto do mundo: Eu diria que este livro tem alguma coisa que ver, tem alguma ligação, na minha cabeça foi sempre assim, com «O Vendedor de Passados». «O Vendedor de Passados» é sobre identidades, sobre criação de identidades ou construção de identidades. E este livro tem também a ver com isso, tem a ver com o facto como as pessoas podem ou não mudar de identidade, escolher ou optar por outras identidades. E isso passa fatalmente pela memória e também pelo esquecimento. Neste livro há isso, há isso, há personagens que foram esquecidas, como a personagem principal, esta Ludovica, e há personagens que buscam o esquecimento como forma de redenção, então todo o livro joga com isso. Acho que para construir ou para reconstruir identidades, quase sempre é necessário um esquecimento – citamos de uma entrevista a este escritor da lusofonia. Nas obras de José Eduardo Agualusa são recorrentes os temas do colonialismo português e a exaltação da identidade crioula e do povo angolano. Tem uma relação com o crioulo muito íntima pois, para ele, esta palavra tem o peso de uma afirmação de raízes que contém em si todo um projecto de futuro, de possibilidade de afirmação de valores culturais angolanos e das culturas africanas e colonizadas em geral. As suas obras estão publicadas em mais de 20 países.
José Eduardo Agualusa (Alves da Cunha), romancista, contista, poeta e jornalista, com ascendência portuguesa, angolana e brasileira – e, mesmo dentro de Angola, com raízes em diferentes regiões –, nasceu na cidade do Huambo, no planalto central de Angola, em 13 Dezembro 1960. Estudou Agronomia e Silvicultura no Instituto Superior de Agronomia em Lisboa, mas rapidamente orientou a sua carreira para a escrita. É membro da União dos Escritores Angolanos. Como jornalista, em 1993, recebeu o «Prémio de Jornalismo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa» pela reportagem Lisboa Africana, em colaboração com Fernando Semedo e Elza Rocha. É casado, pai de dois filhos e divide o seu tempo entre Luanda, Lisboa e Brasil.
Beneficiou de três bolsas de criação literária: a primeira, em 1997, do Centro Nacional de Cultura para escrever Nação Crioula; a segunda em 2000, da Fundação Oriente, que lhe permitiu visitar Goa durante 3 meses e na sequência da qual escreveu Um estranho em Goa; e a terceira em 2001, concedida pela instituição alemã Deutscher Akademischer Austausch Dienst. Graças a esta bolsa viveu um ano em Berlim, e foi lá que escreveu O ano em que Zumbi tomou o Rio. É autor dos seguintes livros: A Conjura (romance, 1988), como anteriormente referimos, Prémio Revelação Sonangol; D. Nicolau Água-Rosada (contos, 1990); Coração dos Bosques (poesia, 1991); A Feira dos Assombrados (novela, 1992); Lisboa Africana (guia, 1993); Estação das Chuvas (romance, 1996); Nação Crioula (romance, 1998), Grande Prémio de Literatura RTP; Fronteiras Perdidas (contos, 1999), Grande Prémio de Conto da Associação Portuguesa de Escritores (APE); Um Estranho em Goa (romance, 2000); A Substância do Amor e Outras Crónicas (contos, 2000); Estranhões e Bizarrocos, com Henrique Cayatte, (infantil, 2000), Prémio Nacional de Ilustração e Grande Prémio de Literatura para Crianças da Fundação Calouste Gulbenkian; O Ano Que Zumbi Tomou o Rio (romance, 2002); O Homem Que Parecia Um Domingo (contos, 2002); Catálogo de Sombras (contos, 2003); O Vendedor de Passados (romance, 2004), Prémio Independent – Ficção Estrangeira, em Maio de 2007; Manual Prático de Levitação (contos, 2005); A Girafa que Comia Estrelas (infantil, 2005); Passageiros em Trânsito (contos, 2006); O Filho do Vento (infantil, 2006); As Mulheres do Meu Pai (romance, 2007); Nas Rotas das Especiarias (guia, 2008); Barroco Tropical (romance, 2009); Milagrário Pessoal (romance, 2010); Mweti e Omar (infantil, 2011); A Educação Sentimental dos Pássaros (contos, 2011); Fui para Sul – Os Desenhos de Laurentina (desenhos, 2012); Teoria Geral do Esquecimento (romance, 2012).

Muito mais haveria a dizer deste multifacetado escritor angolano, com raízes no Alto Minho – dado que seus pais aqui residem –, que à pergunta «Quem é José Eduardo Agualusa?» responde: «Quem eu sou não ocupa muitas palavras: angolano em viagem, quase sem raça. Gosto do mar, de um céu em fogo ao fim da tarde. Nasci nas terras altas. Quero morrer em Benguela, como alternativa pode ser Olinda, no Nordeste do Brasil». Um autor de referência para quem gosta de literatura! 

Monday, June 25, 2012

O MESTRE


(Recordando o nosso amigo/irmão Professor Doutor Amadeu Torres «Castro Gil» [1924-2012], no dia do lançamento do seu brado Quando os longes e o perto se emesmaram, nos Antigos Paços do Concelho, em Viana do Castelo)

Abadia d’Este...
Paradisíaco ponto de encontro
onde não há espaço
à literatice...
O Mestre fala mais alto,
não pela voz, mas pelo saber...
No palco da gastronomia,
conta em nós o querer
nostálgico, da confiança
e da esperança,
em voar para lá
do palco...


O Mestre fala mais alto,
não pela voz, mas pelo saber...
E as recordações servidas
“Em Louvor de Viana”,
recortadas pela beleza
do espaço bucólico,
em suave prazer?!...
Viana do Minho,
da Foz do Lima
ou de Caminha
contemplada de Braga,
ao correr do rio d’Este,
com pano de fundo,
a Serra do Carvalho...
O Mestre fala mais alto,
não pela voz, mas pelo saber...
A manhã vianesa,
a sombra da ponte,
sobre o Lima adormecido
em dia de “mar chão”,
a fé da Ribeira
na evocação
do Mestre...
Correndo nas águas
do rio d’Este...
As sardinheiras das Neves,
os Romeiros da Noite
à mistura dos devaneios
do poeta “trota-mundos”
recordando os tendeiros
e as gentes das “carrascas”...
É saudável
esta nostalgia
servida com gastronomia...
O Mestre fala mais alto,
não pela voz, mas pelo saber...

Viana do Castelo, 21 de Julho de 2003

Saturday, June 23, 2012

As esferas da justiça hoje


“O conceito de justiça distributiva tem tanto a ver com ser e fazer como com ter, tanto com a produção como com o consumo, tanto com a identidade e a posição como com a terra, o capital ou os bens pessoais”

Michael Walzer

Hoje, porque será sempre oportuno questionarmos sobre a igualdade complexa, tomamos a liberdade de exorcizarmos o nosso “subconsciente” com o pensamento do teórico (filósofo) americano Michael Walzer, que ao longo da sua vida tem desempenhado um papel importante no relançamento de uma prática, questão ética e focada no desenvolvimento de uma abordagem pluralista da vida política e moral, quando nos previne para o facto da igualdade, entendida literalmente, ser um ideal constantemente atraiçoado. Vai mais longe, ao afirmar que “homens e mulheres empenhados traem-no [ao ideal], ou parecem fazê-lo, mal organizam um movimento para a igualdade e distribuem poder, posições e influências entre si”. Tal prática, quando olhamos para a conjuntura e comportamentos presentes – e aqui convergimos, circunstancialmente, para febrilidade política portucalense, tão crente no passado imperialista, mas de costas viradas ao mar e de cócoras perante o capitalismo internacional (o da terra batida, mas queimada) –, parece que o “espelho mágico” da sociedade vai no sentido contrário ao compartilhar, dividir e trocar. Segundo o mesmo teórico americano, “a justiça distributiva é um conceito amplo” e deveria pôr o universo dos bens totalmente ao alcance da reflexão filosófica. É este pluralismo complexo, o particularismo da história, da cultura e da qualidade de membro – muitas vezes não se sabe bem de quê –, que condiciona a construção humana da justiça, diríamos nós, tão antiga como a própria filosofia.


Para Michael Walzer, as práticas testemunhadas pela história (sobre as quais nos recusamos a reflectir) revelam-nos que o imperialismo do mercado requer outro tipo de redistribuição que não é tanto uma questão de traçar um limite, mas mais de voltar a traçar esse mesmo limite. O que vemos aqui em causa é o predomínio do dinheiro fora da sua esfera inicial, referindo-se à capacidade que homens e mulheres ricos têm para negociar favores, comprar cargos públicos, corromper os tribunais e exercer o poder político. Infelizmente, este é um retrato tão actual na nossa sociedade (portuguesa, porque não) que, por se tornar vulnerável à negociação de favores, à “compra” de cargos públicos, à corrupção dos tribunais e ao exercício do poder político, contraria a justiça como norma do direito. E a justiça a que nos referimos difere tanto da virtude platónica como da virtude cristã, “e isto, de três pontos de vista: não é uma qualidade puramente interior mas diz respeito exclusivamente às relações com o outro; não inclui a relação do homem com o divino; não constitui necessariamente um ideal de perfeição: um cidadão justo não é, por isso, um santo!” – como escreveriam Élisabeth Clément, Chantal Demonque, Laurence Hansen-Løve e Pierre Kahn. No entanto, para nós, a justiça, em conformidade com as teorias de inspiração aristotélica – que tanto admiramos e nos inspiram –, deveria repousar num duplo princípio: o da igualdade e o da equidade, ou então, parafrasiando Luc Ferry e Alain Renaut, deveria ser concebida como um equilíbrio das liberdades individuais, temperada por instituições que garantem uma solidariedade social efectiva, e realizada no quadro do que se chama o Estado de direito. E isso está a ser desvirtuado na sociedade presente, agarrada cada vez mais ao conceito da propriedade privada, como oposição à propriedade social, colectiva. Daí, assistirmos à descapitalização dos bens públicos, por forma a aliviar a responsabilidade da máquina pesada do próprio Estado.
Outro problema que se coloca à sociedade contemporânea é o exercício da cidadania, ou seja, da qualidade de membro de qualquer comunidade, sendo que esse exercício é inalienável quando se reflecte sobre a justiça. Para Michael Walzer, o justo é identificado qualitativamente como igualdade complexa, o regime que, em termos formais, “significa que a situação de qualquer cidadão em determinada esfera ou com respeito a determinado bem social, nunca pode ser abalada pela sua situação noutra esfera ou com respeito a outro bem social”. Felizmente que vai havendo a consciência social de que o poder dos detentores de cargos é de difícil limitação. Se por um lado entendemos que o exercício de um cargo é uma razão importante para se exercer autoridade, por outro a autoridade dos profissionais e dos burocratas, mesmo quando qualificados, não é simpática. Sempre que podem, utilizam os cargos para estender o seu poder para além do permitido pelas suas qualificações e do requerido pelas suas funções. É por isso, dentro do hodierno princípio democrático e da motivação dos colaboradores, deveria ser tão importante que os homens e mulheres que se encontram submetidos à autoridade dos detentores de cargos, tenham voto na determinação da natureza daquelas determinações. E isso não acontece, porque os detentores de cargos pensam demasiado em si, num total desrespeito pela relação com os outros, nomeadamente aqueles que contribuíram para as suas entradas ou permanências no poder. Assim, mentir e contornar a justiça passou a ser uma prática comum nesta sociedade onde se instituiu a bajulação, a duplicidade e a manipulação, como princípios básicos do bem-estar de uns poucos. Diríamos, como escrevemos há mais de quarenta anos – nos nossos devaneios de uma juventude irreverente –, infelizmente, nesta terra de vivos “sacramentos”, quem governa são os mais governados.
Terminaremos com um apotegma – apenas teórico e dialeticamente bem formulado – de Paula Teixeira da Cruz, em Outubro de 2011: “Justiça tem um papel importante de criar confiança, que promove o investimento. Por isso, apesar da altura ser difícil, não se pode pô-la em causa”. Passados todos estes meses, das palavras à acção, nada foi feito para restaurar a nossa confiança, porque a justiça passou a ser um factor de incerteza. E aqui não nos estamos a referir apenas aos tribunais, mas a justiça como norma do direito, virtude, ou uma organização harmoniosa da vida social. Na sociedade presente, nomeadamente no que concerne à portuguesa, tal como diria Immanuel Kant, “a missão suprema do homem é saber o que precisa para ser homem”. Esse é o grande dilema!            

Friday, June 15, 2012

A descredibilização da política


“Já tenho idade suficiente para não ter tantas ilusões e não espero muito dos políticos”

José Miguel Júdice

A descredibilização da política está aí instalada e pela voz sonante dos que se serviram da política para evoluírem, tão só, financeiramente. Quando aqueles que se “masturbaram” através da política, e nos deixaram neste estado de coisas, vêm agora a terreiro libertar “cobras e lagartos” a propósito de conjunturas, imbróglios e cozinhados neoliberais, estamos seriamente acometidos pela conflitualidade dicotómica entre o Estado de Natureza – discernível através da razão – e o Estado de Guerra, sendo que o primeiro, segundo John Locke, leva-nos a um estado de perfeita liberdade e de igualdade “por nos encontrarmos inicialmente num estado de abundância, e não de escassez, e com um pressuposto implícito de que, muitas vezes, as pessoas estarão directamente motivadas para obedecer à lei moral", enquanto o segundo, consequência negativa do primeiro, para os já por nós denominados “forjadores da política”, assenta no direito de punir, ou seja, “o direito de fazer pagar pela sua transgressão aquele que transpõe os limites da Lei da Natureza”. Mas, por incrível que pareça, a transgressão moral é sempre atribuída aos mais fracos, aqueles que alimentam as máquinas pesadas do Estado, astuto na imunidade dos que detêm o próprio poder. Como escreveria Rui Tavares, mesmo sabendo nós que as “máquinas eleitorais” – forma de branquear dependências – se prestam ao engano e à mentira, “a democracia, mesmo para quem acredita nela, não resolve os problemas todos. O que a democracia faz é criar uma maneira que permite resolver problemas. Não é uma solução para tudo, mas uma forma de encontrar soluções em conjunto”. Daí, a nossa apreensiva cautela no que toca a defensores de indexações circunstanciais (nunca por culpa deles), esguios aos princípios de justiça – premeditadamente situados entre a carência e a abundância – defendidos por John Rawls: “Cada pessoa terá direito igual ao mais vasto sistema total de liberdades básicas iguais compatível com o sistema similar de liberdade para todos”. Antes pelo contrário, assiste-se ao proliferar de uma paupérrima dialéctica, porque assente na má formação (ética e) de carácter, milenarmente “moldado” pelas três disposições aristotélicas, porque por ele pensadas: “duas são perversas, a que é por excesso e a que é por defeito, e uma é a da excelência, a qual corresponde à posição intermédia”. Nos tempos que correm, infelizmente, é essa disposição intermédia (excelência) asfixiada pelas disposições do excesso e do defeito, forçando a negação da máxima, também ela aristotélica, de que “o Humano enquanto prático é princípio da acção”. Deveria ser no agir que o mesmo (Humano) se pode cumprir na sua possibilidade extrema, como ser ético ou, tendo em conta as palavras do político cabo-verdiano Abraão Vicente, reconhecer a política como arte e não como ciência: “estou há pouquíssimo tempo na política activa mas posso garantir-vos algo: tal como escreveu Otto Von Bismarck a política não é uma ciência, como supõe a maioria dos senhores, mas uma arte”. E esse propósito ou “disposição” falta a muitos dos nossos políticos, porque eticamente mal formados.


Muitos dos “reformados” da política – muito novos na idade e principescamente remunerados – utilizam hoje o “palanque” da palavra, por forma a serem os moralizadores da sociedade, que outrora ajudaram a desmoronar-se. Defendem a necessidade da austeridade, mas sem mexer nos seus salários; o aumento da produtividade e abaixamento de salários – referencial propósito de um (multimilionário assalariado) conselheiro de Estado, o nominal António Borges –, como se as palavras vociferadas fossem, por si só, extensivas à própria produtividade; o choque estrutural no emprego, mas sempre acautelando as condições do mercado e do perfil de empregabilidade; a condescendência “patriótica” da privatização dos bens públicos, por forma a livrar-nos, segundo as suas iluminadas mentes, do peso do Estado; a mão pesada para os pais, alunos e escola, fazendo lembrar disciplinas de antanho: “os alunos devem cuidar da sua higiene pessoal e apresentar-se com vestuário adequado, em função da idade, dignidade do espaço e das actividades escolares”; leis de compromisso, mesmo que se ponham em causa a estabilidade de instituições públicas, no que concerne à quantidade e à qualidade (exemplo da Saúde); a luta contra a corrupção, mas na prática envolvem-se (com secretas – para Catalina Pestana, qual sucedâneo da PIDE – à mistura) em favores a empresas e amigos, levando a que Rui Tavares, no Público de 4 de Junho, preconizasse a seguinte estigmatização: “Em Portugal existe o «estado superficial». É uma espécie de babugem na qual fermentam criaturas sem conhecimento, mas com «conhecimentos», sem cultura política mas com cunhas metidas por políticos, com um percurso feito entre lojas maçónicas manhosas e carreiras nas juventudes partidárias”. Se assim acontece somos obrigados a concordar com John Stuart Mill quando, um dia, nos alertou para o facto de eventuais ameaças à democracia representativa, sendo que uma delas “é a possibilidade de que o sistema encoraje pessoas sem valor ou inaptas a apresentarem-se a eleições”. Infelizmente, e cada vez vai sendo mais frequente, razão tinha Platão quando vaticinara que “as pessoas mais bem equipadas para governar serem aquelas que menos o quererão fazer. Ou, inversamente, as características que mais provavelmente conduzem ao sucesso na política – bajulação, duplicidade, manipulação – são aquelas que menos desejaríamos ver nos nossos governantes”. Tal como ao tempo de Platão, permitam-nos questionar: Como fazer para nos protegermos de líderes indesejáveis que cheguem ao poder?

A descredibilização da política está aí instalada, não por culpa de quem vota, mas por culpa de quem, apesar de se saber incapaz, teima em procurar a “estabilidade financeira” do seu próprio bolso. Por isso, tal como José Miguel Júdice, também nós já vamos tendo idade suficiente para não termos tantas ilusões e não esperarmos muito dos políticos. Ficando-nos pela nossa insignificância – e quiçá, assumida “ignorância” (?) política –, mesmo quando presumimos que a democracia é uma forma de tornar conhecidos os interesses ou preferências individuais, terminaremos postulando o provérbio latino, por nos acharmos indiferenciados na sabedoria da bajulação, da duplicidade e da manipulação, tão em voga neste “Estado” de graças: Quae sunt Caesaris Caesari!  

Saturday, June 09, 2012

Catarina Martins procura “Caminhos para a Cultura”


“Os prazeres intelectuais são de uma qualidade mais elevada do que quaisquer outros”

Milton

Aproveitando o ensejo de termos sido convidados para uma “auscultação/debate” com a deputada do Bloco de Esquerda (BE), Catarina Soares Martins, com 38 anos de idade, circunstancialmente, com a notação para os mais distraídos, licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, Mestre em Linguística e com frequência de Doutoramento em Didáctica das Línguas, ligada a quatro comissões parlamentares, de que destacamos, por nos aprazer profissional e culturalmente falando, a Comissão de Educação, Ciência e Cultura e Comissão para a Ética, a Cidadania e Comunicação, resolvemos hoje deambular pelos “Caminhos da Cultura”, tomando a preceito a conjuntura presente das políticas de austeridade, os modelos de financiamento e o estigma destas coisas da Cultura serem cada vez mais dispensáveis. Dizem-nos, com o maior desplante e/ou arrogância ignorante, que para o Governo a Cultura deve ser vista como um “projecto nacional”, mas o seu “valor” não pode ser medido “pelo montante” que lhe é atribuído no Orçamento do Estado, e que estar desempregado é mau mas que, como em qualquer crise, há perigo mas também há oportunidade de mudar de vida. Só por nos sentirmos equidistantes destes presumíveis e vociferados devaneios, é que não nos poderíamos furtar ao sentido crítico da questão, mesmo quando ouvimos da boca do Primeiro-Ministro, Pedro Passos Coelho, defender que “vale a pena apostar na Cultura como um importante activo nacional”, citando ao mesmo tempo a “Agenda Europeia para a Cultura num Mundo Globalizado”, da Comissão Europeia, e os “estudos internacionais” que sublinham o contributo da Cultura no “reforço das políticas de emprego”. Se, por um lado, pronunciamos a Cultura como o garante da identidade de uma nação, por outro, inflectimo-nos nos custos, na política de austeridade e nos modelos de financiamento, como se a Cultura e a Educação fossem o cancro da presumível estabilidade financeira do país. Como afirmaria a deputada Catarina Soares Martins, vivemos assim um tempo complicado!

Para o nosso Primeiro-Ministro, ao afirmar – na cerimónia de entrega do “Prémio Leya” a João Ricardo Pedro (de desempregado a escritor) – que o valor da Cultura não se mede pelo montante da sua conta no Orçamento do Estado e “que os domínios do espírito e da criatividade não pertencem a ninguém, e certamente não ao Estado”, dizendo-se salvaguardar a Cultura, “sem tentações paternalistas”, apoiando iniciativas públicas em “distintos equipamentos culturais disponíveis” e fomentando “iniciativas privadas”, pensaria ou estaria a tentar, a nosso modesto ver, desresponsabilizar-se das obrigações do próprio Estado que, nesta área, tem cortado “a torto e a direito”. Seria descortesia, ou talvez incongruência, da nossa parte se não disséssemos que tal “emasculação” – com tendência a agravar-se – já vem de anteriores governos. Porque não somos de memória curta, tomamos a foice do intelecto as palavras de Manuela Ferreira Leite, em 2002: «(…) não existe em Portugal uma política de cultura, mau grado a intensa campanha de propaganda que tem sido levada a cabo no sector». De facto, e continuando na paráfrase das suas palavras, havia e «há, isso sim, um debitar de considerações mais ou menos genéricas e mais ou menos teóricas, sem tradução prática na realidade». Recordaremos também quando, nesse mesmo ano, comutados com a eficácia na contenção das despesas, se extinguiu o Instituto Português de Arqueologia (IPA), fundindo-o na estrutura do Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico (IPPAR). Se havia coisas que, na altura, não funcionavam, era precisamente a perseverança e o dinamismo na defesa do nosso património cultural. Falavam – e continuarão a falar – mais alto os “vendedores de mercadorias culturais”. E aqui, não excluiremos as responsabilidades do poder local que muitas vezes não pretende imiscuir-se na relação pacífica com as instituições culturais.   
No diálogo que travamos – estando presentes representantes do Centro Cultural do Alto Minho (CCAM), Centro Dramático de Viana (CDV), Sociedade de Instrução e Recreio Darquense (SIRD), Associação dos Grupos Folclóricos do Alto Minho, diversas associações amadoras e nós – com a deputada Catarina Martins, foram abordados temas como as políticas de austeridade na Cultura; o Património, com as consequentes alterações da própria tutela; os modelos de financiamento; as direcções regionais para a Cultura que, tendo em conta o sentido depreciativo, não passam de uma espécie de “governos civis”; a Cultura como algo dispensável; a necessidade de não descorar da Cultura Tradicional; o problema da Arqueologia – quantas estações arqueológicas abandonadas, por falta de financiamento –; a emergência da Cultura Urbana Contemporânea; que perspectivas em termos de apoio financeiro, por forma as associações “culturais/profissionais” manterem programações e postos de trabalho; o papel do poder central, local e associações culturais amadoras; os espaços físicos e falta de um projecto global para a região, contrastando com a enraizada cultura em circuito fechado.
Senhores “forjadores da política”, sem o paradigma de sabedoria reaccionária, apenas se pede que não se “excitem” em complexos de perseguição ou rotulação oposicionista, quando se fala em Arte, Cultura ou Património. Que isto vai mal, vai!…

Para terminarmos, apenas uma reflexão magnificamente plasmada por Mattew Arnold: «a cultura é a busca da nossa perfeição total mediante a tentativa de conhecer o melhor possível o que foi dito ou pensado no mundo, em todas as questões que nos dizem respeito». Esse tem sido – e sempre será – o nosso exercício cognitivo.