Monday, October 31, 2016

A estrutura dos mitos em Claude Lévi-Strauss!...

«Dir-se-ia que os universos mitológicos são destinados a ser pulverizados mal acabam de se formar, para que novos universos nasçam de seus fragmentos.»

Franz Boas

Nesta nossa deambulação cognitiva de hoje resolvemos abordar uma temática que nos é muito cara, principalmente quando, por circunstâncias da “douta ignorância”, enveredamos por desafio irrecusável. Embora não seja isso que se pretende, inevitavelmente a estrutura dos mitos acaba por se interpor aos objectivos pretendidos. Daí, a necessidade de nos estruturarmos na «Antropologia Estrutural» em Lévi-Strauss.
Para Lévi-Strauss, nas últimas duas décadas, a antropologia parece ter-se afastado cada vez mais do estudo dos factos religiosos. Esta situação veio abrir caminho a amadores – denominação de Lévi-Strauss – de diversas proveniências que se aproveitaram do facto para invadir o domínio da etnologia religiosa. E dá exemplos com Tylor, Frazer e Durkheim, que apesar de estarem atentos aos problemas psicológicos; mas, não sendo psicólogos profissionais, não podiam manter-se a par da rápida evolução das ideias psicológicas, e menos ainda pressenti-la: Suas interpretações passaram de moda tão rapidamente quanto os postulados psicológicos em que implicavam (Lévi-Strauss, 2003: 237-238). Segundo o mesmo antropólogo, para se compreender o que é um mito, tem-se que se escolher entre a trivialidade e o sofisma. E há duas formas de ver os mitos: 1 – Alguns pretendem que cada sociedade exprime, nos mitos, sentimentos fundamentais, tais como o amor, o ódio ou a vingança, que são comuns a toda a humanidade; 2 – Para outros, os mitos constituem tentativas de explicação de fenómenos dificilmente compreensíveis: astronómicos, meteorológicos, etc. Para Lévi-Stauss, somos obrigados a reconhecer que o estudo dos mitos pode conduzir a constatações contraditórias. Tudo pode acontecer num mito; parece que a sucessão dos acontecimentos não está aí sujeita a nenhuma regra de lógica ou de continuidade. Qualquer sujeito pode ter um predicado qualquer; toda a relação concebível é possível (Lévi-Strauss, 2003: 239). Se queremos perceber os caracteres específicos do pensamento mítico, devemos pois demonstrar que o mito está, simultaneamente, na linguagem e além dela. Saussure, por exemplo, mostrou que a linguagem ofereceria dois aspectos complementares: um estrutural, o outro estatístico; a língua pertence ao domínio de um tempo reversível, e a palavra, ao domínio de um tempo irreversível. Ao distinguir-se assim a língua e a palavra por meio dos sistemas temporais aos quais cada uma pertence, poder-se-á afirmar que um mito diz respeito, sempre, a acontecimentos passados: “antes da criação do mundo”, ou “durante os primeiros tempos”, em todo caso, “faz muito tempo” (Lévi-Strauss, 2003: 241).


A substância do mito não se encontra nem no estilo, nem no modo de narração, nem na sintaxe, mas na história que é relatada. No fundo, o mito é linguagem; mas uma linguagem que tem lugar em um nível muito elevado, e onde o sentido se autonomiza de forma “fracturante” do fundamento linguístico sobre o qual começou a emergir. Assim, Lévi-Strauss equaciona três conclusões provisórias: 1 - Se os mitos têm um sentido, este não se pode ater aos elementos isolados que entram em sua composição, mas à maneira pela qual estes elementos se encontram combinados; 2 - O mito provém da ordem da linguagem, e faz parte integrante dela; entretanto, a linguagem, tal como é utilizada no mito, manifesta propriedades específicas; 3 - Essas propriedades só podem ser pesquisadas acima do nível habitual da expressão linguística; dito de outro modo, elas de natureza mais complexa do que as que se encontram numa expressão linguística de qualquer tipo (Lévi-Strauss, 2003: 242). Dessas três conclusões construímos duas consequências de elevada importância: 1.ª O mito, como todo o ser linguístico, é formado de unidades constitutivas; 2.ª Tais unidades constitutivas implicam a associação daquelas que estruturam a língua: os fonemas e os morfemas.
Poderemos também atribuir que as verdadeiras unidades constitutivas do mito não são as relações isoladas, mas feixes de relações, e que é somente sob a forma de combinações desses feixes que as unidades constitutivas adquirem uma função significante: o mito é formado por unidades constitutivas (na língua, os fonemas) que manifestam propriedades específicas – os “mitemas”; estes não são relações isoladas, mas “feixes de relações”, que só adquirem função significante sob a forma combinatória; não há, assim, significados precisos directamente conectados com certos temas mitológicos. Segundo Lévi-Strauss dá agora para compreender porque é que muitos estudos de mitologia geral produziram resultados desalentadores. Os comparativistas, para começar, quiseram seleccionar versões privilegiadas em vez de as considerar na totalidade. Depois, a análise estrutural de uma variante de um mito recolhido numa tribo e, às vezes, até numa aldeia pode apresentar um esquema de duas dimensões. Tudo isto porque há um desconhecimento dos sistemas de referência multidimensionais que qualquer estudo de mitologia geral, efectivamente exige (Lévi-Strauss, 2003: 253). Perguntou-se muitas vezes porque os mitos, e mais geralmente a literatura oral, usam tão frequentemente a duplicação, triplicação ou quadruplicação de uma mesma sequência. Para Lévi-Strauss, a repetição tem uma função própria, que é de tornar manifesta a estrutura do mito.
      Outro factor importante é que os sociólogos, que colocaram a questão das relações entre a mentalidade dita “primitiva” e o pensamento científico, resolveram-na, geralmente, invocando diferenças qualitativas no modo pelo qual o espírito humano trabalha aqui e acolá. Mas não puseram em dúvida que, em ambos os casos, o espírito se aplicava sempre aos mesmos objectos. Numa analogia ao que os tecnólogos se aperceberam: um machado de ferro não será superior a um machado de pedra porque um seria “mais bem feito” que o outro (ambos são igualmente bem feitos, mas o ferro não é a mesma coisa que a pedra), Lévi-Strauss afirma que talvez descobriremos um dia que a mesma lógica se produz no pensamento mítico e no pensamento científico, e que o homem pensou sempre do mesmo modo. O progresso – se é que então se possa aplicar o termo – não teria a consciência por palco, mas o mundo, onde a humanidade dotada de faculdades constantes ter-se-ia encontrado, no decorrer de sua longa história, continuamente às voltas com novos objectos.

Tuesday, October 25, 2016

O «entre mim & eu» em Márcia Passos!...

«A sua poesia, os seus poemas, são o eco do seu interior, são a objectiva do seu olhar… Ciente dos condicionalismos que a cercam, não se deixa abater e vai tentando tirar as pedras do caminho…»

Conceição Lima

Quando nos propomos em falar da consciência, enquanto conhecimento que qualquer ser humano possui dos seus pensamentos, dificilmente poderemos misturar o estado imediato ou espontâneo, que nos remete para a simples presença de nós perante nós mesmos, no momento em que pensamos, sentimos e agimos, com as debilidades físicas ou ilusórias dos nossos desejos e representações. Não é por acaso que muitos dos filósofos defendem que em todos os casos, a consciência é sempre igualmente consciência de si, tendo em conta a possibilidade que tem de se desdobrar sobre si própria. Para pensarmos o mundo que nos rodeia, não temos que necessariamente apelar à mobilidade física. Como diria Pascal nos seus Pensamentos: «O homem não é mais de que um junco, o mais fraco da natureza, mas é um junco pensante», levando-nos à “certeza” de que a consciência reflecte a essência do ser humano e se faz a sua miséria, mas constitui também a sua grandeza.
Toda esta “retórica” inicial para repudiarmos a velha pseudociência da “fisiognomia” assumindo, porque não, uma espécie de “vingança do espírito sobre a matéria”. Vem isto a propósito desse ser maravilhoso (de te fabula narratur) que se dá pelo nome de Márcia Filipa Barbosa Passos, com translações iniciadas, na cidade de Viana do Castelo, a 24 de Julho de 1995, cujos diagnósticos físicos a relevam para a circunstancial condição de ser uma jovem portadora de paralisia cerebral, lesão esta decorrente de um trauma obstétrico e que a deixou com graves sequelas a nível motor e de fala.


É esta mesma Márcia Passos, finalista do Curso Superior de Gestão Artística e Cultural (sonho concretizado e com perspectiva de estágio a curto prazo), que desde muito cedo, a forma mais clara que ela tinha de comunicar, de maneira a que a fosse entendida, era através do que escrevia; talvez daí o profundo gosto pela escrita, o seu maior escape, nos bons e maus momentos. E se um dia sonhou (em) escrever um livro, como forma de consciência como intencionalidade, fornecedora de sentido, se eventualmente o sentido for reconhecido como aquilo que faz um SER maravilhoso como a Márcia orientar-se para algo, que a transcende e a projecta para o futuro, «entre mim & eu» resulta da “não interioridade”, nem “coisa”, mas exterioridade, “relação com…”, intencionalidade: «Escrever é um escape que toda a alma perdida procura, / Escrever é encontrar água no deserto, / Um oásis ali, bem perto. / Escrever é deitar a cabeça na almofada / E sonhar, com palavras e letras a alma a cantar…» (p. 11). Até mesmo a aparente “tristeza literária”, apazigua-se com os desabafos da alma e do coração, porque fala de presença, testemunho, gratidão, sombras e passos, eternidade, palavras e argumentos: «…E eu, / Agora, / Sou mais e menos / Do que a sombra que atormenta / A escuridão. / Quem sou? / Apenas destino / Esculpido / Pelo correr do tempo (p. 15). A consciência como fundamento do conhecimento intemporal, transparência do SER perante si mesmo. Nada há de pura coincidência de si para consigo.
O SER maravilhoso em Márcia Passos transfigura-se e suplanta-se às fragilidades, porque é sol, menina e mulher, guerreira. Conscientemente guerreira: «…Quero que, quando morrer, / Ninguém chore, / Não quero flores / Nem fotografia na minha campa, / Porque… / Os ventos sopram, / As árvores abanam, / Os rios correm, / E verão que / A Vida / Está dentro da vida. / Quando morrer…» (p. 18). Sentido de vida para além da vida, numa convicção de que «A Morte dói, / Mas nunca me matará.» (p. 19). Não é para qualquer guerreira, menina-mulher, ter a “consciência” das debilidades templárias (enquanto transporte “de anima”) e afrontar a dor sem deixar de sonhar, a essência de quem vê mais longe: «Escreve sobre mim, / Escreve o destino, / Porque os traços imperfeitos do teu corpo / Já eu os sei de cor. / Escreve e cala-te, / Devora em silêncio os meus livros, / Pequenos regaços teus, / A natureza não pede mais nada do que somente / Os abraços, silenciados pelos momentos…» (p. 26). A sublimidade poética, sem aparências ou dissimulações, em Márcia Passos, faz da poesia, ainda que ela o questione, traços delineados na pele, processamento do poema, vida escrita, onde o amor nasce no regaço dos nossos peitos: «O amor esconde-se / Nos regaços, / Onde os abraços são afagos / Para acalmar o nosso rio, / E dar luz ao instinto, / Dar alma às palavras reveladas / Que saem e que falam de amor…» (p. 39).
Por contraditório à nossa formalidade de princípio, quando achamos que é um atentado explicar poesia e não senti-la (afrontando à boa maneira aristotélica, “o contingente opõe-se ao necessário”), ficar-nos-emos pelo predicado real que só pode ser entendido como um ser contraposto ao ser aparente. O que não é o caso de «entre mim & eu» em Márcia Passos, por onde perpassam passaportes para o quotidiano; mar dos poetas onde pescadores perdem vidas; mitos que permanecem; luzes e sombras; gritos em silêncio; liberdades que (nos) fazem esquecer as amarras do passado: «Liberdade é ler os livros que ninguém lê, / Olhar nos olhos de outro alguém, / Não ser perfeito, somente fazer o que lhe convém. / É livre quem nasceu para viver. / E quem, até por justa causa, / Não tem medo de morrer.» (p. 49); sopros do adeus; hinos à Mãe pela pena da “menina dos olhos tristes”; saudades; música para adormecer; lençóis íntimos das palavras: «…Aqui está o Entre Mim e Eu, / Só entre mim e eu é que escrevo, / Comigo não há mais nada na alvorada do dia, / Pois estou só, guiada pela mão da Poesia.» (p. 71); e formas de ser feliz. Tal como a Márcia, “Hoje, oiço o poema / De uma menina que tudo faz / Para ser Feliz.” Sabemo-lo e sentimo-lo, porque “de anima” (emanação quente pela qual foste criada) de mulher, em corpo de menina.
        Nota máxima!