Wednesday, December 23, 2015

«50 Anos / 50 Poemas» em António Carlos Santos!...

«O Poeta esboça o caminho, não tão linear, não tão geométrico assim… O leitor vai atrás deste trilho, sente-lhe o passo, mais rápido aqui, parado para contemplar e amar… ali. Nós, leitores, seguimos-lhe as pegadas!»

Lília Tavares
(In Prefácio, «50 Anos / 50 Poemas»)

Conhecemos o António Carlos Santos há mais de vinte anos, amizade sedimentada em «Café Nocturno», um entre alguns dos programas radiofónicos que realizávamos e apresentávamos numa das rádios locais vianenses, ao tempo, com a parceria especial, porque preciosa, do inesquecível Lucilo Valdez, companheiro de passos comuns, homem do teatro, da poesia (sim, também era poeta!) e da cultura.
Temos acompanhado, ainda que de uma forma discreta, toda a produção literária do António Carlos Santos, sorvendo-lhe a sua veia poética através dos “sons da alma”, porque inspirada no Amor, no mar, na saudade, nas metamorfoses e no renascer. Também lhe encontramos sombras, sofrimento, murmúrios, lágrimas, angústias, turbilhões e desassossego, expressivas introspecções que, logo, no imediato, são desnubladas pela presença afectiva da mulher, a quem o poeta diz ser «Anjo de asas soltas / gota de aconchego, / ventre e regaço, / fusão de sonhos, / e porto de abrigo…»; pelo respirar por inteiro «nas derivas / dum sonho novo, / tão fugaz / quanto eterno…»; pelo amanhecer e silêncio, onde «…nos eternizámos / neste chão despido / e inventámos um vento / para deixarmos estas manhãs incertas.» São essas as carícias e as flores deixadas por António Carlos Santos em «Versos de mel & fel» (2013) e «da Geometria do Amor» (2014).


Debruçando-nos agora sobre o seu mais recente brado poético, «50 Anos / 50 Poemas», anuência nossa ao assumido “acto de contrição” da apresentadora, Lília Tavares, quando se demarcou, e bem, pelos «Registos de um prefácio desnecessário». De facto, como temos vindo a afirmar, por convicção (ainda que subjectiva), a poesia não se explica, mas sente-se. O acto criativo, depois de impresso, deixa de ser do autor para ser de quem o lê. Tal como a Arte, a Poesia é uma actividade humana que consiste em um homem (ou uma mulher) passar aos outros, intencionalmente, a experiência profunda de emoções, espécie de conhecimento de si, através da clarificação daquilo que sente, mesmo quando atropela o tempo: «Escrevo com a tinta que mancha a saudade / em cada linha da palma da mão. / Atiro os silêncios para bem longe / onde rompe o curso dos ventos. / Atropelo o tempo para além das brumas / para me abandonar às sombras…» (p. 13).
Neste «50 Anos / 50 Poemas», António Carlos Santos percorre o tempo, (in)temporalizando-o, numa evolução alquímica: «Moro ao pé da areia / e fora do tempo. / Alquímico… rasgo invernos / na orla do deserto. / Bramo quebradiço e suspenso / nas bóias de chumbo / e na vertigem da liberdade / que marulha solta ao vento! / E morro na parte infinita / que brota das margens…» (p. 55); esotérica: «Sei de mim / dos meus retalhos / dos lamentos / dos abismos / das penumbras / dos instantes / das eternidades / e do mar que me quer…» (p. 63); e, lapidada: «Com o fogo e o vento cravado no peito / vou para onde cantam as folhas gritar a primavera.» (p. 75).


Por aqui perpassam ainda, para além das emoções trazidas dos seus anteriores brados, grãos de areia, voos, pó das estrelas, entre(vivências), sopros existenciais, estradas a percorrer, cinzas do tempo, luas desalinhadas e mares nascentes, carregar em dois tempos e dores de frio, por dores de um país, inspiração íntima em inspiradas preocupações de José Saramago: «Dá-me um país de Homens / sem mentiras… / Dói-me este frio! / Dá-me um país! / Não me dês uma mão vazia / e às vezes… nada.» (p. 25). Simplesmente sublime, porque sentir e dor nossa, também. Não é poeta quem quer, mas quem sabe conversar «com as palavras nuas / enquanto arde o silêncio / em lume passante.» (p. 45), como é o caso de António Carlos Santos, Poeta-Homem que nasceu em Angola em 1964, tendo vindo para Viana do Castelo dez anos depois. Frequentou a Escola de Santa Maria Maior (antigo Liceu) onde teve uma participação activa na Associação de Estudantes e em diversos eventos escolares. Frequentou o curso de História/Ciências Sociais na Universidade do Minho, onde fez parte da Associação Académica. Nesta altura colaborou na fundação do Grupo de Teatro Universitário.
Foi membro fundador da Tertúlia “Viana é Poesia”, e organizou os “Serões do Central” evento que reunia mensalmente três artes: Poesia, Pintura e Música.
Escreve poesia desde o Liceu e, nos últimos anos, foram incluídos poemas seus em Antologia(s) da Moderna Poética Portuguesa.
Segundo ele, debutou, na poesia, com “Versos de Mel & Fel” (2013) título bem recebido pela crítica, com assinalável sucesso de vendas. Publicou em 2014 “da Geometria do Amor” em duas versões: “da Geometria do Amor Poesia & Fotografia”, com a colaboração do fotógrafo vianense Paulo F. Correia, e “da Geometria do Amor Poesia”.
Tem realizado várias sessões de divulgação da sua expressão poética, de norte a sul do país – Viana do Castelo, Lisboa, Porto, Funchal, Guimarães, Vizela, Oliveira de Azeméis, Ovar, Maia, Joane, Granja entre outros – e em comunidades portuguesas no estrangeiro, nomeadamente em Matten e Stans, Suíça e em Toronto, Canadá.
Profissionalmente, António Carlos Santos está ligado ao ramo da distribuição alimentar, assumindo a Direcção Comercial de uma cadeia de supermercados e colabora com estruturas de organização e defesa do comércio independente.
       Desenganem-se aqueles que pensam que o pragmatismo está desprovido de qualquer inspiração lírica, poética. O António Carlos Santos vem demonstrar, precisamente, o contrário. Para bem da cultura e da poesia, de uma forma particular, bem-haja por isso!

Thursday, December 03, 2015

Poeta David F. Rodrigues apresenta “estes cantares fez & som escarnhos d’ora”!...

«[David F. Rodrigues] não se trata de um poeta “vulgar”: conciso na reprodução de imagens, contido no evoluir das palavras, quase tudo pode dizer com uma extraordinária economia de meios, a que não é estranha a distribuição dos elementos significativos poéticos pelo espaço da página»

Luís Fagundes Duarte
(In JL, Outubro de 1985)

Longe de nós embarcarmos nas presumíveis “masturbações” à boa maneira da capital deste “reino” à beira-mar plantado, onde os escritores e poetas se reescrevem uns aos outros, por forma a se sentirem visíveis e candidatos aos prémios que lhes permitirão usufruir de mais uns cobres e do estatuto de “superlativos relativos de superioridade”. Embora isso aconteça na capital, engalanada de “capelinhas”, infelizmente, também por cá, vai havendo alguns resquícios desta síndrome que, face à reduzida dimensão do burgo, se expressam em reduzida visibilidade. Este é o nosso escárnio inicial, antes de passarmos à poética expressão do David, assente na não menos poética expressão do apresentador d’estes “cantares fez & som escarnhos d’ora”, Professor Doutor Luís Mourão, quando afirmou, a dado momento, que a “poesia é uma coisa tão velha que talvez ainda não nasceu”.
Toda esta nossa retórica para dizermos que não é o caso (nem em tal o incluiremos) de David F. Rodrigues, Poeta que tanto apreciamos há mais de três décadas, altura em que relativizávamos a nossa “douta ignorância” (permanente e activa), ouvindo e lendo aqueles que achávamos os melhores entre os melhores, perscrutando-lhes a sensibilidade e a inspiração, em programas radiofónicos por nós realizados e apresentados. Na altura falavam bem alto “O Rito do Pão”, “Dilúvio de Chamas” e “O Que é Feito de Nós”, com prefácio de Mário Cláudio, outro dos tantos “tecelões de palavras” que tanto apreciamos; e as deferências a seu respeito no «10 anos de poesia em Portugal 1974-1984: leitura de uma década», esbate da produção poética dessa mesma década, por Manuel Frias Martins – ao contrário do que acontecia (acontece) com aquela geração mais recuada no tempo, e cujo humanismo, aliás, é continuado pelo optimismo naturalista de um poeta como David Rodrigues… (p. 133) –, quando se referia ao “O Rito do Pão”.


Considerações e/ou devaneios à parte, desta vez vamo-nos debruçar sobre o seu último brado poético «estes cantares fez & som escarnhos d’ora», apresentado publicamente no pretérito dia 25 de Novembro de 2015, na Sala de Actos da Presidência e Serviços Centrais do Instituto Politécnico de Viana do Castelo, pelo Professor Doutor Luís Mourão, um especialista na área.
Porque sempre achamos que a poesia não se explica, mas sente-se (deixando de ser do autor para pertencer a cada um de nós), a nossa deambulação “crítico-literária” vai no sentido de apenas discorrermos através da nossa sensibilidade e/ou “mimese”. Nada mais!...
Inspirado nas “cantigas de escárnio e maldizer”, assentes nos “sirventeses provençais morais e políticos, sátiras literárias e maledicências pessoais”, sempre arriscaremos em afirmar que David Rodrigues vem, através deste seu magnífico brado poético, demonstrar que continua a haver lugar para a poesia de escárnio, ou seja, “grande poesia política”. Aliás, como afirmou o ilustre apresentador, o escárnio está presente, omnipresente, só porque “somos o escárnio de nós mesmos” e uma poesia de escárnio começa pela própria poesia: «…não / não sou poeta / com licença / de porta aberta / por recusar inscrição / jóia e taxa correspondentes / exigidas pelos oficiais / destarte sem ofício / que todavia sempre pratiquei / sem a devida remuneração de vida…» (p. 13), mesmo quando «…o poeta que falava / pelos cotovelos calou-se (…) anda este orfeu / amigo meu / de corno tal / ou seja dor / que tanto vale / por causa dessa / sabida eurídice / que só visto…» (p. 16-17).
Desprovido – e porque não, despojado – de “cantigas”, David F. Rodrigues aguça, cirurgicamente, o seu olhar (e nosso) para as coisas que foram uma parte de ilusão, politicamente ilusória: «…elas são de facto / como eles as gaivotas / vejam só estado / imundo em que eles / como elas os políticos / deixam os altos poleiros / após terem aí recolhido / os louros acalentos do sol…» (p. 40) e que depois da «casa roubada / troikas à porta / troikas à porta / casa roubada / a moeda da troika / é troikada por miúdos / que depois troikam / cos graúdos da troika / na feira das troikas / fazem-se as troikas / troika por troika / fica-se sempre troikado…» (p. 48).


O tríptico deste magnífico livro, completa-se com o lado metafísico (no dizer sapiente de Luís Mourão: poesia de transformação semântica; máquina lírica, dado que o escárnio também passa por aí; a questão dos cantares terem uma cronologia muito precisa, e aqui não é explicada, etc.), espelhado nos poemas que «são como noites todos estes dias / e vale a pena recordar e repetir / não obstante este sol e céu azul / e uma breve foice de lua rosada / ainda a mostrar-se iluminada» (p. 54), qual negro existencial da nossa condição, creditada na esperança de uma ampla janela por abrir, no tempo e na intemporalidade: «já não ostenta legibilidade a máxima inscrita / na primeira e maior pedra à entrada do templo / durante séculos depois de decifrada foi lida / todos os dias até ser decorada pelos crentes / como única passagem para a vida eterna (…) chegada a hora irmãos do julgamento final / deus ao pesar na justa balança da sua justiça / os vossos pecados não deixará de ter / na devida conta este vosso sacro sacrifício…» (p. 57), mesmo quando David F. Rodrigues intenta em poetar que «prossigo e sempre seguirei / como já disse algures e repito / devagar por maus caminhos / esta é a terra eternamente / virgem concebida sem pecados / e castigos por atalhos e veredas / acompanhe-me assim quem deixar / não quer este paraíso perdido…» (p. 62). Para bem de todos nós, e para a poesia em particular, assim seja, por muitos e muitos anos.  
Apenas umas pequenas notas sobre o David F. Rodrigues, principalmente para aqueles que, inadvertidamente ou não, fazem “vista grossa” à presença efectiva e activa dum dos grandes poetas da nossa região e não só. Voltamos à velha questão da distância física, porque geográfica, da “capital dos forjadores de grandes vultos”, onde deambulam poetas “com licença / de porta aberta”, por não recusarem “inscrição / jóia e taxa correspondentes / exigidas pelos oficiais / destarte sem ofício”.  
Então, aqui vai: David F. Rodrigues nasceu em Mato (S. Lourenço), Ponte de Lima, em Março de 1949. Reside, desde 1985, em Viana do Castelo. Diz-se que, quando foi dado à luz, era dia de Carnaval. Foi necessário um médico, para o retirar, “a ferros”, do ventre materno. É licenciado (1974 em Filosofia e Humanidades (Curso Filosófico-Humanístico), pela Faculdade de Filosofia de Braga, da Universidade Católica Portuguesa. É mestre (1995) e doutor (2003) em Linguística, especialidade de Teoria do Texto, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa. Foi docente nos ensinos secundário (1972-74) e básico (2.º ciclo – 1973 a 1989) e no ensino superior politécnico (1990-2010). Exerceu o jornalismo em Viana do Castelo, correspondente do jornal Diário de Notícias. É sócio da Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto (AJHLP).    
Pena é a recorrência à edição de autor.
         NOTA MÁXIMA!

Saturday, November 28, 2015

A Escola Pública: regulação, desregulação e privatização!...

«Para quem imaginava que o decreto-lei 115-A/98 era muito mais do que uma simples remodelação formal da gestão escolar, os resultados alcançados, no final de dois anos, são frustrantes. Mesmo sabendo que o processo era difícil e que contava com muitos obstáculos, era possível ter feito mais. (…) No essencial a evolução do processo depende do que for feito, de substancial, para dar uma expressão clara e efectiva ao aumento das competências e recursos das escolas. E aqui os “contratos de autonomia” podem ser decisivos. Contudo não podem ser cometidos os mesmos erros que foram cometidos até agora, o que passa por uma clarificação dos objectivos políticos, um reforço das competências e da perícia técnica dos serviços da administração, a criação de efectivos serviços de apoio às escolas, e uma progressão cautelosa e sustentada…»

João Barroso

Tomando por base um texto de João Barroso «A Escola Pública: Regulação, Desregulação e Privatização» (ASA Editores, 2003), proposta reflexiva para a nossa crónica desta semana, expressaremos a nossa convicção de que a «Educação» debate-se, como parte integrante, na problemática da reforma e reestruturação da «Administração Pública» em geral. Ou seja, segundo João Barroso, é neste contexto que ela se promove, discute e se aplicam medidas políticas e administrativas, medidas essas que vão no sentido de alterar os modos de regulação dos poderes públicos, e neste caso particular, no sistema escolar. O campo privilegiado da intervenção do «Estado», nesta área, passa pelo domínio público ou privado.
Tendo em linha de conta que, em 1998, o Professor João Barroso esteve ligado à apresentação de um estudo sobre o reforço da autonomia das escolas, e sua aprovação, que culminaria com “Regime de autonomia, administração e gestão” das escolas (Decreto-Lei nº 115-A/98, de 4 de Maio), por certo que – face ao rigor – estaremos perante uma argumentação acrescida de responsabilidade científica e, quiçá, de modelar critério. Convém salientar o facto de que esta obra em análise (2003) poderá ser fruto dessa e de outras experiências similares no campo da coordenação e responsabilidade científica, nomeadamente na avaliação de modelos de gestão.
Contudo, Licínio C. Lima, cujos interesses de investigação têm-se centrado no estudo sociológico-organizacional da escola e de outras organizações educativas não escolares (esta no âmbito da educação de adultos) e na análise dos fenómenos de democratização e de participação na administração do sistema educativo e das escolas, “refuta”, algum do circunstancial “entusiasmo” patenteado no reforço da autonomia das escolas, após a aprovação dessa mesma regulação (1998), dado que – e segundo a sua opinião – a mesma “ocorreu, contraditoriamente, num contexto normativo marcado pela lei orgânica do Ministério da Educação de 1993”. Ainda, segundo este ilustre catedrático da Universidade do Minho, esta é uma lei que partindo «de pressupostos gerencialistas e modernizadores, recentralizou o poder através de mecanismos de desconcentração (direcções regionais e coordenações de área educativa)».


Para o professor Licínio C. Lima “não é possível decretar retoricamente a autonomia das escolas, promover alterações nas designações e composições dos órgãos de gestão e na estrutura organizacional, instituir a possibilidade da assinatura de contratos de autonomia de 1.ª e de 2.ª fases e, em simultâneo, manter inalterada a tradicional política centralista e a mesma estrutura orgânica do Ministério”. Ainda segundo este conceituado académico, se as políticas não mudam, “o aparelho centralizado da administração escolar permanece, ainda que possa registar alterações de morfologia”.
 Haviam passado cinco anos (e cinco ministros) desde que, em 4 de Maio de 1998, foi publicado o Decreto-Lei n.º 115/A-98 – que aprovou o «Regime de Autonomia, Administração e Gestão das Escolas e Agrupamentos de Escolas» –, quando João Barroso, em artigo publicado na revista Educação e Matemática (N.º 73 - Maio /Junho de 2003), questionaria o que havia mudado desde a aprovação do referido decreto: Se exceptuarmos a alteração formal dos órgãos de gestão das escolas (extensiva a todos os graus de ensino) e a criação dos agrupamentos, muito pouco mudou. Nessa altura, este ilustre professor admitia (tendo em conta que tal decreto era muito mais de que uma simples remodelação formal da gestão escolar) que os resultados alcançados, ao fim de dois anos da sua aprovação, eram frustrantes.
É com base nesta saudável discussão que concluiremos, passados todos estes anos, apesar do nosso consequencial “envolvimento” – por imperativo das novas portas que Abril abriu – nas políticas de educação, espelhadas no princípio da eleição dos órgãos de gestão das escolas e, só muito mais tarde, alargada à participação de não-docentes (estrato social no qual nos incluímos), estaremos em dizer que, ao longo das quatro dezenas de anos da “pós revolução dos cravos”, tendo em conta mesmo algumas tentativas – mesmo quando se decretam (Decretos-Lei n.º 139/2012 e n.º 152/2013) medidas, por forma a adoptarem um aumento da autonomia das escolas na gestão do currículo, por uma maior liberdade de escolha das ofertas formativas, etc. –, pouco ou nada se tem investido para minorar os problemas da Educação em Portugal.
Muitos têm sido os debates parlamentares, debates esses que, muitas vezes, levam à discussão questões de natureza sociológica, e onde são postos a relevo os mais díspares aspectos políticos e ideológicos, incidentes, também, na problemática da educação. Contudo, a nosso modesto ver, a adequação do sistema de ensino, face à complexa situação económica e política do nosso país, tem-se pautado apenas pelas intenções, mormente envoltas em “regulações” e “desregulações”, sempre com os olhos postos numa diversidade de fontes e modos de regulação. É o mesmo professor João Barroso que – em vez de falar de “regulação” – nos aponta para uma “multi-regulação”, já que “as acções que garantem o funcionamento do sistema educativo são determinadas por um feixe de dispositivos reguladores que muitas vezes se anulam entre si”.  
Um dos grandes problemas que, presentemente, nos liga a esta mesma problemática da Escola Pública e aos temas em discussão (regulação, desregulação e privatização), espelha-se no recurso sistemático a referências internacionais, às “lições que vêm de fora”.
       Só o tempo dirá se todos estes efeitos de contaminação globalizada (empréstimo); de hibridismo, reforçado pelo seu carácter ambíguo e compósito; e mosaico, espelhado por uma panóplia de iniciativas e normas, nos levarão a bom porto!

Friday, November 20, 2015

«Cogito ergo sum» em tempo de desafios e de terror!...

«O bom senso é a coisa do mundo mais bem distribuída; porque cada um pensa estar dele tão bem provido que mesmo os mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa não costumam desejar mais do que o que têm…»

René Descartes

Estávamos longe de imaginar que, após tantos disparates escritos nas “redes sociais”, em consequência dos atentados terroristas em Paris – sendo o mais grave um com um cartoon estampado com um yihadista e rostos de Catarina Martins e Mariana Mortágua, borrado a “diarreia mental” por um fulano, irremediavelmente irracional, com os seguintes dizeres: «Também cá temos meninas esganiçadas fabricantes de terrorismo» –, teríamos que quebrar o nosso premeditado silêncio, já que o vaticínio há muito se encontrava plasmado em «Baliza trágica de um naufrágio».   
Por isso, com base no Método da Dúvida, método esse que levou até à exaustão, a famosa frase Descartes «cogito ergo sum» – «penso, logo existo» – acabaria por não corresponder efectivamente ao verdadeiro sentido do seu pensamento, já que nas Meditações, permitir-se-ia a “corrigir” para «Eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeiro sempre que exposto por mim ou concebido na minha mente». Parafraseando Nigel Warburton, a dúvida metódica (cartesiana) implica a consideração de que todas as anteriores convicções são falsas. Só se deve acreditar em algo se se estiver absolutamente certo de que esse algo é verdadeiro, devendo a mais insignificante dúvida acerca da sua veracidade ser suficiente para o rejeitar.
Segundo René Descartes, para examinar a verdade é necessário, pelo menos uma vez na vida, pôr todas as coisas em dúvida, tanto quanto se puder. O seu pensamento tem origem no reconhecimento da autonomia de um sujeito que reivindica a autoridade única da razão em matéria de conhecimento. Considerado como um símbolo do espírito racionalista – inicia-se o declínio dos dogmatismos e afirma-se a omnipotência de uma razão consciente da sua capacidade de tornar o homem dono e senhor da natureza –, a sua filosofia alicerça-se em três objectivos fundamentais:
1. Formular o verdadeiro método «para atingir o conhecimento de todas as coisas na medida das possibilidades do meu espírito»;
2. Investigar os princípios de base que permitem a constituição de um sistema total do saber;
3. Preparar a via para «a mais elevada e mais perfeita moral que, pressupondo um conhecimento total das outras ciências, é o último grau de sabedoria».


No sistema de Descartes, existe um mundo físico regido pelas leis deterministas da Natureza e um mundo mental da consciência solitária. Os seres humanos, ao serem compostos de corpo e mente, equilibram-se – segundo Anthony Kenny, desconfortavelmente – entre os dois mundos. Ao contrário da maior parte dos pensadores anteriores ao filósofo francês, em que os animais diferiam dos seres humanos pelo facto de não serem racionais – embora se assemelhassem pelo facto de possuírem a capacidade da sensação – para Descartes os animais irracionais não passavam de máquinas. Para ele, um animal não poderia ter uma dor, embora a máquina do seu corpo pudesse levá-lo a reagir de forma semelhante ao de um humano, manifestando uma expressão de dor:
“Não descortino qualquer argumento que prove que os animais têm pensamentos, excepto o facto de, tendo ele olhos, ouvidos, línguas e outros órgãos sensoriais como os nossos, parece provável que tenham sensações como nós; e, estando o pensamento incluído no nosso modo de sensação, parece que lhes podemos atribuir pensamentos semelhantes. Este argumento que é muito óbvio, tomou posse da mente dos homens desde o começo. Mas há outros argumentos, mais fortes e mais numerosos, ainda que não óbvios para toda a gente, que insistem fortemente no contrário”.
Segundo Anthony Kenny, esta doutrina não pareceu tão chocante aos contemporâneos de Descartes – cujo pensamento se estruturava em dois grandes princípios: o de que o homem é uma substância pensante e o de que a matéria é extensão em movimento –, mas alguns dos seus discípulos, “dissimularam” algum confronto, ao afirmaram que os seres humanos, tal como os animais, não passavam de máquinas complicadas.
E como já uma vez escrevemos, numa das nossas anteriores crónicas, em jeito de conclusão diríamos que um dos aspectos principais do projecto e método em Descartes é a opção de usar a primeira pessoa no discurso. Ao usar a primeira pessoa nos seus textos, resulta no percurso que o levou a um caminho certo – mostrar o processo em vez dos resultados, como se chega ao conhecimento.
Através da “árvore do conhecimento”, organização hierarquizada do conhecimento, cujo modelo do método é fornecido pela matemática – modelo imperativo de Descartes para reformar todo o conhecimento –, o mesmo apenas deve ser construído através da razão humana.
Em suma, o mesmo filósofo propõe na tarefa de libertar a filosofia do cepticismo. A dúvida é apenas um instrumento em uso na investigação.
Perante os últimos acontecimentos de terror, do qual não excluiremos o verbal, a nosso modesto ver, teremos que repensar o facto se alguns dos discípulos de Descartes, ao “dissimularem” algum confronto com o Mestre, não teriam razão quando afirmaram que os seres humanos, tal como os animais, não passavam de máquinas complicadas.
        A irracionalidade de alguns permite-nos assim concluir!

Friday, November 13, 2015

Flores e memórias afectivas no “à conversa com” Afonso Cruz!...

«Um verdadeiro escritor, tão original quanto profundo, cujos livros maravilham o leitor, forçando-o a desencaminhar-se das certezas correntes e a abrir-se a novas realidades»

Miguel Real

À conversa com… é uma iniciativa da Biblioteca Municipal de Viana do Castelo, que visa promover, em torno do livro, o diálogo e a troca de conhecimentos com escritores contemporâneos, proporcionando a oportunidade de conviver de perto com os autores e a sua obra. Com esta iniciativa, que embrionariamente remonta a Outubro de 2009, cujo primeiro convidado foi o escritor angolano Luandino Vieira, pretende-se que seja um espaço de incentivo à leitura, de divulgação das obras dos autores da actualidade, de promoção da cultura e do conhecimento, e, sobretudo, de interacção entre o público leitor e os escritores.
Através desta mesma iniciativa, a noite de 6 de Novembro, Sexta-feira, foi ricamente preenchida com o escritor, ilustrador, cineasta e músico AFONSO CRUZ, servindo de mote para dois dedos de conversa o seu último livro «FLORES».


Abstraindo-nos do lado multifacetado de Afonso Cruz, nomeadamente no que toca às suas lides enquanto ilustrador, cineasta e músico, dado ser incomportável neste “ao correr da pena e da mente” esmiuçar todo o seu vastíssimo “curriculum”, teremos em dizer, principalmente para os mais distraídos, que Afonso Cruz, nascido em 1971 na Figueira da Foz, mudou-se ainda criança para Lisboa e, percebendo que tinha “jeito” para desenho estudou no Instituto Superior de Artes Plásticas da Madeira e na Escola de Belas Superior de Belas Artes de Lisboa. Actualmente vive com a sua família num monte alentejano onde, além de manter uma horta e um pequeno olival, fabrica a cerveja que bebe. Mas, a vida de Afonso Cruz nem sempre foi assim. Antes de decidir trocar Lisboa pelo sossegado Alentejo, vivia, literalmente, para viajar. Fazia filmes de animação e, com o dinheiro que ganhava, ia correr o mundo.
Publicou, até à data, treze livros de ficção: A Carne de Deus (Bertrand), em 2008, um thriller satírico e psicadélico; Enciclopédia da Estória Universal (Quetzal Editores), em 2009, um engenhoso e divertido exercício borgesiano com o qual venceu o “Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco”, e Os Livros que Devoraram o Meu Pai (Editorial Caminho), em 2010, livro infanto-juvenil vencedor do “Prémio Literário Maria Rosa Colaço” de 2009. A este livro seguiram-se, também em 2010, A Boneca de Kokoschka (Quetzal Editores) – “Prémio da União Europeia para a Literatura” – e A Contradição Humana (Editorial Caminho), vencedor do “Prémio Autores 2011 SPA/RTP”, escolhido para a exposição White Ravens 2011, menção especial do “Prémio Nacional de Ilustração”, Lista de Honra do IBBY (International Board on Books for Young People) e “Prémio Ler/Booktailors” na categoria Melhor Ilustração Original. Em 2011 publicou o livro O Pintor Debaixo do Lava-Loiças (Editorial Caminho) e em 2012 Enciclopédia da Estória Universal – Recolha de Alexandria (Quetzal Editores) e Jesus Cristo Bebia Cerveja (Alfaguara, “Prémio Time Out – Melhor Livro do Ano”, finalista dos prémios “Fernando Namora” e “Grande Prémio de Romance e Novela APE”). Em 2013 saíram os livros Enciclopédia da Estória Universal – Arquivos de Dresner (Quetzal Editores), O Livro do Ano (Alfaguara), O Cultivo de Flores de Plástico (Alfaguara), Assim, Mas Sem Ser Assim (Editorial Caminho) e Para Onde Vão os Guarda-Chuvas (Prémio Autores para Melhor ficção narrativa, atribuído pela Sociedade Portuguesa de Autores em 2014). Em 2014 foram publicados os livros Os Pássaros – dos Poemas Voam Mais Alto (APCC) e Capital (Pato Lógico). Neste ano de 2015 lançou o romance Flores (Companhia das Letras) e o livro infantil Barafunda (Caminho), em colaboração com Marta Bernardes e José Cardoso.
Os seus livros estão publicados em vários países.


Segundo a crítica, através do livro Flores, Afonso Cruz opta por uma rara narração na primeira pessoa (só presente em Os livros que devoraram o meu pai) e por um registo totalmente diferente de Mar, 3º volume da Enciclopédia da Estória Universal, editado em Novembro de 2014. A génese de Flores está em A boneca de Kokoschka (Prémio da União Europeia para a Literatura). É a partir de uma ideia mencionada nesse livro que o romance é construído. E de semelhante forma a Para onde vão os guarda-chuvas, Afonso Cruz utiliza histórias reais para construir um universo ficcional.


Nesta maravilhosa noite de “à conversa com” Afonso Cruz, evidenciou-se a perca de memórias afectivas e da necessidade de arranjarmos alguém que nos ajude a recuperar a memória. Se perdermos a memória o que resta de nós? A coexistência de quem nos ama e de quem não gosta de nós, tendo em conta que somos seres muito contraditórios; recordações de momentos especiais e não de rotinas; momentos fora das rotinas (mundo repetitivo), que nos levam a falarem de nós; “rotina da estupidez”, como forma de repetir comportamentos, sendo que a rotina acaba por definir o nosso carácter; conhecer bem o nosso corpo e não acontecer, dado os outros terem uma perspectiva mais ampla de nós próprios; erro de perspectiva, mostrando as pessoas de vários ângulos, acabando por destorcer a realidade. As vivências do quotidiano é que nos levam à escrita e à criatividade.
Afonso Cruz evidenciou ainda a sua empatia para com Platão, quando procurou falar do problema social em relação às virtudes, sendo que as mesmas têm que funcionar em simultâneo. Daí, a nossa moral continuar a ser medieval. Continuamos a cometer os mesmos erros e as mesmas atrocidades.
Obrigado, pela noite maravilhosa que nos proporcionaram.
         Há noites assim!

Monday, October 19, 2015

O caciquismo e «Os Predadores» em Vítor Matos!...

«São predadores de si mesmos nas guerras internas dos partidos. Os maiores engolem os mais pequenos nesta cadeia alimentar que vai do topo até à base…»

Vítor Matos

Tendo em conta que nunca fomos dados à moleza de nos deixarmos influenciar pelos “objectores de consciência”, presença diária nas programações de “lixo não reciclável” da TV, colocamos a nossa exigência de leitura, observação e reflexão, em algo que possua alguma credibilidade científica e intelectual. Não temos por hábito de beber em fontes de águas inquinadas, o que equivale dizer que retemperamos a mente com palavras e letras desparasitadas.
Depois de terem ficado para trás seis livros de leitura aturada, devidamente por nós anotada e comentada – a saber: «Mudar» de Pedro Passos Coelho; «Portugal na hora da verdade: como vencer a crise nacional» e «Reformar sem medo: um independente no Governo de Portugal» de Álvaro Santos Pereira; «E agora? A crise do Euro – As Falsas Reformas – O futuro de Portugal» de Pedro Adão e Silva; «Da corrupção à crise: Que fazer?» e «Janela do Futuro» de Paulo Morais –, concentramos a nossa atenção, desta vez, no livro «Os Predadores», do jornalista de política na revista “Sábado”, Vítor Matos, onde procura dar-nos a conhecer, numa investigação jornalística independente, tudo o que os políticos fazem para conquistar o poder e como os grandes partidos põem em perigo a democracia em Portugal.


Embora todas as investigações possam ter alguma carga de subjectividade, o que nos obriga a precavermo-nos de uma possível influência e/ou manipulação objectiva, não descoramos a nossa imparcialidade de análise aos conteúdos, que ora se apresentam neste livro, no dizer do autor, como “um impulso jornalístico de revelar as lógicas de funcionamento dos dois grandes partidos de poder em Portugal”, deixando de fora a pequena clonagem (PP) que deu forma e consistência à desarticulada Coligação de direita, mas tão bem tratada no último livro de Álvaro Santos Pereira, «Reformar Sem Medo»: Sei bem que uma das razões que motivou muitos dos ataques de que fui alvo ao longo de dois anos de governação prende-se certamente com a independência do Ministro e dos Secretários de Estado. Os lóbis nunca tiveram a minha simpatia. Os aparelhistas partidários também não. No meu Ministério os lóbis ficaram à porta. E os aparelhistas nunca encontraram na nossa equipa quem lhes desse ouvidos (p. 223). Daí, a sua demissão, para dar lugar a um dos aparelhistas, sem que ficasse à porta das Portas: Saí de Berlim convencido de que era muito provável que Paulo Portas reivindicasse para si o Ministério da Economia, não só porque essa era uma ambição sua desde o primeiro dia, mas também porque era preciso desviar as atenções sobre o dano que tinha sido causado ao país… (p. 330). Mais palavras serão desnecessárias acrescentar, para não entendermos a ausência de um dos predadores, nesta investigação jornalística que se diz independente         
Voltando à vaca-fria d’Os Predadores, sem que estejam à espera que venhamos a esmiuçar todo o seu conteúdo, damos-lhe o aval de alguma credibilidade da nossa parte, tendo em conta o nosso permanente alerta, em anteriores crónicas, para as chapeladas, manipulações e outras vigarices que os políticos fazem para conquistar o poder. De facto, tem razão o autor, quando afirma que “não vale a pena procurar culpados, porque não há inocentes. Quem faz política tem de jogar segundo as regras do jogo. E as regras são estas. Quem não as aceitar sai fora, é expelido como um corpo estranho. Quem fica tem de hipotecar alguma coisa pelo caminho”.
Já António José d’Almeida, aquele que viria a ser Presidente da República, escrevera em 1910, na revista Alma Nacional, que «o caciquismo não é um acessório do regime. É o próprio regime. Ou pelo menos está para o regime como o coração está para o organismo que bate: é o aparelho distribuidor da energia e da acção». E este cardápio de requisitos (os votos não têm dono, mas têm trela), sempre actual e eficaz, também se estende às regiões e às autarquias.
Nas últimas eleições legislativas deu para perceber – palavras com as quais corroboramos – que “a luta política é uma espécie de guerra e se as eleições são batalhas entre opostos, os lugares no Estado são os despojos a que o vencedor tem direito”. Se é que houve vencedor nas últimas legislativas. A dicotómica divisão (Esquerda/Direita), nomeadamente dos votos com trela, fez-nos reler a velha alegoria d’A MONTANHA PARIU UM RATO. Entretanto, o regime do caciquismo vai oxigenando a falta de ar dos predadores. Até quando? Não se sabe.
       A procissão ainda vai no adro! 

Saturday, October 17, 2015

LANÇAMENTO DO LIVRO «BALIZA TRÁGICA DE UM NAUFRÁGIO»

No princípio, criamos os céus e a terra. E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; E o nosso espírito se movia sobre a face das águas. E dissemos: Haja luz. E houve luz. E vimos que era boa a luz; e fizemos separação entre a luz e as trevas. E chamamos à luz Dia; e às trevas chamamos Noite. E foi a tarde e a manhã o dia primeiro. (Desconstrução genesíaca da nossa expansão sobre as águas e o naufrágio...). E começa a fazer-se luz!



       

No dia 30 de Outubro, esperamos por vós.
Estão todos convidados!

Friday, October 09, 2015

Exposição de escultura e fotografia “in memoriam” de José Dantas!...

«Durante anos atravessou a vida com as esculturas às costas, num saco de vagabundo ou de poeta, mostrando-as em qualquer parte onde houvesse alguém para ver, nos sítios que eram seus…»

Vítor Silva Barros

Apesar de não termos conhecido pessoalmente o artista limiano José Manuel Dantas de Melo (1 de Julho de 1948 – 13 de Fevereiro de 1975), vulgo Zé Micamé, dado o seu prematuro passamento, sempre ouvimos da boca daqueles que lhe eram mais próximos que “a sua compleição física, aliada a um temperamento rebelde, faziam dele um líder que todos aceitavam”. E, para além disso, tinha a elevada particularidade de, ainda que autodidacta, ser Artista.


Dado o facto de não o termos conhecido pessoalmente, e por forma a interiorizarmos o dicotómico “objecto ético-estético”, servimo-nos de um pequeno apontamento que, circunstancialmente, abrilhanta o pequeno prospecto (catálogo) da magnífica exposição que tem estado patente na Torre da Cadeia Velha, Ponte de Lima, de 4 de Setembro até 2 de Outubro: …Gostava dos pequenos, dos mais desprotegidos, das crianças, dos mendigos e até dos animais. / Não tinha medo de nada. Tratava o rio, as ruas e praças por tu, enfrentava a “Vaca Cordas” como se o touro fosse um bezerro. / Crescemos a admirar esse misto de generosidade e destemor. A liberdade que sempre sonhou tinha expressão na permanente inquietação. Lugares fechados e rigores de mestres não o faziam feliz. / O caminho que escolheu iluminou os melhores anos da sua curta existência. A arte e a liberdade chegaram quase ao mesmo tempo. / Na escultura pôde expressar o que lhe ia na alma e por lá encontrou formas de comunicar até aí impossíveis. Depois veio a fotografia. / Retratou tudo o que gostava e mais o que necessitava para sobreviver. Deixou a marca do seu enorme talento nos retratos que fazia. As crianças, os desfavorecidos da sorte e os animais voltam a preencher a sua vida. O que guardava da infância e dos primeiros anos da adolescência vem povoar a sua expressão artística. / Não viveu muito tempo. A vida mede-se, mas o talento não tem limites e é aqui que reencontramos o nosso amigo e todos voltamos a partilhar as inquietudes e os anseios de uma geração que o Zé personificou à perfeição… – descrição precisa e objectiva, facilitou em muito o nosso percurso estético-emocional, pela magnífica exposição.


Sem que tenhamos a soberba presunção de nos alvorarmos em “objectores de consciência” ou “críticos de arte”, tomamos a liberdade – assente no princípio de que o juízo estético e a produção artística andam de mão dada – de apreciarmos a Arte do Zé Micamé, com a consciência plena de que para se apreciar uma obra de arte não precisamos de trazer connosco seja o que for da vida, qualquer conhecimento das suas ideias e assuntos, qualquer familiaridade com as suas emoções. A criatividade do artista precisa sempre de público e, como um dia escreveria H. Gadamer, para o público, a arte criativa oferece «a experiência que melhor cumpre o ideal de um deleite “livre” e desinteressado». Foi desta forma livre e desinteressada que nos achamos no “direito” de percorrer “o elemento figurativo” em Zé Micamé, levando como único conhecimento relevante, e exigível, que o observador precisa de ter: sentido da forma, da cor e do espaço tridimensional.
Tomando como nossas as palavras de L. Tolstoi, quando afirma, escrevendo, que “os artistas são pessoas inspiradas por uma experiência de profunda emoção e usam a sua aptidão com palavras, ou desenho, ou música, ou mármore, ou movimento, para dar corpo a essa emoção numa obra de arte. A marca do sucesso nesse esforço é o estímulo da mesma emoção no seu público”. Se lhe subtrairmos o mármore e lhe acrescentarmos a madeira, o transbordar espontâneo de um poderoso sentimento emocional, esteve bem patente naquela magnífica exposição “in memoriam” de Zé Micamé. Tudo magnífico!


Não queríamos terminar esta nossa modesta opinião sem referirmos o extraordinário e irrepreensível trabalho de investigação, levado a cabo ao longo de mais de dois anos a esta parte, pela Dra. Catarina Lima, que de uma forma altruísta (só as pessoas bem formadas ética e intelectualmente, são portadoras desta humildade e princípio moral), procurou rodear-se dos apoios necessários, por forma a lhe dar um cunho institucional. Daí, o timbre da Associação «Comunidade Artística Limiana» como pano de fundo de um querer e sensibilidade pessoal: A Associação Cultural CAL agradece a todas as pessoas e entidades que possibilitaram esta homenagem ao artista, através da cedência de peças, fotografias, instalações, material de apoio, testemunhos e outros suportes que beneficiaram a exposição. Ainda um especial agradecimento à família e amigos do artista pelo apoio na realização do evento.


Sábado, 26 de Setembro de 2015, espaço-convívio deambulando por terras de António Feijó e Cardeal Saraiva, na companhia de Amândio Sousa Vieira, um dos mais ilustres limianistas que mais admiramos e respeitamos, viajando até ao âmago de Zé Micamé, o primeiro a usar calças de ganga quando os outros usavam de terylene, cuja obra revela, de facto, “uma elevada qualidade de alguém muito atento à realidade e às desigualdades sociais do seu tempo”. Enalteça-se quem assim viveu e deu testemunho do seu SER. Tal como nos confidenciara Amândio Sousa Vieira, afirmação com a qual corroboramos, esta exposição foi “um momento alto de cultura que muito dignifica Ponte de Lima”. Algo do melhor que se fez nesta área, nos últimos anos em Ponte de Lima, diremos nós.
NOTA MÁXIMA! 

Sunday, September 20, 2015

Mazarefes (Viana do Castelo, Portugal): Artur Rodrigues Coutinho, reconhecido publicamente com o título de Mérito Cultural e Social

Manhã de 19 de Setembro de 2015 (Sábado), vivenciamos um dos momentos culturais mais gratificantes, nomeadamente daqueles que exigem de nós o hábito da gratidão, enquanto disposição do ente, que nada nos poderia impedir de estarmos presentes. Impunha-se a construção evolutiva da nossa existência, à qual se une a essência do Ser, com a acrescida responsabilidade de fazermos o Elogio de circunstância pelo Reconhecimento Público de Mérito Cultural e Social ao Pe. Dr. Artur Coutinho, pela Associação Social, Cultural e Desportiva da Casa do Povo de Mazarefes. E dissemos: Quando nos pediram para falarmos do Pe. Artur Coutinho, nesta data memorável em que a nossa e sua Terra Natal, através da Associação Social, Cultural e Desportiva da Casa do Povo de Mazarefes, resolveram homenageá-lo como Cidadão de Mérito Cultural e Social, aliviamos a nossa apreensibilidade (apenas pela demora), reconhecendo de imediato que mais vale tarde do que nunca.

Artur Rodrigues Coutinho (Homenageado), Ana Margarida Silva (Câmara Municipal de Viana, Pelouro de Acção Social) e Francisco Barros (Presidente da Assembleia da União das Freguesias de Mazarefes e Vila Fria)

E para facilitarmos a nossa tarefa, recorremos a um texto que escrevemos há dez anos, numa coluna que mantivemos durante cinquenta e três semanas, no velhinho «A Aurora do Lima», onde manifestávamos a extrema dificuldade em falar do Pe. Artur Coutinho, sem nos deixarmos levar pelo profundo sentimento de proximidade física – porque ambos nascemos nesta ancestral freguesia de S. Simão da Junqueira de Mazarefes – e pelos laços de consanguinidade que “partilha” com a nossa alma gémea. Se outras razões não subsistissem, o respeito e a admiração que por ele nutrimos era mais que suficiente para plasmarmos esta meia dúzia de palavras.

Manuel Dias Viana Barreto (Presidente da Direcção da ASCDCPM), usando da palavra na abertura da Sessão Solene.

A sua acção em prol da comunidade extravasa o mundo das “futilidades”, a que muita “boa gente” se agarra, por inerência da falta de humanismo ou má formação moral. O Pe. Artur Coutinho não vive de futilidades, porque é humanista e Igreja, num sentimento universalista, à dimensão da “humanidade” civilizada e solidária. A trivial indiferença de uns tantos (ou quase todos) faz-nos prostrar, em reverência à sua dimensão espiritual. Mas, quem é este cidadão de mérito vianense (1998), que, em 1997, comemorou as suas Bodas de Prata Sacerdotais?
    
Público atento e solidário com o homenageado.

Artur Rodrigues Coutinho, filho legítimo de Manuel Ribeiro Coutinho e de Deolinda Rodrigues de Araújo Amorim, nasceu na freguesia de Mazarefes, Viana do Castelo, em 7 de Janeiro de 1947. Feita a instrução primária na sua (e nossa) terra natal, rumou aos Seminários de Braga onde cursou Humanidades, Filosofia e Teologia, terminando os estudos eclesiásticos em Outubro de 1971. Esses estudos foram mais tarde complementados, em ordem à habilitação para a docência, com exames de Introdução aos Estudos Históricos, de Literatura Portuguesa V e VI, na Universidade do Porto e de Linguística Portuguesa I, na Universidade de Coimbra, tendo também frequentado o Curso de História da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. No sector da preparação académica e actualização científica e pedagógica, participou em dezenas de cursos, seminários, simpósios, conferências, jornadas, e congressos.

Até que chegou a nossa vez de fazer o Elogio de circunstância ao Pe. Artur Rodrigues Coutinho.

Terminado o Curso Teológico estagiou durante alguns meses, como cooperador da paróquia de Balazar, Póvoa de Varzim, e, logo a seguir, nomeado director interino da Casa dos Rapazes, em Viana do Castelo, após o que foi ordenado sacerdote, em cerimónia realizada na igreja paroquial da Apúlia, em 9 de Julho de 1972. Foi com o maior orgulho e satisfação que assistimos à sua «Missa Nova», cerimónia realizada na Capela de Nossa Senhora das Boas Novas (Mazarefes), em 13 de Agosto de 1972.

Artur Rodrigues Coutinho agradecendo a homenagem que lhe acabavam de prestar.

Paroquiou de 9 de Setembro de 1972 a Agosto de 1978, as três freguesias de Argas (Arga de Baixo, Arga de Cima, Arga de S. João) e Dem, tendo publicado em 1980 o “Cancioneiro da Serra d’Arga”, uma obra de maior importância que reflecte a cultura e a ancestralidade de um povo (Literatura, Folclore, História, Toponímia, Etnografia, Humorismo, numa recolha de Quadras Populares). Esgotada a 1.ª edição, em Janeiro de 1982, é publicada uma 2.ª edição. Ali impulsionou a restauração das igrejas das três paróquias das Argas, onde também conduziu a reparação das capelas de Nossa Senhora da Rocha, de S. João, de Santo Antão, todas também nas Argas, e da capela de Nossa Senhora das Neves, em Dem.

Diana Correia, jovem estudante de Filosofia e fadista de circunstância, medalhada pela vereadora Ana Margarida.

Em 2 de Setembro de 1978, é-lhe confiada por D. Júlio Tavares Rebimbas, Bispo da Diocese de Viana do Castelo, a paróquia citadina de Nossa Senhora de Fátima, em regime experimental, que só em 1985 seria canonicamente constituída, e onde se mantém. Ocupando toda a faixa oriental da cidade, principal zona de expansão da mesma, ali convivem diferentes modos de vida, de cariz urbano e rural, de mistura com uma população deslocada e desenraizada, que vem ocupar os novos bairros habitacionais, em permanente surgimento. Foi esta realidade que o Padre Coutinho veio encontrar, e para a qual, com a dedicação que lhe é conhecida e reconhecida, se empenhou, desde o início, em procurar respostas adequadas. Escreveu um dia o nosso particular amigo Euclides Rios: «É digna de registo a profícua actividade apostólica, desenvolvida na modernização da catequese, na atenção dedicada aos movimentos de formação juvenil, na organização de diversas acções de formação cristã para adultos, na modernização e adequação das cerimónias litúrgicas, nos cuidados dispensados aos doentes e idosos e na construção e melhoria das estruturas físicas para desenvolvimento de todas estas actividades.
Mas a marca mais característica e identificadora da acção do P.e Artur Coutinho é o seu trabalho de solidariedade social que, sendo uma prova edificante do seu fervor evangélico, é, sobretudo, a demonstração de um carácter profundamente humanista, de um coração generoso e de uma grande abertura de espírito que o leva a fazer o bem sem olhar a quem».

Estávamos longe de imaginar que também seríamos contemplados com uma medalha de reconhecimento.

Mais palavras seriam desnecessárias, se não tivéssemos que acrescentar a este seu modo de SER, nasceram numerosas obras de beneficência e assistência social que conferiram à sua paróquia, e até à cidade, a verdadeira dimensão solidária que toda a comunidade cristã deveria ter. Um novo projecto, à dimensão do seu coração, tem-lhe tirado horas de sono, e nem as debilidades genéticas o fazem desistir de estar ao serviço dos outros, incondicionalmente. 
Em 1986, publicou «A Cidade de Viana, no Presente e no Passado», editado pela Paróquia de Nossa Senhora de Fátima. Tem coordenado outros trabalhos editados pela Paróquia como Devocionários e o Organigrama Paroquial, desenvolvido e explicado por ocasião dos 25 Anos da fundação da Paróquia. Em 1996, publicou o livro «Mosaicos da Serra d’Arga» que, praticamente se encontra esgotado. Em 1998 fez a 2.ª edição (revista e aumentada) do livro «A Cidade de Viana, no Presente e no Passado». Em 1999, com Natália Castelejo, publicou «Rugas... testemunho da geração, do saber, do amar...» para comemorar os 20 anos do Centro de Dia da Paróquia de Nossa Senhora de Fátima. Em 2000 é dada à estampa a 3.ª edição do «Cancioneiro da Serra d’Arga»; «Famílias com Rosto» em três volumes, publicados em 2005, 2008 e 2011; «Costumes e Tradições Populares», em 2012, entre outras obras que seria fastidioso aqui referir.

Outras medalhas seriam atribuídas a gente de trabalho e acção efectiva.

Por fim, não queríamos terminar, sem deixar de referir o seu livro «Abrindo Portas», numa edição esteticamente bem conseguida do Centro de Estudos Regionais (CER), por se tratar de um trabalho (premeditadamente) sequencial da sua assoberbada paixão pela etnografia, etnologia e antropologia social ou cultural. Embora saibamos das ligeiras diferenças de conteúdo, de objecto, do método e de orientações, estaremos em dizer que, como um dia aventaria Claude Rivière, essas diferenças assentam muitas vezes e/ou apenas nas próprias tradições. Se a etnografia corresponde a um trabalho descritivo de observação e de escrita; a etnologia, “ao elaborar os materiais fornecidos pela etnografia, visa, após análise e interpretação, construir modelos e estudar as suas propriedades formais a um nível de síntese teórica, tornando possível pela análise comparativa”; a antropologia acaba por se apresentar ainda mais generalizadora do que a etnologia. Tudo isto para concluirmos que as ligeiras diferenças de conteúdo se sintetizam numa única disciplina, o que nos leva à plena convicção (afirmativa) de que este trabalho do Pe. Artur Coutinho é por assim dizer um abrir de portas – e fazendo nossas as palavras de Fabíola Silva, no prefácio – “aos curiosos e dá as ferramentas básicas para que todos possam partir para a descoberta da porta, desde objecto tão banal, mas que na realidade é tão essencial no nosso quotidiano”.

Artur Rodrigues Coutinho ladeado pela vereadora Ana Margarida Silva. Terminava assim o Reconhecimento Público de Cidadão de Mérito Cultural e Social, pela Associação Social, Cultural e Desportiva da Casa do Povo de Mazarefes.

A sintetização a que aludimos (ou constatamos) neste «Abrindo Portas», está bem patente na minuciosidade descritiva empregue pelo autor, através de pormenores particulares (profusamente ilustrados) – e que por vivermos numa globalidade exasperada, os ignoramos ou desconhecemos – contidos no universal de uma porta: ferrolhos, batentes, aldravas, puxadores, fechaduras, chaves, dobradiças, trancas, protectores de cantarias, raspadeiras do calçado (vulgo “limpa-pés”), visores, gateiras, caixas de correio e argolas para prisão de cavalos. Artur Coutinho é um antropólogo cultural e social atento, levando-nos a olhar as portas de uma forma diferente.
Neste magnífico trabalho, Artur Coutinho fala-nos ainda d’A CASA: ESPAÇO E FRONTEIRA (Capítulo I), sendo que esta, segundo o autor, “representa o nosso espaço, onde nos sentimos a nós próprios com consciência ou sem ela, com tranquilidade, com serenidade, com segurança e a presença dos nossos que nos são muito queridos”; d’A PORTA NA BÍBLIA (Capítulo II), apresentando-se a mesma como um local singular e anunciador de algo que se passa dentro, qual alegoria ao facto de que “uma porta é sempre uma porta para o bem ou para o mal” ou – citando o próprio autor – “o acto de abrir a porta deve ser um acto de escuta, de proximidade, de intimidade, mas muitas vezes, distraídos com as coisas do mundo a fechamos para ela não se abrir com facilidade às coisas de Deus”…
E esta nossa interpretação, quiçá assente numa hermenêutica tautológica, ainda que o faça inadvertidamente, revestindo-a de alguma subjectividade da nossa parte (sim, as nossas interpretações são sempre subjectivas aos olhos dos outros), define a dimensão humanista e intelectual do Pe. Artur Coutinho.
Agora sim, e para terminarmos, diremos que o Pe. Artur Coutinho é membro da Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Alto Minho (AJHLAM); sócio fundador do Centro de Estudos Regionais (CER) de Viana do Castelo; foi director do Mensário “Serra e Vale”; e, presentemente, é director / fundador do jornal “Paróquia Nova”. Desde os seus tempos do Seminário que tem participado em trabalhos de pesquisa – com destaque para a futura “Monografia de Mazarefes” – e colaborado em algumas revistas.

E por aqui ficamos, porque nos falta arte e engenho para falarmos da verdadeira dimensão humana deste ilustre filho de S. Simão da Junqueira de Mazarefes!                 

Friday, August 21, 2015

O papel da religião perante a ciência e vice-versa!...

«A fé não era uma coisa importante na minha infância. Tinha uma ideia vaga sobre o conceito de Deus, mas as minhas interacções com Ele limitavam-se a momentos ocasionais de negociação sobre algo que eu queria que Ele fizesse por mim…»

Francis S. Collins

Um dia destes, quando alguém nos questionava a propósito da nossa opinião acerca de uma abrangente interrogação – plasmada em livro – «Porquê Deus se existe a Ciência?», feita por Manuel Curado (Org.), Alfredo Dinis (infelizmente, já desencarnado), Álvaro Balsas, Artur Galvão, Francisco Teixeira, Miguel Vieira, Paulo Alexandre e Castro e Sofia Reimão, condimentada pelo carácter polimórfico da experiência e multiplicidade epistemológica, assente na história das relações entre a fé e ciência, quando a mesma “está marcada por conflitos e equívocos de diversa ordem, mas também por consonâncias fecundas” (cit. Álvaro Balsas), veio-nos à memória o tema de uma conferência – promovida, em 2007, pela «Fundação Bracara Augusta» – com o título «O papel da religião na sociedade contemporânea perante a ciência e a explicação racional do mundo», conferência essa que decorreu no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, e na qual foram principais oradores (palestrantes) Alexandre Quintanilha (Doutorado em Física Teórica) e Anselmo Borges (Filósofo /Teólogo), sendo moderadores o ex-Reitor da Universidade do Minho (UM) e também catedrático, Licínio Chainho Pereira, e o então director do Departamento de Filosofia e Cultura (DFC) – e, presentemente, Professor Catedrático da Universidade do Minho, Manuel Gama, trouxe à discussão a problemática da dicotomia entre a Ciência e a Religião.
Na altura, pelo que nos foi dado constatar, o “confronto” nessa conferência saldou-se por um saudável equilíbrio de ideias, havendo mesmo, face à complexidade da vida humana, uma certa complementaridade e/ou articulação entre ambas. Se a Ciência abre novos caminhos de conhecimento, levada à capacidade de ser falsificada – ou refutada, porque admite a revisão e aperfeiçoamento –, a Religião, nomeadamente através da Bíblia, mesmo não sendo um livro de ciência, e tomando como referência, neste caso concreto, o cristianismo, ao desdivinizar o mundo abriu espaço à investigação científica (cit. Anselmo Borges). Por isso, a Ciência não pode (ou não deveria) reivindicar o monopólio da verdade, ou seja, não pode ter a exclusividade da racionalidade. Ficamos com a sensação, mesmo face às diferenças, de que a Ciência e a Religião são complementares, porque podemos chegar à articulação de outros saberes, outras vias, outros modos.


O extraordinário exemplo trazido pelo Professor Manuel Gama vinha-nos através de Francis S. Collins e de, na altura, a sua mais recente obra «A linguagem de Deus» (2007), quando perante a elaboração do primeiro esboço do genoma humano, se viu confrontado com a surpreendente complexidade da informação contida em cada célula do corpo humano, a ponto de tal complexidade, a fazer-se uma leitura efectiva desse código ao ritmo de uma letra por segundo, levaria trinta e um anos a realizar (Collins, 2007: 11). Tal exaltação da Ciência conduziria o então presidente dos Estados Unidos da América, Bill Clinton, à afirmação da sua reverência cada vez maior pela complexidade, a beleza e o prodígio da dádiva mais divina e sagrada de Deus (Collins, 2007: 12). Tendo em mente o “deslumbramento” deste ilustre estadista, estaremos em recordar o antagónico pensamento de Pierre Rousseau quando um dia afirmou que a Ciência é o grande Sol que, não só dissipa as trevas da nossa ignorância e ilumina os mais pequenos recantos do universo, como nos desvenda a sua harmonia incomparável. Tal linearidade do conhecimento experimental e racional leva-nos – a páginas tantas – a que este autor nos “obrigue” a reflectir na relação einsteiniana de equivalência entre a matéria e a energia. No fundo, um olhar físico sobre as estrelas e sobre o próprio universo. É neste tipo de contextos que Francis S. Collins nos chama à atenção para os fundamentalismos: Se há fundamentalistas religiosos que atacam a ciência como perigosa e indigna de confiança, apontando para uma interpretação literal dos textos sagrados como único meio fidedigno de discernir a verdade científica, alguns, do lado da Ciência, também dentro do seu fundamentalismo, formulam a fé como a grande escapatória, a grande desculpa para se fugir da necessidade de pensar e de avaliar as provas (Collins, 2007: 13). Por isso, face à impossibilidade da síntese potencial das concepções científica e espiritual do mundo, discutir-se a Ciência e a Religião requer alguma capacidade em incorporarmos no nosso dia-a-dia a validade dessas duas concepções do mundo, e não aquilo que Bertrand Russell consideraria como objecções intelectuais e morais, tendo em conta que, para ele, não há qualquer razão para supor que algumas das religiões seja verdadeira; e, os preceitos morais remontam a uma época em que se era mais cruel do que actualmente, e porque as religiões tendem a perpetuar as crueldades que a nossa consciência reprova.
Apesar de vivermos tempos em que se explora as “dúvidas” de qualquer um de nós, e onde somos postos à prova com rebatidos conceitos de que para fazer Ciência não é preciso Deus para nada, apercebemo-nos, no entanto, de alguma complementaridade ou, quiçá, simbiose entre a Ciência e Religião. Face à complexidade da vida humana, poderá ser uma “incongruência” não usar da tolerância de um cientista rigoroso que, para além dessa condição, goza, também, do “privilégio” de ser uma pessoa que acredita num Deus que se interessa por cada um de nós: Começarei por explicar como um cientista que estuda genética passou a acreditar num Deus ilimitado no tempo e no espaço, que se interessa pessoalmente pelos seres humanos. Algumas pessoas poderão pensar que essa atitude decorre de uma educação religiosa severa, profundamente instilada pela família e a cultura, e, portanto, impossível de evitar posteriormente. Mas de facto não foi isso que me aconteceu (Collins, 2007: 15).
 Apesar das objecções contra a religião, apontadas, de um modo particular, por Bertrand Russell, e da enorme complexidade que as separa – falar de religião é muito mais complexo do que falar de ciência (cit. Anselmo Borges) – há uma certa articulação entre ambas, tendo em conta que todos os homens relacionam-se (ou deveriam relacionar-se) com o todo. E o todo só é possível, conscientemente, com a necessária bipolarização: a ciência por um lado, vocacionada para a exploração da natureza; e o domínio de Deus (Religião) que se situa no mundo espiritual, numa esfera impossível de explorar com as ferramentas e a linguagem da ciência. Deve ser perscrutado com o coração, a mente e a alma – e a mente terá de descobrir uma maneira de abarcar ambos os reinos (Collins, 2007: 14).
         Apesar desta nossa modesta explanação, carregada aqui e acolá de subjectividades, a pergunta mantém-se: Porquê Deus se existe a Ciência?