Thursday, May 31, 2012

POEMA SEM FIM (1994-2006) Uma excelente antologia poética de Amândio Sousa Dantas.


“Todos os dias, devíamos ouvir um pouco de música, ler uma boa poesia, ver um quadro bonito e, se possível, dizer algumas palavras sensatas”

Goethe

Inspirados nas palavras de Goethe, “precipitamos” hoje a nossa deambulação cognitiva pela poesia, sem descorarmos a magia da música – qual The Buddah Experience nos levou ao sublimar da meditação, aliado à poesia – que serviria de fundo a este discorrer da pena e da mente. Já lá vão alguns anos, quando numa revista da região lançávamos pequenos “brados da nossa pena” (assim era o título da crónica), que divagamos a propósito das grandes antologias e dos nossos poetas. Desabafaríamos então que as grandes antologias poéticas sempre mereceram da nossa parte um respeito quase sagrado, principalmente quando o produto final reproduz uma certa cumplicidade entre o autor e o leitor ou entre o autor/antologiador e o leitor. Quando esta simbiose não é alcançada, porque (antologias) elaboradas por conceitos meramente científicos, essa cumplicidade esfuma-se na imprecisão do gosto de quem as faz ou elabora. Na altura desse mesmo brado, também expressaríamos a nossa convicção de que as antologias ganham cada vez mais importância, principalmente pela possibilidade de se estabelecer uma relação de espaço, tempo, filosofia de vida e personalidade do interveniente, o rosto do pensamento, da inspiração e da “voz funda de sermos”, como um dia escreveria Conceição Campos, poetisa pessoana, que o Lethes tem inspirado. Essa “voz de sermos” tem que, forçosamente, despertar em nós e nos outros a supracitada cumplicidade, goste-se ou não de quem escreve ou de quem brada as afeições nunca mentidas. Tudo isto para dizermos – envoltos numa profunda cumplicidade idealista, e sobretudo de gosto – que temos em mãos (e lemos) uma excelente antologia poética de Amândio Sousa Dantas, com o sugestivo título POEMA SEM FIM (1994-2006), a fazer lembrar o conceito do eterno retorno… Assim são os poetas e a poesia, porque intemporais.

Amândio Sousa Dantas é um poeta na verdadeira acessão da palavra, dado podermos beber das suas próprias palavras um profundo sentimento existencial: Há em todos nós uma morada existencial, assim, pelo que sei da minha experiência, a interioridade do poema é instrumento comum (e solitário) da própria vida. Não se consegue ver o essencial sem os mistérios da existência: Ora levantando os olhos face às injustiças, ora com um olhar conciliador à justa decisão. Comungamos profusamente desta precisão de “afinal, todos vivemos com o fogo da memória”. Nesta excelente antologia (reiteramos a adjectivação, porque gostamos do poeta e da sua poesia) percorremos doze anos de primordial inspiração, degustada ao longo de sete – para nós, número místico e extremamente positivo – brados: Perfeito chão de voar (1994); Sombras e ramos sobre o peito (1997); Infinita é toda a nascente (1998); Há uma eterna liberdade (2000); O instante é a tua face no poema (2001); Pousado no silêncio (2003); e No ombro o orvalho (2006). Parafraseando Amândio Sousa Dantas, doze anos pode parecer o percurso curto de uma vida, “mas o trabalho poético é um processo lento, e o tempo é sempre maior do que aquilo que nós pensamos”. De facto, e aqui continuamos a concordar com a introspecção deste inspirado poeta limiano, esta antologia reflecte o percurso do seu autor, o seu comprometimento com aquilo que é a sua própria vida e o seu desejo de comunicar com as coisas do mundo e de preservar a sua lealdade aos valores maiores. E aqui, não excluiremos o confronto entre o poeta e a natureza: Segue a natureza / indiferente ao que dela nós vemos / a natureza não pensa nada / tudo que cria é um mistério das suas águas / nós damos nomes às coisas da natureza / porque a nossa fala aponta para as coisas / pode o poeta amar a luz do crepúsculo / mas a luz naturalmente não ama o poeta / porque a luz é somente a luz nos seus olhos / o poeta sonha pela natureza / o que com indiferença a natureza lhe dá / (e a natureza está ali em cada dia) / e um dia deixamos de a ver / mas esse é o dia em que a natureza se conhece (p. 25). Tudo tem lugar na alma do poeta Amândio Sousa Dantas: o supremo tempo, como aconchego; o perfeito chão de voar; o rio (de mágoa ou de alegria) que, por vezes, nunca se chega a atravessar; os olhos que estremecem pelo brilho do silêncio; o voo do pássaro, indiferente ao céu que o guia; a erva crescendo por entre as pedras; o som do mar escutado pela noite; o brilho do coração como pedra preciosa; a dádiva de um poema, nem que seja para morrer amanhã; o falar docemente da hora do silêncio; o termos de voltar ao princípio; a água como o fogo do poema; o rosto fatigado que se quebra no espelho; a luz e a sombra, incluindo sombras e ramos sobre o peito; a morte dos trabalhadores por altas construções; o Cristo pregado em verde Cruz, de pedra nua ao frio e ao vento; o tempo como matriz de distância, sem se o querer perder; a luz da eternidade; o louvar do amor em cada dia; os olhos perdendo o brilho, pelo envelhecer do rosto; a Terra como morada suprema; o regresso dos pássaros à morada da árvore; os olhos pousados nos oceanos; a sabedoria como um dom que vagueia pelo espírito; o poeta como um ser desamparado; o Deus silencioso, onde nenhuma oração chega a seus ouvidos; a emigração, onde toda alegria é voz do seu regresso; a triste luta contra o medo e a morte; a irmanação do religioso e do profano, quando se canta e dança indiferentes às canseiras do mundo; a eterna liberdade; o mistério do poema e as suas cores; a luz e a poesia como enigmas; a oração à Terra; os deuses já não invocados pelos poetas; o espírito das coisas, amando a realidade de todas as metáforas; a África dos poentes imensos e dos pássaros nobres; a lisura onde o silêncio vai estendo as suas redes; os poetas, onde poucos são os eleitos e muitos os esquecidos; o não voltar às mesmas águas; a realidade, onde todos se afadigam pela hora do crepúsculo; o chão do tempo, com o silêncio no olhar; o ver o mundo por seus atavios; a pátria de que muitos não querem ouvir falar; o abrir de uma página sob a luz da memória; o haver de um tempo onde se morre devagar; o olhar que nos persegue a vida toda; o mar de todas as aparências; o raro desejo de pousar os olhos na erva, e ver na erva o orvalho; o poema sem fim: Há um poema e um rouxinol / por sua árvore / e que canta até a hora da nossa noite, / como o amor que levou a minha alma. / Há uma alma infinita / Como há um poema sem fim (p. 355); o meditar no tempo; a dor que vagueia pelo mundo, sendo que a poesia segue a dor lado a lado; a língua como um berço; o aprender a descobrir tudo pela ausência; o agitar dos ramos do poema; a tímida espada trazida da infância; o escutar das canções das mulheres do campo; o barco que se afunda perto da sua margem: Agora ninguém vê aquele barco pelo seu navegar / só as águas o levam para seu fundo / longe dos olhos dos homens / como se fosse um peixe a morrer no seu meio. / Só o poeta pensa ainda salvar o poema (p. 517). Felizmente, para bem de todos nós, o poeta teima sempre em salvar o poema.      
Terminaríamos de igual forma, como a uns anos atrás: Os poetas e a poesia moram ao nosso lado e talvez não tenhamos dado por isso. A bem da poesia: Vede-lhe a fronte, onde transborda o génio!             

No comments: