Por se tratar de um
tema tão actual, e porque continuamos de volta da nossa impreterível (porque
necessária ao nosso consciente) investigação a propósito do “Eugenismo em
Portugal” (nossa décima terceira obra a publicar, mas primeira de cariz
científico), resolvemos partilhar convosco a leitura e interpretação – em jeito
de recensão crítica, muito pessoal – de Richard Charles Lewontin, filósofo da
ciência, no que concerne à sua obra «Biologia como ideologia: a doutrina do ADN»,
publicada em 1998, pela editora “Relógio d’Água”. Esta obra é baseada nas
conferências Massey de 1990, com o mesmo título, transmitidas em Novembro desse
mesmo ano, como parte da série “Ideias”, da rádio CBC. Por ser considerado o
pensador evolucionista mais influente e um dos biólogos mais celebrado da
actualidade, não admira que esta reflexão acabe por reflectir, como se pode ler
em sinopse, o seu pendor de análise dos falsos caminhos pelos quais a ideologia
científica moderna nos conduziu. E começaremos por dizer que para Richard
Lewontin a ciência, à semelhança de outras actividades produtivas, como o
Estado, a família, o desporto, apresenta-se-nos como uma instituição social
completamente integrada e influenciada pela estrutura das outras instituições
sociais. Ao apresentar-se como uma instituição social, a ciência define-se,
assim, por um conjunto de métodos, de pessoas, um corpo de conhecimentos a que
chamamos científicos, mas está separada do quotidiano de cada um e/ou das
forças que governam a estrutura da própria sociedade. Os resultados científicos
são influenciados por predisposições derivadas da sociedade em que vivemos.
Para reforçar esta ideia, temos de ter em conta que os cientistas estão imersos
numa família, num Estado, numa estrutura produtiva, e esse assumir científico é
moldado pela sua experiência social.
Ainda segundo Richard
Lewontin, a ciência desempenha duas funções: a primeira assenta na manipulação
do mundo material, que se revela na construção de um conjunto de técnicas,
práticas e invenções, produzindo coisas novas e transformando as nossas vidas; a
segunda é a função de esclarecimento. Esta função relaciona-se muitas vezes com
a primeira (manipulação do mundo material). Se por um lado os investigadores
transformam o modo material da nossa existência, por outro, procuram
constantemente explicar porque é que as coisas são da forma como são. Trata-se,
no fundo, da afirmação que estas teorias acerca do mundo devem ser produzidas
com a finalidade de transformar o mundo através da prática. Assim, face à sua
adaptabilidade, a ciência pode substituir a religião – e mais não adiantaremos,
para não ferir susceptibilidades –, enquanto principal força legitimadora na
sociedade moderna. Outro factor relevante nesta obra é que Lewontin afirma que
os seres vivos serão determinados, em primeiro lugar, por factores internos: os
genes. Estes serão determinantes para a aptidão individual na resolução de
problemas durante a existência e garantia da matriz de cada um na futura
descendência. Os genes estão na determinação individual, como os indivíduos na
determinação das colectividades. A estrutura social passa a ser o resultado do
conjunto de comportamentos individuais. Se os genes fazem os indivíduos e estes
fazem a sociedade, logo, os genes fazem a sociedade. Por outro lado, os
desafios colocados pela ideologia científica moderna exigem uma nova teorização
da natureza humana. Vemos que os problemas da saúde e da doença são localizados
no indivíduo, tornando-se este num problema para a sociedade, em vez de ser
aquela a tornar-se um problema para o indivíduo. É este peregrinar que assente
em relações económicas simples, encobertas como factos da natureza, orienta e
condiciona toda a investigação biológica e tecnológica nos tempos
contemporâneos.
Perante a questão se
“estará tudo nos genes (?)”, Lewontin confronta-nos com a contradição entre a
igualdade pretendida pela nossa sociedade e a observação de que grandes
desigualdades existem. E para refutar a objecção a uma sociedade desigual, tem
sido desenvolvida uma teoria biológica da natureza humana, defensora da ideia
segundo a qual existem certas semelhanças congénitas entre todos nós na medida
em que as nossas diferenças estão codificadas nos genes. Assim, surge a
ideologia do determinismo biológico: que nós nos diferenciamos em capacidades
fundamentais devido a diferenças inatas, que tais diferenças inatas são
herdadas biologicamente, e que a natureza humana garante a formação de uma
sociedade hierárquica. Contudo, o autor refuta esta ideia quando afirma que não
temos nenhuma razão a priori para
pensar, por exemplo, que existe diferenciação genética entre grupos raciais no
que respeita a características como o comportamento, o temperamento a
inteligência. E, também, não existe qualquer prova de que as classes sociais se
distinguem nos seus genes, excepto na medida em que a origem étnica ou raça –
não gostamos do termo, dado que para nós só existe uma raça… a humana – possam
ser usadas como forma de descriminação económica. Chega mesmo a ser um
contra-senso, quando os ideólogos do determinismo biológico afirmam que as
classes mais baixas são biologicamente inferiores às classes superiores (para
nós, puro conceito eugénico). A seu ver, a biologia moderna é caracterizada por
um grande número de preconceitos ideológicos. Um dos principais preconceitos
prende-se com a natureza das causas, visão que se torna mais evidente nas
nossas teorias acerca da saúde e da doença.
Richard Lewontin
alerta-nos para o facto da crença na importância da nossa herança na
determinação da saúde e da doença ser o projecto sequencial do genoma humano,
que assenta num programa de muitos biliões de dólares e que mobiliza biólogos
americanos e europeus. No fundo, torna-se num grande consumidor de dinheiros
públicos. Por isso, as causas – primárias e secundárias – não se remetem apenas
ao âmbito científico, dado que os aspectos sociais, culturais, políticos e
económicos têm influência na própria vida. A noção empobrecedora de causalidade
que caracteriza a ideologia biológica moderna – uma noção que, segundo ele,
confunde agentes com causas – conduz-nos segundo direcções muito determinadas
na procura de soluções para os nossos problemas. Daí, a afirmação, ainda que
questionável, de tantos biólogos poderosos, famosos, bem-sucedidos e
extremamente inteligentes quererem construir uma sequência do genoma humano.
Tal comprometimento advém de eles estarem tão inteiramente dedicados à
ideologia das causas unitárias simples que acreditam na eficácia da
investigação. Contudo, a resposta é bastante mais comprometedora, tendo em
conta que a participação e o controlo de um projecto de investigação de muitos
biliões de dólares, que poderá durar cerca de meio século, e que irá envolver o
trabalho diário de milhares de técnicos e de investigadores de baixo nível, é,
segundo Lewontin, uma perspectiva extraordinariamente atraente para um biólogo
ambicioso. As investigações começam a ser realizadas com base nos lucros das
mesmas. Advinha-se assim o alerta do autor para o perigo das ideologias
científicas que regem a nossa vida.
Contextualizando, do
ponto de vista histórico, a afirmação popular de que toda a existência humana é
controlada pelo nosso ADN, Richard Leowtin afirma que tal convicção tem o
efeito de legitimar as estruturas da sociedade na qual vivemos, porque não
destrói a tese segundo a qual as diferenças no temperamento, aptidão, saúde
física e mental estão codificadas nos nossos genes. Acrescenta ainda que tal
afirmação também defende que as estruturas políticas da sociedade são
igualmente determinadas pelo nosso ADN e que são, por conseguinte, imutáveis. A
tese central é que toda a filosofia política tem de começar por uma teoria da
natureza humana e o problema central para os pensadores da filosofia política
tem sido sempre o de tentarem justificar a sua visão particular da natureza
humana. Tomando como exemplo aquilo que Thomas Hobbes chamou de «guerra de
todos contra todos», pois concluiria que todos precisávamos de um monarca para
impedir que tal guerra conduzisse à destruição total, Lewontin afirma que a
«guerra de todos contra todos» transformou-se na luta das moléculas do ADN pela
supremacia. Para Leowtin, a forma mais moderna de ideologia naturalista da
natureza humana é a Sociobiologia – teoria evolucionista e genética –, a última
e a mais mistificadora tentativa para convencer as pessoas de que a vida humana
é muito mais do que tem sido e talvez até mais do que deve ser. A Sociobiologia
aparece aos olhos do autor não como uma simples disciplina, mas uma forma de
pensar que se impõe dentro de outras áreas, para além da biologia. Nesta
insere-se a teoria da natureza humana que faz compreender a sociedade
hierárquica, competitiva e empreendedora dos tempos modernos.
No último capítulo,
Richard Lewontin sintetiza que tudo o que somos, a nossa doença e saúde, a
nossa pobreza e riqueza, e mesmo a estrutura da sociedade em que vivemos,
estão, em última estância, codificados no nosso ADN. Refere a visão
individualista do mundo biológico, caracterizando-a como simples expressão das
ideologias fecundadas pelas revoluções burguesas do séc. XVIII, que colocam o
indivíduo no centro de tudo.
À visão que a biologia
moderna sustenta, na qual os organismos não passam de campos de batalha onde
combatem forças externas e forças internas e ultrapassando a concepção da
adaptabilidade da vida pela visão construtiva, contrapõe que os organismos
constroem realmente o seu ambiente independentemente das zonas do mundo, sendo,
pois, o ambiente dos organismos codificados no ADN.
Por fim, pela nossa
“leitura” apraz-nos em dizer que a organização política e social é um reflexo
do nosso ser biológico. E é a consciência que cria o nosso ambiente, a sua
história e a direcção do seu futuro. Tal facto proporciona-nos uma compreensão
correcta da relação entre os nossos genes e a forma das nossas vidas.
Um livro aconselhável, porque não, a políticos também!
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