«A sua poesia, os seus poemas, são o eco do
seu interior, são a objectiva do seu olhar… Ciente dos condicionalismos que a
cercam, não se deixa abater e vai tentando tirar as pedras do caminho…»
Conceição
Lima
Quando nos propomos em
falar da consciência, enquanto conhecimento que qualquer ser humano possui dos
seus pensamentos, dificilmente poderemos misturar o estado imediato ou
espontâneo, que nos remete para a simples presença de nós perante nós mesmos,
no momento em que pensamos, sentimos e agimos, com as debilidades físicas ou
ilusórias dos nossos desejos e representações. Não é por acaso que muitos dos
filósofos defendem que em todos os casos, a consciência é sempre igualmente
consciência de si, tendo em conta a possibilidade que tem de se desdobrar sobre
si própria. Para pensarmos o mundo que nos rodeia, não temos que
necessariamente apelar à mobilidade física. Como diria Pascal nos seus Pensamentos: «O homem não é mais de que
um junco, o mais fraco da natureza, mas é um junco pensante», levando-nos à
“certeza” de que a consciência reflecte a essência do ser humano e se faz a sua
miséria, mas constitui também a sua grandeza.
Toda esta “retórica”
inicial para repudiarmos a velha pseudociência da “fisiognomia” assumindo, porque
não, uma espécie de “vingança do espírito sobre a matéria”. Vem isto a
propósito desse ser maravilhoso (de te
fabula narratur) que se dá pelo nome de Márcia Filipa Barbosa Passos, com
translações iniciadas, na cidade de Viana do Castelo, a 24 de Julho de 1995, cujos
diagnósticos físicos a relevam para a circunstancial condição de ser uma jovem
portadora de paralisia cerebral, lesão esta decorrente de um trauma obstétrico
e que a deixou com graves sequelas a nível motor e de fala.
É esta mesma Márcia Passos,
finalista do Curso Superior de Gestão Artística e Cultural (sonho concretizado e com perspectiva de
estágio a curto prazo), que desde muito cedo, a forma mais clara que ela tinha
de comunicar, de maneira a que a fosse entendida, era através do que escrevia;
talvez daí o profundo gosto pela escrita, o seu maior escape, nos bons e maus
momentos. E se um dia sonhou (em) escrever um livro, como forma de consciência
como intencionalidade, fornecedora de sentido, se eventualmente o sentido for
reconhecido como aquilo que faz um SER maravilhoso como a Márcia orientar-se
para algo, que a transcende e a projecta para o futuro, «entre mim & eu»
resulta da “não interioridade”, nem “coisa”, mas exterioridade, “relação com…”,
intencionalidade: «Escrever é um escape
que toda a alma perdida procura, / Escrever é encontrar água no deserto, / Um
oásis ali, bem perto. / Escrever é deitar a cabeça na almofada / E sonhar, com
palavras e letras a alma a cantar…» (p. 11). Até mesmo a aparente “tristeza
literária”, apazigua-se com os desabafos da alma e do coração, porque fala de
presença, testemunho, gratidão, sombras e passos, eternidade, palavras e
argumentos: «…E eu, / Agora, / Sou mais e
menos / Do que a sombra que atormenta / A escuridão. / Quem sou? / Apenas
destino / Esculpido / Pelo correr do tempo.» (p. 15). A consciência como fundamento do conhecimento intemporal,
transparência do SER perante si mesmo. Nada há de pura coincidência de si para
consigo.
O SER maravilhoso em
Márcia Passos transfigura-se e suplanta-se às fragilidades, porque é sol,
menina e mulher, guerreira. Conscientemente guerreira: «…Quero que, quando morrer, / Ninguém chore, / Não quero flores / Nem
fotografia na minha campa, / Porque… / Os ventos sopram, / As árvores abanam, /
Os rios correm, / E verão que / A Vida / Está dentro da vida. / Quando morrer…»
(p. 18). Sentido de vida para além da vida, numa convicção de que «A Morte dói, / Mas nunca me matará.» (p.
19). Não é para qualquer guerreira, menina-mulher, ter a “consciência” das
debilidades templárias (enquanto transporte “de anima”) e afrontar a dor sem
deixar de sonhar, a essência de quem vê mais longe: «Escreve sobre mim, / Escreve o destino, / Porque os traços imperfeitos
do teu corpo / Já eu os sei de cor. / Escreve e cala-te, / Devora em silêncio
os meus livros, / Pequenos regaços teus, / A natureza não pede mais nada do que
somente / Os abraços, silenciados pelos momentos…» (p. 26). A sublimidade
poética, sem aparências ou dissimulações, em Márcia Passos, faz da poesia,
ainda que ela o questione, traços delineados na pele, processamento do poema,
vida escrita, onde o amor nasce no regaço dos nossos peitos: «O amor esconde-se / Nos regaços, / Onde os
abraços são afagos / Para acalmar o nosso rio, / E dar luz ao instinto, / Dar
alma às palavras reveladas / Que saem e que falam de amor…» (p. 39).
Por contraditório à
nossa formalidade de princípio, quando achamos que é um atentado explicar
poesia e não senti-la (afrontando à boa maneira aristotélica, “o contingente
opõe-se ao necessário”), ficar-nos-emos pelo predicado real que só pode ser
entendido como um ser contraposto ao ser aparente. O que não é o caso de «entre
mim & eu» em Márcia Passos, por onde perpassam passaportes para o
quotidiano; mar dos poetas onde pescadores perdem vidas; mitos que permanecem;
luzes e sombras; gritos em silêncio; liberdades que (nos) fazem esquecer as
amarras do passado: «Liberdade é ler os
livros que ninguém lê, / Olhar nos olhos de outro alguém, / Não ser perfeito,
somente fazer o que lhe convém. / É livre quem nasceu para viver. / E quem, até
por justa causa, / Não tem medo de morrer.» (p. 49); sopros do adeus; hinos
à Mãe pela pena da “menina dos olhos tristes”; saudades; música para adormecer;
lençóis íntimos das palavras: «…Aqui está
o Entre Mim e Eu, / Só entre mim e eu é que escrevo, / Comigo não há mais nada
na alvorada do dia, / Pois estou só, guiada pela mão da Poesia.» (p. 71); e
formas de ser feliz. Tal como a Márcia, “Hoje, oiço o poema / De uma menina que
tudo faz / Para ser Feliz.” Sabemo-lo e sentimo-lo, porque “de anima” (emanação
quente pela qual foste criada) de mulher, em corpo de menina.
Nota máxima!
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