«Dir-se-ia que os universos mitológicos são
destinados a ser pulverizados mal acabam de se formar, para que novos universos
nasçam de seus fragmentos.»
Franz Boas
Nesta nossa deambulação
cognitiva de hoje resolvemos abordar uma temática que nos é muito cara,
principalmente quando, por circunstâncias da “douta ignorância”, enveredamos
por desafio irrecusável. Embora não seja isso que se pretende, inevitavelmente
a estrutura dos mitos acaba por se interpor aos objectivos pretendidos. Daí, a
necessidade de nos estruturarmos na «Antropologia Estrutural» em Lévi-Strauss.
Para Lévi-Strauss, nas
últimas duas décadas, a antropologia parece ter-se afastado cada vez mais do estudo
dos factos religiosos. Esta situação veio abrir caminho a amadores –
denominação de Lévi-Strauss – de diversas proveniências que se aproveitaram do
facto para invadir o domínio da etnologia religiosa. E dá exemplos com Tylor,
Frazer e Durkheim, que apesar de estarem atentos aos problemas psicológicos;
mas, não sendo psicólogos profissionais, não podiam manter-se a par da rápida
evolução das ideias psicológicas, e menos ainda pressenti-la: Suas interpretações passaram de moda tão
rapidamente quanto os postulados psicológicos em que implicavam
(Lévi-Strauss, 2003: 237-238). Segundo o mesmo antropólogo, para se compreender
o que é um mito, tem-se que se escolher entre a trivialidade e o sofisma. E há
duas formas de ver os mitos: 1 – Alguns pretendem que cada sociedade exprime,
nos mitos, sentimentos fundamentais, tais como o amor, o ódio ou a vingança,
que são comuns a toda a humanidade; 2 – Para outros, os mitos constituem
tentativas de explicação de fenómenos dificilmente compreensíveis:
astronómicos, meteorológicos, etc. Para Lévi-Stauss, somos obrigados a
reconhecer que o estudo dos mitos pode conduzir a constatações contraditórias. Tudo pode acontecer num mito; parece que a
sucessão dos acontecimentos não está aí sujeita a nenhuma regra de lógica ou de
continuidade. Qualquer sujeito pode ter um predicado qualquer; toda a relação
concebível é possível (Lévi-Strauss, 2003: 239). Se queremos perceber os
caracteres específicos do pensamento mítico, devemos pois demonstrar que o mito está, simultaneamente, na linguagem e
além dela. Saussure, por exemplo, mostrou que a linguagem ofereceria dois
aspectos complementares: um estrutural,
o outro estatístico; a língua
pertence ao domínio de um tempo reversível, e a palavra, ao domínio de um tempo
irreversível. Ao distinguir-se assim a língua e a palavra por meio dos sistemas
temporais aos quais cada uma pertence, poder-se-á afirmar que um mito diz
respeito, sempre, a acontecimentos passados: “antes da criação do mundo”, ou “durante os primeiros tempos”, em todo
caso, “faz muito tempo” (Lévi-Strauss, 2003: 241).
A substância do mito
não se encontra nem no estilo, nem no modo de narração, nem na sintaxe, mas na
história que é relatada. No fundo, o mito é linguagem; mas uma linguagem que
tem lugar em um nível muito elevado, e onde o sentido se autonomiza de forma
“fracturante” do fundamento linguístico sobre o qual começou a emergir. Assim,
Lévi-Strauss equaciona três conclusões provisórias: 1 - Se os mitos têm um sentido, este não se pode ater aos elementos
isolados que entram em sua composição, mas à maneira pela qual estes elementos
se encontram combinados; 2 - O mito provém da ordem da linguagem, e faz parte
integrante dela; entretanto, a linguagem, tal como é utilizada no mito,
manifesta propriedades específicas; 3 - Essas propriedades só podem ser pesquisadas
acima do nível habitual da expressão linguística; dito de outro modo, elas de
natureza mais complexa do que as que se encontram numa expressão linguística de
qualquer tipo (Lévi-Strauss, 2003: 242). Dessas três conclusões construímos
duas consequências de elevada importância: 1.ª O mito, como todo o ser
linguístico, é formado de unidades constitutivas; 2.ª Tais unidades
constitutivas implicam a associação daquelas que estruturam a língua: os
fonemas e os morfemas.
Poderemos também
atribuir que as verdadeiras unidades constitutivas do mito não são as relações
isoladas, mas feixes de relações, e que é somente sob a forma de combinações
desses feixes que as unidades constitutivas adquirem uma função significante: o
mito é formado por unidades constitutivas (na língua, os fonemas) que
manifestam propriedades específicas – os “mitemas”; estes não são relações
isoladas, mas “feixes de relações”, que só adquirem função significante sob a
forma combinatória; não há, assim, significados precisos directamente conectados
com certos temas mitológicos. Segundo Lévi-Strauss dá agora para compreender
porque é que muitos estudos de mitologia geral produziram resultados
desalentadores. Os comparativistas, para começar, quiseram seleccionar versões
privilegiadas em vez de as considerar na totalidade. Depois, a análise
estrutural de uma variante de um mito recolhido numa tribo e, às vezes, até
numa aldeia pode apresentar um esquema de duas dimensões. Tudo isto porque há
um desconhecimento dos sistemas de
referência multidimensionais que qualquer estudo de mitologia geral,
efectivamente exige (Lévi-Strauss, 2003: 253). Perguntou-se muitas vezes
porque os mitos, e mais geralmente a literatura oral, usam tão frequentemente a
duplicação, triplicação ou quadruplicação de uma mesma sequência. Para
Lévi-Strauss, a repetição tem uma função própria, que é de tornar manifesta a
estrutura do mito.
Outro factor importante é que os sociólogos, que colocaram a questão das
relações entre a mentalidade dita “primitiva” e o pensamento científico,
resolveram-na, geralmente, invocando diferenças qualitativas no modo pelo qual
o espírito humano trabalha aqui e acolá. Mas não puseram em dúvida que, em
ambos os casos, o espírito se aplicava sempre aos mesmos objectos. Numa
analogia ao que os tecnólogos se aperceberam: um machado de ferro não será
superior a um machado de pedra porque um seria “mais bem feito” que o outro
(ambos são igualmente bem feitos, mas o ferro não é a mesma coisa que a pedra),
Lévi-Strauss afirma que talvez descobriremos um dia que a mesma lógica se
produz no pensamento mítico e no pensamento científico, e que o homem pensou
sempre do mesmo modo. O progresso – se é que então se possa aplicar o termo –
não teria a consciência por palco, mas o mundo, onde a humanidade dotada de faculdades
constantes ter-se-ia encontrado, no decorrer de sua longa história,
continuamente às voltas com novos objectos.
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