Sunday, October 20, 2013

“Do cavalo e da jovem rapariga” e o selvagem da desonra!

“De entre os Códridas já não se elegiam reis, por se considerar que se tinham tornado efeminados e brandos. Hipómenes, um dos Códridas, quis afastar esta acusação. Tendo surpreendido um amante com a sua filha Leimônê, matou-o amarrando-o ao carro com sua filha, e a esta encerrou-a com um cavalo até que morreu”

Aristóteles
(Fragmento da Constituição dos Atenienses)


Ao tempo das nossas incursões académicas, foi-nos proposto um exercício, onde nos confrontamos com dois pequenos excertos dos textos de Ésquines (Contra Timarco) e de Aristóteles (Fragmento da Constituição dos Atenienses), e por acharmos que, tal como afirmaria Richard E. Palmer, em hermenêutica o processo de interpretação “vai de um conteúdo e de um significado manifestos para um significado latente ou escondido”, aventamos a hipótese de o objecto de interpretação, neste caso concreto os dois pequenos textos, poder ser constituído por símbolos mitológicos, sociais ou literários.
Inicialmente, espelhando uma certa desarticulação de raciocínio, só porque fomos iludidos pelo cenário, desprezamos o conteúdo ou o tema nevrálgico de tais “construções literárias”. Na altura, tomaríamos a interpretação certa, envoltos na máxima grega «Antes a Morte que a Desonra», sendo que o castigo corporal era encarado, na antiga Grécia, como modelar. Os condimentos que nos poderiam conduzir a tal interpretação estavam lá, mesmo quando o fizemos – ou procuramos fazer – à luz da história, sem esquecermos o tempo e o espaço. Mas, sem querer, apenas estávamos a dissimular uma construção interpretativa de “pescadinha de rabo na boca”. Apesar de termos tomado em linha de conta o sentido figurado ou metafórico, levados pelos conceitos do exemplo moral, numa Grécia da sabedoria, da beleza e da justiça, dado que as mulheres estavam sujeitas a restrições – eram bastante dominadas pelos maridos, pais ou irmãos e raramente participavam na política ou em qualquer outra forma da vida social –, só posteriormente nos apercebemos do nosso erro de raciocínio.


Enquanto nos enredávamos na teia “Do cavalo e da jovem rapariga”, sentíamos – ou ficaríamos com a sensação de – que, como uma centelha, a verdadeira “jurisprudência” do zeloso e guardião pai, da virgindade da jovem rapariga, ocultava algo bem mais grave do que a simples disciplina exemplar do castigo corporal, pela agravada desonra perpetrada por sua casta filha. Os termos, quer num quer noutro texto, levar-nos-iam a pensar, ainda que erradamente, na exemplaridade moral, tendo em conta que na Grécia Antiga a violência fazia parte da sua cultura e, quiçá, do seu subconsciente. A acidentalidade do espaço geográfico; a luta pela hegemonia; as querelas locais – de que é exemplo o duelo entre Ésquines e Demóstenes –; a expressão e sobrevivência dos próprios deuses, ainda que simbolizados pelas forças da Natureza, ostentavam também os sentimentos bons ou maus dos seres humanos – para os Gregos, todos os homens se transformavam em deuses logo após a morte –, revestindo-se em histórias mitológicas, ora poéticas e graciosas, ora absurdas e pueris, ora imorais e grosseiras; e a própria “Tragédia Grega”, levar-nos-ia a equacionar a própria violência como factor preponderante para a interpretação dos textos. Mas, então, qual seria a interpretação certa a dar aos pequenos textos que nos falam do «cavalo e da jovem rapariga»?      
Que interpretação certa? Reformulando a nossa visão, e depois de termos lido o excelente trabalho científico dos Professores Ana Lúcia Curado e José Manuel Curado, quase que não arriscaríamos em procurar uma outra interpretação. Contudo, ao lermos a dado momento do referido texto que “o facto de existir esse conhecimento do folclore mágico das plantas não significa que pessoas sofisticadas e urbanas como Ésquines e Aristóteles o conhecessem” despertou em nós um desafio de procurarmos interpretar os referidos textos, contextualizando-os ao objecto – e/ou objectivo – para que haviam sido criados. Longe de nós em tentarmos diminuir (ou anular) a interpretação de tão ilustres catedráticos, já que, incontestavelmente, esse mesmo estudo assenta no profundo domínio do grego e da Hermenêutica, sendo que, além disso, a sua fundamentação não deixa qualquer margem para dúvidas.
Ao procurarem dizer-nos que Ésquines e Aristóteles projectaram sobre os diminutos elementos da história (a rapariga e a planta de nome estranho) “esquemas de inteligibilidade que reflectem os seus interesses intelectuais”, por forma a construírem uma história fortemente moralizadora, os mesmos professores permitir-nos-iam – com algum devaneio intelectual da nossa parte (por certo que nos perdoarão!) –, recorrer à interpretação alegórica, já que o texto de Ésquines assenta no julgamento de Timarco, onde são postas em causa as qualidades morais incompatíveis com as funções de cidadão e, circunstancialmente, o prostituído não pode exercer nenhum cargo público, nenhuma magistratura (Ésquines: Contra Timarco: I 19). De facto, Timarco foi levado a julgamento por falar na assembleia depois de ter tido semelhante conduta. Carlos Espejo Muriel, da Universidade de Granada, no seu trabalho «Pederastico Griego» fala-nos de exemplos que Ésquines nos oferece e aborda esta temática num capítulo intitulado «A negação da homossexualidade na Grécia». Numa das conclusões chega mesmo a afirmar: La pederastia es un fenómeno antiguo que nada tiene que ver con la homosexualidad, no en cambio esta última que responde a un concepto moderno, que tantas veces se ha utilizado para negar precisamente el deseo homosexual en la antiguedad, deseo que por otro lado queda expuesto al comprobarse la realidade de los gays en Grecia. E agora, que julgamentos e interpretações se fazem, ao tempo de outras imoralidades?
Pelo facto de – conscientemente – nos assumirmos como filhos da Grécia e de Roma, sempre que nos cruzamos com uma jovem rapariga e/ou um cavalo, procuramos reinterpretar a nossa própria existência. No tempo presente, enquanto os cavalos selvagens pastam livremente na Serra d’Arga ou no Gerês, a conduta política e sexual, a virgindade e a desonra deixaram de ser equacionadas, dado que a sobrevivência – a da politicamente correcta – dos “deuses” permanece, mas de uma forma selvagem… O selvagem da desonra!
Ao longo da “vida” sempre procuramos ser cautelosos, mormente quando accionamos o exercício permanente de interpretação. E essa será sempre a nossa postura. Daí, o poderem dormir descansados! 

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