“Primeiro
tem de se considerar que as disposições de carácter são de uma natureza tal que
podem ser destruídas por defeito e por excesso tal como vemos acontecer com o
vigor físico e com a saúde (é que temos que fazer uso primeiro do testemunho de
coisas visíveis antes de chegar às invisíveis).”
Aristóteles (In, Ética
a Nicómaco, 1104a1)
Embora possa parecer de
uma forma desconexa ou descontextualizada, o propósito de abordarmos a “senilidade”
e falta de ética (quiçá, de carácter) de alguns políticos, hoje iremos abordar
a questão do “ritual” – inicialmente de inspiração religiosa, quando era
suposto dois tipos de relações: dos homens com os deuses, e, inversamente, dos
deuses com os homens; e que Claude Rivière afirma constituírem as primeiras “o
domínio dos sacra (ritos
sacramentais, sacrifícios, orações, apelando eventualmente para especialistas
do oculto), os segundos são os signa,
que dispensam o apelo aos sacra e dão a impressão de uma imediatez, apesar de
estarem ligados a técnicas de interpretação que revelam da mística” – como uma performance, ou seja, como uma forma de
representar, uma prática que tem um carácter repetitivo, uma certa regularidade
mais resistente à mudança, estaremos em afirmar que tal acção (porque forma de
agir) se “prescreve” num conjunto de actos repetitivos e codificados. Embora
nem todos os comportamentos repetitivos possam ser designados de rituais, há
por vezes práticas que, pela sua forma de estruturação, eficácia social e
simbólica, podem, muitas vezes, conferir-lhes esse sentido. As praxes
académicas e os jogos de futebol – com as suas claques –, por exemplo, se lhe
conseguirmos descortinar um sistema simbólico inerente à acção, já que, através
dessas práticas, os condimentos da oratória, da entoação e da canção, aliados à
forma de trajar, podemos “imprimir-lhes”, circunstancialmente, algum sentido
ritual. Mas, mesmo assim, são muitos os antropólogos que afirmam a inexistência
de ritual nas praxes académicas e/ou nos jogos de futebol, ao conferir-lhes uma
prática de divertimento, adaptação ao meio e/ou convívio.
No processo ritual – e
parafraseando a antropóloga e nossa particular amiga Manuela Palmeirim – os
actores reconhecem quem faz o quê, quando e como. Fazem-no, mas, muitas vezes,
não sabem o que esses símbolos significam. Por isso, o ritual é normalmente
acção, representação, a prática e não o que os símbolos significam. Aqui, o
carácter emocional tem um grande significado. Para autores como Max Black,
Tambiah e G. Lewis, importante são as regras, o que fazer e não o seu
significado. É nesse sentido que – em oposição à ideia de que os rituais servem
para “dizer ou comunicar qualquer coisa” – nos é dado afirmar que, normalmente,
os mesmos servem para “fazer qualquer coisa”. Em suma, dizer é fazer, é
instituir o mundo.
Segundo Max Black, a linguagem ritual é de
representação, de acção (performance)
e essencialmente emocional. Por outras palavras, os símbolos não significam,
têm essencialmente um valor emocional. Outro facto a salientar é que nos
rituais a linguagem não se confunde com a linguagem comum, dado que as
linguagens rituais são oratórias, entoações e canções. A canção, por exemplo, é
uma linguagem por excelência ritual. Já Claude Lévis-Strauss (1908-2009)
afirmara a difusão da linguagem, enquanto fenómeno de estrutura social, como
unificadora de comunidades separadas em
comunidades de língua única e o processo inverso de subdivisão em comunidades
de línguas diferentes. Sem nos procurarmos desviar do nosso objectivo,
“atentaremos” em reforçar a ideia de que a linguagem ritual ao permitir a sua
estilização distancia-se assim da linguagem comum.
Voltando aos símbolos,
recordaremos que Victor W. Turner, numa visão contrária a Lévi-Strauss, define
os símbolos como uma abordagem interpretativa, sendo que, para ele, se
quisermos penetrar na estrutura interna das ideias contidas num ritual, temos
de compreender como é que os participantes nesse mesmo ritual interpretam os
seus símbolos. É o próprio Turner que o afirma: Meu método é assim necessariamente o inverso daquele de inúmeros
estudiosos que começam por extrair a cosmologia que frequentemente se expressa
em termos de ciclos mitológicos e, então, passam a explicar rituais específicos
como exemplos ou expressões de “modelos estruturais” que encontraram nos mitos.
E dá como exemplo os ndembos – povo
do noroeste da Zâmbia que, tal como os iroqueses,
estudados por Lewis Henry Morgan (1818-1881), é matrilinear, e combina a
agricultura de enxada com a caça, à qual atribuem alto valor ritual – que
possuem muito poucos mitos e narrativas cosmológicas ou cosmogónicas. A
oposição a Lévi-Strauss – e apesar de Turner concordar quando este acentua que
o “pensamento selvagem” tem propriedades tais como homologias, oposições,
correlações e transformações, as quais são também características do pensamento
requintado – reside no facto de, por exemplo, no caso dos ndembos, os símbolos utilizados indicarem que tais propriedades estão
envolvidas por revestimento material, forjado na sua experiência de vida.
Victor W. Turner procura através da função social dos símbolos, descodificar o
significado dos próprios símbolos, dado que para ele os símbolos não têm,
forçosamente, uma significação única: Cada
elemento simbólico relaciona-se com algum elemento empírico de experiência
conforme claramente revelam as interpretações indígenas dos remédios vegetais.
No fundo, a linguagem ritual não passa de uma linguagem emocional de baixo
conteúdo proposicional, ou seja, de fracos enunciados. Os símbolos estão aí, ao
dobrar de cada esquina…
E porque “ritos de
passagem são aqueles que marcam momentos importantes na vida das pessoas” expressar-nos-emos
– sem combinarmos a (ndembo)
agricultura de enxada com a caça – pelo escrito de acabar com as pescas e a
agricultura (incluindo “vacas leiteiras”), subtraindo, anos mais tarde, através
do rito de passagem verbal, de voltar as atenções para o mar e o
desenvolvimento da agricultura; pelo voto – a par da Margaret Tatcher e do
cowboy Ronald Reagan –, da “não libertação” de Nelson Mandela, justificado no
tempo presente, de forma verbal, pelo contexto documental de “um incentivo à
violência”, só porque reafirmava “a legitimidade da luta do povo da África do
Sul e o seu direito a escolher os meios necessários, incluindo a resistência
armada, para alcançar a erradicação do apartheid”, evidenciando, ao mesmo
tempo, um baixo conteúdo emocional, mesmo quando disfarçado de endeusamentos de
circunstância, para ficarem bem na “fotografia”: «Eu tive o privilégio de conhecer Nelson Mandela. Inquestionavelmente,
um dos maiores estadistas do século XX…». Palavras [anim(b)alistas] e
expressões de “modelos estruturais” que não passam de desculpas esfarrapadas,
revestidas (e ainda que nos tornemos repetitivos) de linguagem emocional de
baixo conteúdo proposicional, ou seja, de fracos enunciados.
Será que estamos a assistir a ritos de passagem? Talvez! Daí, e face às
circunstâncias da nossa “crucificação” presente, continuarmos a acreditar e a
formular: enquanto as palavras voam, o
escrito permanece!
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