“O
que, para Humboldt, se apresenta de imediato na imagem da linguagem é,
primeiramente, a separação do espírito individual e do espírito «objectivo», e
a superação desta separação. Todo indivíduo fala a sua própria língua – e, no
entanto, é precisamente na liberdade com que dela se serve que ele adquire
consciência de um liame espiritual interior”.
Ernst Cassirer
Por admirarmos Ernst
Cassirer (1874-1945), como um dos maiores filósofos do século XX, apresentando
os resultados de uma vida de estudos sobre as realizações culturais da
humanidade. Apesar de Ensaio sobre o
Homem, continuar a ser um enunciado vigoroso e conciso de sua filosofia da
cultura, formulada pela primeira vez no monumental Filosofia das Formas Simbólicas (1929), onde o mesmo se vale de uma
riqueza de dados científicos, antropológicos e históricos, examinando os
esforços do homem para compreender a si mesmo e lidar com os problemas de seu
universo por meio da criação e do uso de símbolos, hoje vamos procurar falar do
Mito e Linguagem no mesmo filósofo, como forma de diferenciar nitidamente as
diversas formas fundamentais da “compreensão” humana do mundo.
Com este intróito, em
jeito de lide, fácil será constatar o quanto Wilhelm Von Humboldt (1767-1835)
teria influenciado o pensamento de Ernst Cassirer. Procurando “enquadrar-nos”
na situação da linguagem e do mito dentro da cultura humana, Cassirer começa
por nos reportar até ao Fedro
platónico, onde o cenário físico envolvente – ponto de encontro no qual se
desenrola a cena entre Sócrates e o mesmo Fedro
– é plasmado por uma reprodução paisagística ao mais ínfimo pormenor, colocando
Sócrates e Fedro sentados à sombra de
um grande plátano junto a um manancial refrescante, agitado por uma brisa
estival – segundo ele – benigna e doce o ar está cheio do chilrear das
cigarras. Aliás, descrições deste tipo apesar de serem muito raras na
Antiguidade, por certo que levaria à compenetração dos intervenientes, tomando
como lugar-comum, de modo a articularem interrogações mitológicas: Bóreas raptou a bela Orítia; pois aqui a
água é pura e cristalina, um incentivo para que as jovens se banhem e brinquem
nela. Sócrates, por exemplo, ao ser confrontado – e/ou pressionado – por Fedro a responder se realmente cria
naquela «mythologema», limita-se a chamar a atenção para a pouca importância
das diversas interpretações mitológicas que, circunstancialmente, não passavam
de passatempos aborrecidos e artificiosos, desvalorizando quem se lhes dedica.
Apontando casos semelhantes – figuras como Centauros,
Quimera, Górgonas, Pégasos e
muitos outros –, e, face à sua desconfiança empregue na existência destes
“seres maravilhosos”, manifesta-se claramente na indisponibilidade de se
dedicar a tais ócios (ou, ainda segundo Sócrates, consagrar muito tempo a este
tipo de sabedoria inútil), pelo facto de ainda não se conhecer a si próprio,
tal como o “exigia” o preceito délfico. Era absurdo, perante o facto de não se
conhecer a si próprio, dedicarem-se à interpretação de coisas estranhas: Por isso, deixo que tais coisas sejam o que
forem, e não penso nelas, mas antes em mim mesmo, ao meditar que sou uma
criatura de constituição mais complicada ou monstruosa que a de Tífon, ou se
serei, talvez, um ser de natureza mais suave e simples provida de alguma
essência nobre e talvez divina – citamos Cassirer.
“Servindo-se” do
pensamento platónico, Cassirer refere-se ao género de interpretação mitológica,
aquela que os sofistas e os retóricos consideravam como a mais alta sabedoria,
como sendo uma «sabedoria campesina». Mesmo assim, tal facto não impediu que
não se voltassem a dedicar a este género de interpretação. Tal como haviam
feito, anteriormente, os sofistas e os retóricos, os estóicos e neoplatónicos
competiram nesta arte: E de novo, como antigamente, voltou a ser utilizada a
investigação linguística e a etimologia como elementos de interpretação. No
reino dos fantasmas e demónios, assim como no das mais elevadas expressões
mitológicas, parecia voltar a confirmar-se a palavra fáustica: supôs-se, mais de que uma vez, que a
essência de cada figura mítica podia ser reconhecida directamente pelo seu nome.
Estabelecera-se uma relação intimamente necessária entre o nome e a essência.
Tendo em conta que para este importante pensador neo-kantiano, na elaboração da
máxima de que somos nós que plasmamos o mundo com a nossa actividade simbólica,
para ele – a criação do mito, da religião, da linguagem, da arte e da história,
são todos símbolos –, somos nós que criamos e fazemos mundos nas nossas
experiências. Assim, o espírito do mito, actua como convicção vivente e
imediata, convertendo-se, circunstancialmente, num postulado do poder
reflexivo, para a ciência da mitologia; esta impõe, assim, como princípio
metodológico, a íntima relação entre o nome e a coisa, a sua latente identidade.
Seguindo a mesma linha de pensamento, para Ernst Cassirer, este método foi-se
aprofundando e/ou aperfeiçoando “através da história da investigação
mitológica, da história da filologia e da ciência da linguagem”.
A nosso modesto ver,
nunca entenderíamos a nossa própria cultura se, inadvertidamente, baníssemos a
carga puramente “simbolizante” contida nos estudos feitos pela filosofia da
linguagem e, neste caso particular, por Cassirer. Subtrair ao mundo físico o
mundo simbólico, é subtrair as nossas condições de existência, dado que as
mesmas foram criadas por nós próprios (mundo simbólico) e não por vivermos num
mundo puramente físico. Para Marinaide Moura, aquilo que vê em Cassirer, ao dar
expressão ao significado de símbolo, afirma a dado momento que simbolizar
significa lançar juntamente, amontoar, reunir, ou seja, aproximar objectos de
ideias. O símbolo surge como estruturação das relações do homem com o mundo. É
essa capacidade de síntese, ou seja, no dizer de Cassirer, o modo como se opera
aquilo a que ele denomina de concentração, depende da direcção do interesse
subjectivo. Por exemplo, para ele a linguagem faz parte do mito e o símbolo faz
uma síntese de várias experiências sensoriais ou vários conceitos abstractos.
Daí, o não concordar que a linguagem derive duma reflexão consciente.
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