“Nunca
estejas completamente desocupado; lê ou escreve, reza ou medita, ou faz
qualquer coisa de útil para a comunidade”.
T. Kempis
Para assinalarmos o
nosso regresso a este sentir e viver «ao correr da pena e da mente…», não
poderia ser doutra forma se não deambularmos pelo «assento doméstico», último
brado poético do nosso particular amigo Fernando Pinheiro, nascido em 1949 na
aldeia de Ucha, Barcelos, cujo orago é S. Romão (mártir cristão que no séc. IV
morreu às mãos do imperador Galério). Sem nos alongarmos muito pelo seu
vastíssimo – diríamos até riquíssimo – curriculum, contudo, e principalmente
para os leitores deste nosso modesto deambular literário, convenhamos em
acrescentar algumas notas biográficas, por forma a percebermos a sua meritória
qualidade (num patamar superior) enquanto dramaturgo, escritor e poeta.
Fernando Pinheiro, com
quem contactamos pela primeira vez há mais de três décadas (por circunstância
de lides e compromissos radiofónicos), fez exame da 4.ª classe na escola de
Galegos (S. Martinho), obteve o curso secundário no Liceu Nacional Sá de
Miranda, Braga, e licenciou-se em Direito pela Universidade de Coimbra.
Dedicou-se ao ensaio e à animação cultural, tendo sido professor até 1998,
quase sempre no concelho de Barcelos, e técnico superior de acção cultural da
Câmara Municipal de Braga até 2011, ano em que se aposentou. É conhecida a sua
ligação ao teatro, desde a sua mais tenra juventude, e em particular ao grupo
amador “A Capoeira”, de que foi fundador com outros companheiros da década de
70, e que entretanto se transformou num dos mais importantes grupos de teatro
do norte do país. Remonta também à década de 70 a sua ligação à literatura,
tendo começado por editar colectâneas de poesia infanto-juvenil, até lançar
títulos seus nos domínios da poesia, romance, conto e ensaio (monografias). O
teatro, original ou adaptado, encontra-se fora de mercado.
«Assento Doméstico»,
que constitui o seu sexto título de poesia, apresenta-se, tal como nos apraz
registar na simpática dedicatória que se nos dirigiu, como “uns quantos
protestos de alma contra a decadência, venalidade e a incôndita procura do
homem por tudo quanto é espúrio e corruptor”, por onde perpassam homens de
sucesso, envoltos em manuais, qual contraste entre o “andar na berra / arrasta
a bainha pelo chão / põe o cós a roçar nos joelhos / a braguilha desce prós
artelhos / que as calças agora são / um saco com pernas dentro…” e o “como poderei
sair à praça / com casaco e gravata / calças de cinta alta / sem jóias nas
orelhas / nem ténis nos pés / sem óculos de massa / nem cachecol de lã (…) /
para ser um pós-moderno / em tudo igual aos mais famosos / era capaz de tudo,
das orelhas / das tatuagens, das botas / da cinta descaída / do desleixo, da
barba mal feita / do ar liberal e da madeixa / mas aquele leque / a abanar no
rabo…”; gentes como o Zeca “amigo maior que o pensamento / já vem toldado o sol
que vai nascendo”; a libertação dos noivos, que “por costume, antigamente /
ajoelhavam na terra do cemitério / e juravam ante os mortos amar eterno”; o ser
“politicamente correcto até à cova / e porta-estandarte do idealismo generoso /
que há-de gerar a alma da cidade nova / reclamada pelos poetas libertadores…”,
levando a gravata até ao túmulo; a última tarefa de já não ir “a tempo de ser
santo: / pelos antros da corrupção e da contubérnia / incólume passarei com a
minha veste de gardénia / e no ilimite do céu aberto / como um anjo velho / sem
mácula / voarei”; e o esgueirar dos mentirosos pelos buracos da justiça, “que
fazer neste parlamento / nesta civitas
de rapina / se a batota que era crime / virou ciência política?”.
Em «assento doméstico»
– que de doméstico nada tem, mesmo quando, alegoricamente, fala do seu gato
Rufino que “nunca deixa nada por fazer: / come, dorme, passeia, caça… / é um
gato metódico”, tornando-se universal no comportamento, porque igual a todos os
outros gatos –, há ainda observações; remissões; lições; expiações; dilemas;
desejos; perdões alados; naufrágios; desejos insensatos; elogios da decisão e
da mentira; teorias de rejeição, do invisível e de indefinição; telúricos
desejos; desalento; e renúncia de a essa ilha não ir, “algum Circe não vá /
transformar-me / em porco / e eu não sou / um plytropos / como Ulisses / que destruiu / a acrópole de Tróia / com
uma tramóia / de pau (…) / a essa ilha não vou / alguma Circe não vá / em porco
mudar-me!”. Assim é a Poesia de Fernando Pinheiro, Poesia que se nega a morrer,
“porque o eterno / não se mete numa urna!” e que tira o tédio ao S. Pedro, “que
já leva dois milénios / de chaves na mão / coitado do porteiro do céu / que
nunca viu um ciclista / a cortar a meta no paraíso / a bicicleta está pronta /
a morte pode vir…”. Simplesmente, sublime!
Por certo que os nossos
leitores não estariam à espera de mais devaneios crítico-literários à volta
deste extraordinário brado poético de Fernando Pinheiro, dado que nunca tivemos
aspirações para tal e a poesia não se explica, sente-se: e o primeiro homem criado / à minha imagem e semelhança / não seria um
Adão progenitor / mas um “homo horribilis” / capaz de matar o criador (…) se não o gesto, fique a intenção / e dou-me
por liberto: / o “big-bang”, sim / o resto, não – comungamos, plenamente,
com o Fernando Pinheiro.
NOTA MÁXIMA!
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