“A
escrita da Helena Osório é uma tela de cores tão variadas e coloridas, de um
calor abrasador, de manhãs e entardeceres dolentes, de noites de sonhos e desejos”.
Fernando Sá Monteiro
(Historiógrafo, Investigador e Publicista)
Não encontramos melhor
forma de iniciarmos esta nossa crónica, do que nos sentirmos expectadores à
mesma varanda e à chuva “que, em Novembro é de gelo, miro ao longe o castelo e
igreja meio árabe meio faroleira. Não muito longe do mar”, desfrutável visão
com que Helena Osório inicia o seu romance «Voando nas asas de um pombo verde»,
o Kuti Kuria dos tempos de Angola. De
facto, não há melhor maneira poética de iniciar um romance, com chuva e pombos
nos beirais, misturando sonhos com sono, num apego ao rio grande e ao mar,
despertando fantasmas de “vidas entrelaçadas, em que vou trocando os tempos,
num presente passado, desmistificado no final”. Tudo isto no silêncio de uma
noite húmida, fazendo renascer algo do qual se pretende desligar. Mas, porque
“na escrita tudo vem da alma”, Helena Osório recorre à intemporalidade como
forma de viajar por Angola e Portugal (1917-2013): «Mais do que a narração
entre o real e o imaginado Voando nas
asas de um pombo verde, chama a atenção para o paradoxo das vivências num
país e no outro. Exalta o período que medeia as duas grandes guerras e a
revolução de Abril de 1974, sensibilizando para aqueles que são devolvidos das
antigas colónias à metrópole» – podemos ler em sinopse ao livro de uma exilada,
que, tal como “milhares de vítimas com vidas destruídas que se levantam (ou
não)”, experimentou na pele o flagelo de um passado destruído.
Helena Osório
(Benguela, Angola 1967) jornalista desde 1989, licenciada em Estudos Europeus
(Universidade Moderna de Lisboa), pós-graduada e mestre em Artes Decorativas
(Universidade Católica Portuguesa), doutoranda em Estudos da História da Arte e
da Música (Universidade de Santiago de Compostela), com oito livros publicados
na área da literatura infanto-juvenil, faz-nos voar agora através das asas de
um pombo verde (Kuti Kuria) e nos
ensina a aprender que na vida “tão depressa se é, como se deixa de ser”.
Com ilustração de
Isabel Mourão (Oeiras, Portugal), licenciada em Economia pela Universidade
Católica Portuguesa, pós-graduada em Marketing Internacional pelo ISCTE,
«Voando nas asas de um pombo verde» apresenta-nos, para além da viagem por
Angola e Portugal, algumas estórias da vida real, mescladas com outras
ficcionadas, uma espécie “in memoriam” de Helena Osório aos filhos que gostaria
de ver crescer livres de amarras; à avó que sempre a inspirou com cantinelas e
histórias de Angola e Portugal; à mãe, natural do Lobito, com 30 anos de
Angola, pelo apoio condicional; ao Carlos Gaspar, adestrador de pombos; a
Angola, terra-mãe, que canta com saudades de um tempo extinto e com nostalgia
de uma nova Angola revisitada. Aqui, os pombos, por se afeiçoarem às pessoas,
ganham lugar de relevo, mesmo ao tempo em que a nudez era uma vergonha: «Deus
nos livre e guarde de tomar sem a bendita camisa! Sorte é os portugueses
estarem espalhados pelo mundo e assimilarem outras ideias mais modernas que são
bem recebidas em Lisboa» (p. 22), e a imaginação erótico-poética de Cândida
(sem que haja forçosamente candura, quando do nome levado à letra) voava nas
asas dos pombos e se sente “relaxada com o pensamento. Imagina uma longa
piscina de pedra, a terminar no infinito. Quase adormece com o banho quente
sonhado, aromatizado por pétalas de rosa. Deixa-se ir… Sem camisa, às
escondidas de todos. Abre as pernas, uma para cada lado, e atira os braços para
trás, tentando aliviar o peso dos seios redondos. (…) Toca os mamilos hirtos
como se não fossem seus, desliza os dedos, contorce as pernas, risca o
horizonte com os olhos e deixa voar o pensamento» (p. 32-33), numa relação
selvagem com o mar. Nós, enquanto leitores, preferimos a Cândida sonhadora,
mesmo quando exausta da subida até ao sótão onde, intemporalmente, vive só, e
se senta na poltrona em frente à janela, de pernas e ventre pesados, sonolenta,
sempre enjoada, apetecendo-lhe parar e contemplar o umbigo a crescer. «Não é o
caso do sótão da rua Augusta onde as madeiras conversam aos estalidos e as
pombas arranham as telhas vivas de sonhos» – diz-nos a autora. Simplesmente
sublime, diremos nós.
É evidente que, os
hipotéticos leitores deste extraordinário romance de Helena Osório, não estarão
à espera que venhamos a esmiuçar toda a narrativa, dado que se o fizéssemos
estaríamos a guindá-los para interpretações muito pessoais e/ou subjectivas, o
que, intelectualmente, seria desonesto da nossa parte. No entanto, e com os
devidos pedidos de desculpa, atrevemo-nos em dizer que este romance, onde os
pombos parecem todos iguais – iguais como
são os homens novos, ou como são os homens velhos, despidos das suas roupagens
e artifícios (p. 61) –, transporta uma grande carga sensual de esperança,
cheiros perfumados, encontros e desencontros – Cândida quer convencer-se de que há um amor de perdição como o de
Camillo Castello Branco (p. 53) –, saudades, ecos do coração, lamentos e
festejos, a felicidade como um bem maior, orquestras do outro lado da caixinha
de madeira, o silêncio sem irregularidade, chão humedecido de transpiração e
espasmos, memórias iluminadas, aconchegos – Aperta-a
contra o corpo dele. As mãos deslizam e intrometem-se. Cândida não se mexe.
Tudo o que sente é novo. O fogo crepita cada vez mais impaciente, faiscando
tons fervorosos de laranja, vermelho, azul e verde. A luz dourada aquece-a aos
tremeliques, criando reflexos na pele semiencoberta pela camisa de linho
(p. 103) –, aromas de rio massacrado, etc., etc., como costumamos dizer,
complexo lexical em que deveríamos, de contínuo, ter usado aspas, visto que
extraído dos textos. Mas, há muito mais do que isto: qual preocupação de um pai
que vê sua filha partir para Angola, sendo sempre melhor “vê-los partir do que
ficar a filha viúva e a neta órfã de um genro louco que resolve ser pombo”,
perpassando por slides de terror, fortes emoções e as diáspora dos “mártires
aqueles que partem, mártires os que ficam. O povo angolano é sofredor. Choro
com ele”. E o cais de Lisboa enche-se de
caixotes vindos de além-mar. Não faltam roubos. No aeroporto as pessoas dormem
sobre malas, gente diferente com roupas coloridas, ar triste, mulheres de
calças e minissaias, o escândalo… (p. 237), a ruína a meio da existência.
Como te entendemos Helena Osório: Adeus
pombo verde, o teu papel já foi representado. Unidos de novo. Podes partir,
voar para bem longe livre de amarras do tempo! Ai estas vontades da vida (ou
destino quiçá), ninguém as consegue controlar… (p. 304-305). Lemos este
extraordinário romance na varanda da nossa casa, como um homem controlado pela
maravilhosa escrita (e não só) da Helena Osório, vislumbrando ao longe o voo
circular dos pombos freados do vizinho columbófilo, com anilha, para não
poisarem no nosso telhado e “ganharem vícios fatais”. Infelizmente, aqui, os
pombos não são verdes.
Uma leitura que se
recomenda, sentado na poltrona em frente à janela. Se possível, em dia de
chuva, depois de se visitar o sótão das recordações.
E, por aqui nos
ficamos.
NOTA MÁXIMA!
1 comment:
Fiquei altamente curioso e, confesso, tenho "necessidade" de ler este livro. Memórias africanas enraizadas por nascimento ou, apenas, o querer "matar" um pouco a nostalgia.
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