Friday, December 05, 2014

O «Corpo» e a alma apaziguada de Célia Meira!...

«Nunca estejas completamente desocupado; lê ou escreve, reza ou medita, ou faz qualquer coisa de útil para a comunidade.»

T. Kempis

CORPO, objecto tangível que muitos dizem opor-se ao espírito, à alma. O conhecimento geral da natureza corporal data da distinção da natureza e do mito no pensamento dos pré-socráticos. Leucipo chegou mesmo a afirmar que «o universo está ao mesmo tempo vazio e cheio de corpos». Contudo, e por outro lado, há quem afirme que a distinção radical da «substância pensante» e da «substância extensa», abrindo a possibilidade de um pensamento puramente objectivo da natureza corporal, sublinha por outro lado a heterogeneidade da alma e do corpo. Para Descartes, por exemplo, a essência da matéria que se manifesta sob a forma de corpos, reside na extensão: «A natureza da matéria, ou do corpo tomado em geral, não consiste no facto de ser uma coisa dura ou com peso, ou colorida, ou que toca os nossos sentidos de uma outra forma, mas somente em que é uma substância que se estende em comprimento, largura e profundidade» – citamos do “Princípios da Filosofia”.
Mas, o que nos traz aqui hoje é o CORPO na sua verdadeira existência, como o corpo que somos, e não o corpo que temos, totalidade indivisa, que caracteriza o nosso ser no mundo… O CORPO, sujeito, em Célia Meira, nascida em Deão, Viana do Castelo, a 19 de Abril de 1982, jovem formada em engenharia civil pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP) e a desempenhar actualmente funções no Controlo de Qualidade em obra. Editou o seu primeiro brado poético, «poesia das letras», em 2012.


Já por várias vezes afirmamos que nunca foi nosso propósito (nem a tal nos atreveríamos) comentar ou explicar poesia, dado que nem uma coisa nem outra se coadunam com o nosso princípio estético da arte e da literatura pelo gosto. Ao desafio lançado pelo bom amigo Gonçalo Fagundes Meira, em apresentarmos o mais recente brado poético da jovem Célia Meira, CORPO, que diz sentir o bichinho das palavras desde que se lembra de si e é na escrita que se encontra, teremos de confessar que sentimos algum receio em permitirmo-nos percorrer tão lentamente este mesmo brado, chamado CORPO, precisamente na dúvida de não estarmos à altura de percorrê-lo “tão lentamente, que o tempo parece pairar…”. Mas como só os fracos não aceitam desafios, resolvemos alinhar no contraditório da distinção radical da «substância pensante» e da «substância extensa», abrindo assim a possibilidade do pensamento puramente objectivo da conciliação, «união substancial» em Descartes. Daí, naquela tarde de 29 de Novembro último, com Célia Meira, termos aceite tal desafio, percorrendo o CORPO “tão lentamente, que o tempo parece pairar…”.
Ouvimos dizer tantas vezes que não é poeta quem quer, mas quem pensa, sente e vive. E a nosso modesto ver, Célia Meira reúne estes três requisitos, porque valoriza o SER existencial: «Piso terra solta, / Piso rocha, piso mar… / O corpo a balançar, / Espírito que navega / E a alma a flutuar! / Sou eu, sou outra…» (p. 13). Neste CORPO poético perpassamos pela Terra em pose imaterial, transfigurando-nos; sentimos o desmoronar de um presente que já foi passado; o coser com afinco «um simples pano amarrotado, / Que carrega agora a dor ao peito / E o meu coração bordado!» (p. 17), numa alusão ao lenço dos namorados; cartas escritas, onde não se sente o receio de escaparem as palavras ou a caneta ficar sem tinta; a incongruência do racional: «Esta incongruência do racional / Que me faz ser só animal / Faz-me bem… / Faz-me tão mal…» (p. 21); o sentir do Alentejo, no calor do silêncio e onde o sol imerso deixa o corpo repousar; regressos que jamais virão e onde pairam olhos de segredo e medo; encontramos expressões matemáticas com letras do poeta, «sem sentido rebuscado / Só lógica aritmética… / Sem significados dúbios / Ou pontuação desordenada, / Somo letras do poeta / Em conclusão desconcertada…» (p. 27); encruzilhadas do destino, onde só a vontade do poeta domina; o negrume do escurecer; o desejo do «corpo em flamejo / Do teu corpo em mim…» (p. 43); a necessidade do estar, intocável, acreditando no acontecer do amor.


Neste “celiano” CORPO poético há ainda memórias; irritações a estados de complacência «em que ocultamos quem somos, / Julgando-nos tão só pela aparência / agindo pelos outros…» (p. 49); formas de ser livre quanto refém de si mesmo; inevitáveis ilusões, condimentadas pelo Amor «que em frémito se dispam os nossos corpos…» (p. 57); ser sem o outro aquém de si próprio; soma de erros e incertezas, subtracção de medos, multiplicação de decisões, divisão de segredos, redundando «Em valor absoluto… / na incógnita do limite do infinito!» (p. 63); prelúdios de dores anunciadas, até que as mesmas adormeçam; cheiro de café no ar; perfume de promessas; pratos e espelhos partidos; tinta da caneta que ensurdece a mão e música que emudece o papel; coração assoberbado em corpo despedaçado: «O choro degola o papel / No silêncio revolto da pele…» (p. 71); dores no olhar, inspirando avidamente o medo; horas que ditam o fim; nada ter para além do pensar: «E o meu coração já era teu / Antes de to querer dar…» (p. 85)     
E poder-se-á perguntar, quem é Célia Meira? Ela mesmo responde: «Não sou voz nem fado, / Nem trago arrependimento / Sou um som cantado / Em silêncio cimento… (…) Não sou bem nem mal / Nem palavra catalogada / Sou só animal e alma apaziguada…» (p. 83). E por aqui nos ficamos, por forma a não condicionarmos a livre interpretação dos potenciais leitores de Célia Meira.
Parabéns Célia Meira! Continua na senda do teu amor livre, porque como propriamente dizes: «É vontade, é querer, / É partilha e felicidade / É vaidade e orgulho, / É saudade…» (p.87).
        Gostamos do que lemos, e isso nos bastou!

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