«Nunca estejas completamente desocupado; lê
ou escreve, reza ou medita, ou faz qualquer coisa de útil para a comunidade.»
T. Kempis
CORPO, objecto tangível
que muitos dizem opor-se ao espírito, à alma. O conhecimento geral da natureza
corporal data da distinção da natureza e do mito no pensamento dos
pré-socráticos. Leucipo chegou mesmo a afirmar que «o universo está ao mesmo tempo vazio e cheio de corpos». Contudo, e
por outro lado, há quem afirme que a distinção radical da «substância pensante» e da «substância
extensa», abrindo a possibilidade de um pensamento puramente objectivo da
natureza corporal, sublinha por outro lado a heterogeneidade da alma e do
corpo. Para Descartes, por exemplo, a essência da matéria que se manifesta sob
a forma de corpos, reside na extensão: «A
natureza da matéria, ou do corpo tomado em geral, não consiste no facto de ser
uma coisa dura ou com peso, ou colorida, ou que toca os nossos sentidos de uma
outra forma, mas somente em que é uma substância que se estende em comprimento,
largura e profundidade» – citamos do “Princípios da Filosofia”.
Mas, o que nos traz
aqui hoje é o CORPO na sua verdadeira existência, como o corpo que somos, e não
o corpo que temos, totalidade indivisa, que caracteriza o nosso ser no mundo… O
CORPO, sujeito, em Célia Meira, nascida em Deão, Viana do Castelo, a 19 de
Abril de 1982, jovem formada em engenharia civil pela Faculdade de Engenharia
da Universidade do Porto (FEUP) e a desempenhar actualmente funções no Controlo
de Qualidade em obra. Editou o seu primeiro brado poético, «poesia das letras», em 2012.
Já por várias vezes
afirmamos que nunca foi nosso propósito (nem a tal nos atreveríamos) comentar
ou explicar poesia, dado que nem uma coisa nem outra se coadunam com o nosso
princípio estético da arte e da literatura pelo gosto. Ao desafio lançado pelo
bom amigo Gonçalo Fagundes Meira, em apresentarmos o mais recente brado poético
da jovem Célia Meira, CORPO, que diz sentir o bichinho das palavras desde que
se lembra de si e é na escrita que se encontra, teremos de confessar que
sentimos algum receio em permitirmo-nos percorrer tão lentamente este mesmo
brado, chamado CORPO, precisamente na dúvida de não estarmos à altura de
percorrê-lo “tão lentamente, que o tempo parece pairar…”. Mas como só os fracos
não aceitam desafios, resolvemos alinhar no contraditório da distinção radical
da «substância pensante» e da «substância extensa», abrindo assim a
possibilidade do pensamento puramente objectivo da conciliação, «união substancial» em Descartes. Daí, naquela
tarde de 29 de Novembro último, com Célia Meira, termos aceite tal desafio, percorrendo
o CORPO “tão lentamente, que o tempo parece pairar…”.
Ouvimos dizer tantas
vezes que não é poeta quem quer, mas quem pensa, sente e vive. E a nosso
modesto ver, Célia Meira reúne estes três requisitos, porque valoriza o SER
existencial: «Piso terra solta, / Piso
rocha, piso mar… / O corpo a balançar, / Espírito que navega / E a alma a
flutuar! / Sou eu, sou outra…» (p. 13). Neste CORPO poético perpassamos
pela Terra em pose imaterial, transfigurando-nos; sentimos o desmoronar de um
presente que já foi passado; o coser com afinco «um simples pano amarrotado, / Que carrega agora a dor ao peito / E o
meu coração bordado!» (p. 17), numa alusão ao lenço dos namorados; cartas
escritas, onde não se sente o receio de escaparem as palavras ou a caneta ficar
sem tinta; a incongruência do racional: «Esta
incongruência do racional / Que me faz ser só animal / Faz-me bem… / Faz-me tão
mal…» (p. 21); o sentir do Alentejo, no calor do silêncio e onde o sol
imerso deixa o corpo repousar; regressos que jamais virão e onde pairam olhos
de segredo e medo; encontramos expressões matemáticas com letras do poeta, «sem sentido rebuscado / Só lógica
aritmética… / Sem significados dúbios / Ou pontuação desordenada, / Somo letras
do poeta / Em conclusão desconcertada…» (p. 27); encruzilhadas do destino,
onde só a vontade do poeta domina; o negrume do escurecer; o desejo do «corpo em flamejo / Do teu corpo em mim…»
(p. 43); a necessidade do estar, intocável, acreditando no acontecer do amor.
Neste “celiano” CORPO
poético há ainda memórias; irritações a estados de complacência «em que ocultamos quem somos, / Julgando-nos
tão só pela aparência / agindo pelos outros…» (p. 49); formas de ser livre
quanto refém de si mesmo; inevitáveis ilusões, condimentadas pelo Amor «que em frémito se dispam os nossos corpos…»
(p. 57); ser sem o outro aquém de si próprio; soma de erros e incertezas,
subtracção de medos, multiplicação de decisões, divisão de segredos, redundando
«Em valor absoluto… / na incógnita do
limite do infinito!» (p. 63); prelúdios de dores anunciadas, até que as
mesmas adormeçam; cheiro de café no ar; perfume de promessas; pratos e espelhos
partidos; tinta da caneta que ensurdece a mão e música que emudece o papel;
coração assoberbado em corpo despedaçado: «O
choro degola o papel / No silêncio revolto da pele…» (p. 71); dores no
olhar, inspirando avidamente o medo; horas que ditam o fim; nada ter para além
do pensar: «E o meu coração já era teu /
Antes de to querer dar…» (p. 85)
E poder-se-á perguntar,
quem é Célia Meira? Ela mesmo responde: «Não
sou voz nem fado, / Nem trago arrependimento / Sou um som cantado / Em silêncio
cimento… (…) Não sou bem nem mal / Nem palavra catalogada / Sou só animal e
alma apaziguada…» (p. 83). E por aqui nos ficamos, por forma a não
condicionarmos a livre interpretação dos potenciais leitores de Célia Meira.
Parabéns Célia Meira!
Continua na senda do teu amor livre, porque como propriamente dizes: «É vontade, é querer, / É partilha e
felicidade / É vaidade e orgulho, / É saudade…» (p.87).
Gostamos do que lemos, e isso nos bastou!
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