«Em “Outonias”, obra de poesia, publicada já
no distante ano de 1988, Domingos da Calçada não se desterra da paisagem onde
levanta o seu memorial, que é a sua aldeia-presépio de Durrães, rincão edénico
onde se fez homem e poeta, do qual vive uma saudade antessentida e sofrida…»
Fernando Pinheiro
Já aqui uma vez escrevemos
(Junho de 2013), a propósito de uma magnífica obra intitulada “Gente do Vale”,
obra que premiaria a importância e a preponderância memorialista de Domingos da
Calçada, um dos maiores – senão o maior – contistas que conhecemos até à
presente data. Afirmamo-lo, na altura, com tal convicção, que não tememos a
rotulação de uma presumível leviandade, que alguém nos pudesse imputar – tal a
nossa estética convicção, da arte e literatura pelo gosto –, dado que já
conhecemos os seus escritos há mais de trinta anos a esta parte,
contextualmente tomada em boa conta, aquando da saída da obra de grande fôlego
«Vale do Neiva: Subsídios monográficos» (1982), hoje uma raridade
bibliográfica, onde Domingos da Calçada deixaria impressos seis magníficos
trabalhos e um soneto. Esse soneto, qual “Senhor do Lírio” (…Agora, brilha ali bem mais escura / a luz
que se desprende lá da altura / contra a muralha – ultraje do martírio / que
dum recanto puro, abençoado, / sujou da mancha odiosa dum pecado / sem reparar,
contra o Senhor do Lírio.) fazia antever a sensibilidade e a alma “Mater”
de um poeta que, respirando, vivendo e sentindo, no dizer de Fernando Pinheiro,
a sua “aldeia-presépio” de Durrães: Adoro-te,
cantinho onde nasci, / jardim de virgens flores perfumadas, / sacrário aonde
guardo as mais sagradas / recordações das horas que vivi! – citamos de
«Outonias», p. 39, nos propõe em fazer desfilar “diante de nós na sua castiça
espontaneidade, tão próprio do minhoto, e preenchem as suas cantantes parlengas
com preciosos localismos que enchem a alma a quem gosta de ser seduzido pelas
novidades semânticas e pela fantasia da linguagem”, paráfrase arrancada à nota
introdutória ao brado poético «Poemas Tardios», magnanimamente assinada por
Fernando Pinheiro, e com a qual corroboramos inteiramente.
Domingos da Calçada,
pseudónimo literário – quiçá, de guerra – de Domingos de Castro Barbosa Maciel,
nascido em Durrães, Barcelos, a 18 de Fevereiro de 1931, foi publicamente
homenageado, em 4 de Julho do corrente ano, por altura da XXXII Feira do Livro
de Barcelos, pela edilidade barcelense, na pessoa do seu presidente Miguel
Costa Gomes, com o Grau Prata, Medalha de Mérito Cultural. Nesse mesmo dia, com
a anuência da «Tertúlia Barcelense», foi dada à estampa «Poemas Tardios»,
pérola da poética regional, porque genuína, perfeita, sentida e saída do
espelho da alma. Em segredo, numa cumplicidade assumida com o amigo comum, Mota
Leite, já o havíamos lido em «Outonias» (conteúdo que, face à raridade, seria
por nós fotocopiado e delicadamente encadernado). «Poemas Tardios», com dedicatória a preceito, ainda que exagerada nas
suas deferentes considerações, admiração e estima, acaba por confirmar a nossa
percepção, da elevadíssima dimensão de carácter, nobreza, humanismo e
sensibilidade criativa em Domingos da Calçada: «Nascer Filho d’Algo ou pobre / que mais tem? Entendo eu / que na falta
de Alma Nobre / até o mais nobre é plebeu…», porque «Há palácios brasonados / a atestar, na fidalguia / de ancestrais antepassados,
/ a mais torpe vilania.» –
Verdade cirúrgica, ajustada à nossa condição de virmos todos ao mundo «à sombra do mesmo Fado: / – ladrão nobre, é
porco imundo, / pobre sério, é Nobre e Honrado!» (p. 41).
«Poemas Tardios» é um magnífico livro de poesia, escrito por um não
menos magnífico poeta – sim, não é poeta quem quer… –, porque, à boa maneira
aristotélica, “encontra-se na epopeia e na tragédia e também na comédia e no
ditirambo, bem como em grande parte na música da flauta e da cítara” (1441a
13-16): «Orgulho da minha Raça, / o Doce
Rio, ao passar, / dando um ar da sua graça / nunca deixa de entoar / melodias
de encantar, / como não consigo ouvir / em qualquer outro lugar / pois, este
Rio, ao passar / no seu manso deslizar, / incapaz de se calar…» (p. 11), ou
“realiza-se pelo ritmo, pela linguagem e pela melodia”, parecendo que «Poesia é virgindade, grito, anseio / de quem
nasceu com alma inconformista / e grava doloroso historial, / burilando
palavras escolhidas / e muito raramente compreendidas, / para compor estrofes /
que são pedaços d’alma, a ressoar / em gritos de mudez interior / cristalizados
no poema…» (p. 14) – simplesmente, sublime. Aqui, nestes «Poemas Tardios», a nosso modesto ver,
não há temporalidades, porque da cinza reacendem-se primaveras, denunciando-se,
ao mesmo tempo, falsos moralismos e hipocrisias, esses sim, intemporais: «Conheço ilustres senhores / que com toda a
hipocrisia / se tornaram ditadores / a pregar democracia. / Há quem chame
democratas / aos palhaços palradores, / que simulam as bravatas / engodando os
eleitores…» (p. 26). E o Pavão expedito,
que passa «a espenujar com jactância / o
seu brio da distância / entre o zero e o infinito!» (p. 31), condimentado
com o “cão rafeiro”, “camaleões” em trasmuda, “zaganeiros” (ratos enormes) de
proa «da ladina rataria, / foram parar a
Lisboa / aos cargos de Alta chefia.» (p. 36), e pessoas «em vaidosa presunção, / valem menos que a
postura / ou a sombra do meu Cão / e, pensando nessa gente / embusteira, que
conheço, / aumento ainda o apreço / pelo meu Cão da corrente!» (p. 37).
E porque seria
despropositada a nossa suposta presunção de deambularmos de uma forma minuciosa
pelo conteúdo desta maravilhosa poética, e porque achamos que a poesia não se
explica (alheado ao facto de que não se pode inventar, o que inventado está),
terminaremos citando o escritor-poeta e editor Fernando Pinheiro: “Ao longo de
décadas, Domingos da Calçada foi coligindo histórias ouvidas directamente da
boca do povo, para as fixar num registo literário que ultrapassa o plano da
ficção propriamente dita, mercê do realismo com que estão impregnadas as
personagens, as situações relatadas, os locais descritos. Quer isto dizer que a
realidade não precisou de ser inventada, porque ela vive e permanece nas
páginas das obras de Domingos da Calçada, e a sua representação simbólica
permite ao leitor um emocionante com a experiência histórica de um povo que
contra ventos e marés sofreu a canga da exploração, combateu as injustiças e
lutou pelo seu progresso”. Subscrevemos inteiramente: «Da panóplia dos punhais / a embeber-me o coração / penetram muitos mais
/ os da pérfida traição!» (p. 38), sumula comportamental de uns tantos
“Escariotes”, que “remordem de inveja / por eu ser quem quero ser / e não quem
querem que eu seja!”. Assim é o saudável AREJO de Domingos da Calçada,
escritor-cronista e poeta do Vale do Neiva, mas cidadão do aquém e além-mundo:
«Ninguém como um poeta, sentirá / nos
voos d’alma para além do aquém, / que o sonho vive lá, na zona etérea / e, para
aquém do além, tudo é matéria» (p. 15). Matéria-prima, de alto quilate,
diremos nós!
NOTA MÁXIMA!
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