«Naquela terra, como provavelmente em todas
as de que há memória, e consoante a forte existência de meninos, carteiros e
ademais amantes de velocípedes, haveria de existir sempre um homem como o Sr.
Cícero.»
Miro Teixeira
Depois de termos feito
uma pequena “nota opinativa” acerca da novela «Corre!», de Casimiro Teixeira,
estávamos longe de imaginar que tal “atrevimento” levar-nos-ia à dupla
responsabilidade de fazermos a sua apresentação pública, em Viana do Castelo.
De uma leitura,
inicialmente apressada, passamos à degustação das palavras escritas do Miro
Teixeira, o outro lado do espelho do Casimiro, com o intuito de lhe esmiuçarmos
algo mais que pudesse acrescentar ao pequeno texto, colocado na “aba” da
contracapa do livro que ora iria apresentar: «Um escritor, para se assumir como
tal, tem que ser um observador nato e saber transmitir, sem recurso à imagem,
os verdadeiros cenários físicos e psicológicos da vida, caracterizando as
personagens e desvendando intimidades. Os verdadeiros escritores sabem dar
testemunho das suas mundividências, sem subterfúgios laboratoriais, muitas
vezes carunchados por aquilo que deveras sentem. Miro Teixeira é um escritor
autêntico, porque cumpre a sua missão, enquanto observador e tecelão da
escrita.» Esta nossa impressão, com as devidas desculpas pela redundância, e
como anteriormente referimos, acabou por ser impressa na “aba”, fazendo-nos
cumpridores de uma etapa para a qual se nos impunha apenas falarmos do autor e
da sua forma de escrita. Apresentar a novela seria outra coisa.
No dia da apresentação,
condicionados pelo estado negativo do torpor da morte do nosso amigo e excelso
escritor Luís Miguel Rocha (1976-2015), ainda ponderamos ficar mesmo pela
primeira impressão, por forma a não influenciarmos os hipotéticos leitores,
libertando-os de condicionalismos de interpretação, quase sempre subjectiva.
Mas, ao sermos convidados para o fazermos, mesmo que condicionados por essa
subjectividade, não seria justo se não nos estendêssemos um pouco mais no
desvelar do principal enigma de poder alguém
um dia morrer, sem nunca ter vivido ou conhecido o amor, qual paralelo
estigma com o passamento do Luís Miguel.
É evidente que ninguém
estaria à espera do desvendar de todo o trama “novelo-literário” do Miro
Teixeira, dado que aí arriscaríamos ao promíscuo abuso de diminuirmos o
interesse dos leitores, pela aquisição da obra, quando a principal
“causa-efeito” da nossa presença ia no sentido contrário. Mesmo assim, não
resistimos à tentação de volatearmos um pouco sobre o riquíssimo
“puzzle-lexical” desta estranha história
de amor e morte anunciada, protagonizada por um personagem tão insólito que se
arrisca a ser demasiado real para acreditarmos que poderá mesmo existir ao
nosso lado – citamos da sinopse.
Neste “correr” de Miro
Teixeira perpassam “bastiões de eterno retiro”; “coca-bichinhos” que vivem em
boas assoalhadas; margarinas barradas “até à exaustão”, em dias normais;
senhoras que levam “a mão ao cabelo, num segundo, mais discreto, ajeita o
oscilar do seio dentro da blusa”; revoltas “contra a condição humana”; bancos
humedecidos pela geada da manhã; fugas à rotina; mesas iluminadas “pela luz
cálida do mar em frente”; sardinhas assadas “na brasa, como prato do dia”;
dissipações das “cores da vergonha do rosto”, toldando-se “com um semblante de
serenidade”; doenças e desistências “da pressa que a morte lhe encomendou”;
sorrisos gelados; sonhos “em atravessar mares e descobrir novos continentes”;
naufrágios reais em pleno oceano, alegoricamente plasmados na “refém náufraga
de uma vida soturna e só”; olhares de esguelha “numa impaciência crescente,
porque começava a acreditar que havia exagerado na explosão de liberdade”;
corações padecentes, ofegantes, “mais um momento e parecia que do seu peito
iria irromper uma torrente imparável de ar contido à força, rasgando-lhe a carne
e os ossos com a pressão” – se isto pode acontecer aos mais novos, quanto mais
ao Humberto Crica, principal personagem deste «Corre!»; hereditariedade no
“conhecer a fundo as suas partes de carne”, assente no milagre da genética, que
já “vinha desde os tempos do seu trisavô, que era Crica sim, mas por ser afeito
ao mulherio”; escuridões insidiosas que se apoderam dos pensamentos e não
deixam em paz um só instante; caminhos abertos por entre a multidão, que muitas
vezes nos evitam, como se de leprosos, nos tratássemos; cheiros a maresias;
dicotómicas vivências entre uma fábrica de leite e uma oficina de reparações; o
vestir do “fatinho surrado de algodão no meio do inverno alentejano”: – Já estou vendo, esse seu ar de canito
assustado vai dizendo tudo. Vá… abale daqui copito de lete dum raio. Não vales
um chocalho d’erva. Simplesmente magnífico, diremos nós.
E mais não diremos, a
não ser o facto de acrescentarmos o lado estético da obra, enquanto produto
final, primorosamente editada pela “Versbrava” e a Arte a ela associada, com as
ilustrações de Helder Sanhudo, uma outra forma de complementaridade sem ofuscar
a criatividade literária de Casimiro Teixeira, este homem nortenho de gema, e
amante profundo das suas raízes, sobretudo da cidade que o viu nascer, Vila do
Conde. Helder Sanhudo ao fazê-lo, fê-lo com o sentido estético da literatura
precisar sempre de um estímulo, como forma de nos levar a ler. E esse estímulo
pode passar, também, pela imagem. A imagem não é literal, de explicar o que
está no conteúdo, mas, antes, funciona como um parceiro.
Parabéns a todos, e de uma forma particular ao Casimiro Teixeira!
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