«O que até agora se afirmou em geral sobre a
relação do sujeito com o objecto, mesmo em relação a objectos sensíveis, é
“especialmente” válido no caso da relação do sujeito com o “objecto religioso”».
Ludwig Feuerbach
(In, A Essência do Cristianismo.
Ed. Fundação Calouste Gulbenkian)
Começando por
exteriorizar o “objecto sensível”, Feuerbach acaba por colocar o “objecto
religioso” como um objecto intrínseco
ao próprio homem, ou seja, dentro dele. Por isso, Deus aparece mais
estritamente ligado ao homem do que o corpo à alma. Enquanto o “objecto
sensível” é em si indiferente, porque
independente da convicção, da faculdade de julgar; o “objecto da religião” é um
objecto eleito, sendo que pressupõe
um juízo crítico. Daí se depreender
que o objecto do sujeito não é mais do que a essência objectividade do próprio sujeito: “Tal como o homem é objecto para si, assim Deus é objecto
para ele; tal como pensa, tal como sente, assim é o seu Deus. Tal o valor que o
homem tem, assim o valor – e não mais – que o seu Deus tem” (Feuerbach, 1994:
22). Numa contraposição ao princípio supremo de Hegel, quando este afirmou o saber do homem sobre Deus é o saber de
Deus sobre si mesmo, Feuerbach postula o saber do homem sobre Deus como o saber
do homem sobre si mesmo, ou por outras palavras: A consciência de Deus é a consciência de si do homem, o conhecimento de
Deus o conhecimento de si do homem. Segundo o mesmo filósofo, “o que para o
homem é Deus, isso é o seu espírito, a
sua alma, e o que para o homem é o
seu espírito, a sua alma, o seu coração, isso é o seu Deus”. Estamos,
assim, perante o Deus interior revelado,
o “si-mesmo” do homem expresso. Por outro lado, a religião revela-se no
desvendamento festivo dos tesouros escondidos do homem e/ou na confissão dos
pensamentos mais íntimos do homem, ou seja, naquilo que Feuerbach diz ser a proclamação pública dos seus segredos de
amor. Para ele, o homem começa por lançar a sua essência para fora de si,
antes de a encontrar em si. Por isso, se, na religião, a consciência de Deus é
referida como a consciência de si do homem, o homem religioso, ao ter
consciência de Deus acaba por ter consciência de si, da sua essência: “Para eliminar
esta incompreensão, é preferível dizer: a religião é o primeiro, mas indirecto,
conhecimento de si do homem. É por isso que em toda a parte, tanto na
história da Humanidade, como na história do indivíduo, a religião precede a
filosofia” (Feuerbach, 1994: 23). Esse preceder da religião reside,
precisamente, no facto de que aquilo que nas primeiras religiões foi tido como objectivo, é hoje reconhecido como subjectivo.
A religião precedente,
a do Deus objectivado, viria a ser considerada pela religião posterior como
idólatra, dado que o homem adorou a sua própria
essência, ou seja, segundo Feuerbach, o homem objectivou-se mas não
reconheceu o objecto como a sua essência. Contudo, cada religião posterior, ao
considerar as suas irmãs mais velhas como idólatras, acaba por se subtrair a si mesma da essência universal, e,
desta forma, usufruir da condição necessária para vir a ser religião. O
filósofo alemão chama a isto de progresso
na religião, um conhecimento de si mais profundo. Nesta circunstância a
religião posterior, por se elevar acima do conteúdo das anteriores, atribui às
mesmas (precedentes) o que é a culpa da religião em geral e dado imaginar que o
seu objecto, o seu conteúdo, é sobre-humano: “Mas o pensador para quem a
religião é objecto, o que a religião
não pode ser para si mesma, descobre a essência da religião que para ele está
oculta” (Feuerbach, 1994: 24). O mesmo filósofo alemão procura assim demonstrar
que esta oposição do divino e do homem é ilusória. O objecto e conteúdo da
religião cristã acabam por ser inteiramente humanos e a essência divina é a essência do homem purificada, porque liberta
das limitações do homem individual. Daí se concluir que todas as determinações
da essência divina são, invariavelmente, determinações do próprio homem.
Tendo em conta que uma
essência sem determinações é uma essência nula, porque não-objectiva, o homem
ao afastar de Deus todas as determinações, acaba por “imprimir” em Deus um ser negativo. Para Feuerbach, a
negação do sujeito é considerada uma irreligiosidade, até mesmo ateísmo: “Para
o homem verdadeiramente religioso, Deus não é um ser desprovido de
determinações, porque é para ele um ser certo,
real. A ausência de determinações – e a incognoscibilidade de Deus, que lhe
é idêntica – é, portanto, apenas um fruto dos tempos recentes, um produto da
incredulidade moderna” (Feuerbach, 1994: 25). O homem desculpa-se com a
incognoscibilidade de Deus, pelo facto de, circunstancialmente, se ter perdido
no mundo. Nega Deus pela acção, mas não teoricamente. O mundo ao absorver todos
os seus sentidos e pensamento, o homem deixa de discutir a existência de Deus,
deixando-a subsistir. Feuerbach afirma que esta existência não afecta nem
incomoda o homem, por se tratar apenas de uma existência negativa, uma existência
sem existência, uma existência contraditória – “um ser que, pelos seus
efeitos, não se pode distinguir do não-ser” (Feuerbach, 1994: 25). O homem, ao
negar determinados predicados positivos da essência divina, e apesar de possuir
para si uma aparência de religião –
para não ser reconhecida como negação
–, acaba por negar a própria religião. Esta atitude é denominada por Feuerbach
como um subtil e astucioso ateísmo.
Para o mesmo filósofo alemão, fazer de Deus um ser finito, por pretensa
vergonha religiosa, reflecte apenas o desejo irreligioso, ou seja, nada querer
saber acerca de Deus, tirando-o dos sentidos – Quem tem vergonha de ser finito, tem vergonha de existir [50]. Só
quando o homem perde o gosto pela religião é que a existência de Deus se torna
numa existência insípida: “Uma existência em
geral, uma existência sem qualidade, é uma existência sem gosto, insípida. Ora em Deus não existe mais do que na
religião” (Feuerbach, 1994: 26).
Outro factor
preponderante para a denominada “destruição da paz da religião”, segundo
Feuerbach, reside na distinção – ainda que infundada e inconsciente – entre
aquilo que Deus é em si e aquilo que
é para o homem, concedendo este que os predicados da essência divina sejam
determinações finitas, ou seja, determinações do próprio homem, alegando-se, ao
mesmo tempo, que é necessário formar certas representações acerca de Deus: “Não
posso de modo algum saber se Deus em si ou para si é algo de diferente do que é
para mim; tal como é para mim, assim é tudo para mim. Porque é justamente
nesses predicados nos quais ele é para mim que reside, para mim, o [52] seu
ser-em-si-mesmo, a sua própria essência; ele é para mim tal como poderá ser
sempre para mim” (Feuerbach, 1994: 26-27). Assim, o homem religioso, ao não
conhecer outra relação senão a relação dele com o que Deus é – pois Deus é para
ele o que pode ser para o homem em geral –, acaba por se elevar acima de si
mesmo, sendo que esta elevação não passa de uma ilusão.
Boa reflexão e até para a semana!
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