«Enquanto esteve em Coimbra, fosse porque se
tivesse embrenhado totalmente na conclusão do curso, fosse porque se sentiu
comodamente amparado pelos costados da velha família que lhe esmaltavam a
origem fidalga mais a ascendência castrense, desvalorizou a obrigação de se
apresentar às inspecções militares e foi considerado faltoso.»
Domingos da Calçada
Com esta pequena
citação, atrevemo-nos a dar-lhe o cunho pragmático do significado da virtude,
assente na força, poder, poder de uma coisa, eficácia. «MUITOS PECADOS – POUCAS
VIRTUDES», contos e crónicas do Vale do Neiva, virtudes e sabedoria do grande
memorialista DOMINGOS DA CALÇADA, arquitecto da sabedoria, da palavra e do
destino das gentes do Vale do Neiva, este HOMEM DO POVO onde o factor criativo
se espelha na realidade que não precisa de ser inventada, porque, no dizer do
seu editor e nosso particular amigo Fernando Pinheiro, «ela vive e permanece nas páginas das obras de Domingos da Calçada, e a
sua representação simbólica permite ao leitor um encontro emocionante com a
experiência histórica de um povo que contra ventos e marés sofreu a canga da
exploração, combateu as injustiças e lutou pelo seu progresso». No dia 31
de Maio (Domingo), lá fomos até Durrães, num amplexo sincero a Tregosa, porque
agora irmanada na “União de Freguesias”, para apresentarmos mais uma obra deste
grande escritor que utiliza uma linguagem pura, peculiar, plena rusticidade e
de termos caídos em desuso, imprimindo-lhe um estilo quase camiliano, no que
toca à «violenta intromissão da
consciência narradora no plano da expressão», no dizer de Eduardo Lourenço.
E começaremos
precisamente pela Virtude, enquanto hábito que se torna possível, à boa maneira
aristotélica, por haver previamente nela uma potencialidade ou capacidade de
ser de um modo determinado. De facto, não basta contentarmo-nos com o dizer que
a virtude é hábito ou modo de ser, antes é preciso dizer também de forma
específica qual é esta maneira de ser em Domingos da Calçada, carácter
específico do ser humano maravilhoso que ele é, bem próprio e intransferível,
no sentido lato dos actos necessários à virtude, aquilo que faz que cada coisa
seja o que é, sem máscaras ou artefactos similares, dado que,
circunstancialmente, as máscaras retiram racionalidade à virtude.
Quanto aos pecados,
aspectos catódicos da razão, inerentes à força abstractiva da inteligência
humana, revelam-se através das funções da consciência, razão e memória. São
esses os pecados de Domingos da Calçada: consciência, razão e memória.
Acrescentaríamos, a inteligência auxiliada pelos sentidos, faculdades que
apresentam o objecto que, abstraído das propriedades materiais e concretas, se
unem à inteligência, derivando da natureza do ente. Daí, ser pacífica a
dualidade impressa por Domingos da Calçada, entre os “muitos pecados e poucas
virtudes”, ou vice-versa.
É evidente que não
iremos aqui esmiuçar ou desvelar conteúdos deste magnífico livro de contos e
crónicas do Vale do Neiva, pois se eventualmente o fizéssemos, face à
subjectividade da nossa apreciação (sim, uma apreciação é sempre subjectiva),
isso não seria bom nem para o autor nem para o editor, e, sobretudo, para os
leitores. Compete-nos apenas aguçar o apetite dos potenciais leitores
(compradores), glosando a caracterização das personagens, estados psíquicos,
espaços temporais e comportamentais; a genuína expressão lexical do autor e a
facilidade com que nos prende a sua criatividade literária.
Por este «Muitos
Pecados – Poucas Virtudes» perpassam Regedores, daqueles que, ao tempo, «costumava dizer-se, consoante o padrão
económico do meio, que era genericamente pobre, que quem tivesse um conto de
réis a juros podia usar gravata e andar de costas direitas toda a semana, sem
precisar de vergar a espinha a manejar a sachola»; criados de servir,
materializados no Alfredo da Torre, «coitado.
Poucos criados de servir foram mais tosados e explorados do que ele» e na
Velhinha de Rosendo: «Falou muito, a
velhinha, no pouco tempo de que podíamos dispor»; as histórias contadas,
por um pedreiro de Durrães, chamado Adelino Fernandes do Campo, mais conhecido
por Adelino Gateiras, um bom conversador que nos derradeiros anos de vida foi
deixando para a posteridade várias histórias e casos, quer da sua própria
vivência, quer do seu conhecimento pessoal, evitando com a sua verve que
caíssem no vazadouro do esquecimento, realçando a do caso do “barrelo” do Tio
Lãos de Santa Lucrécia: «Foi famosa a
“casa das trancas” duma quinta de Cossourado, que serviu de exemplo ou modelo a
várias outras de freguesias ao redor»; o Bento Peliqueiro, negociante de
peles, «depois de mais duma semana por
terras desconhecidas, sempre a caminhar, a passar fome e a cansar as pernas. O
traste espalhou a falsa notícia da sua morte…»; o Ti’Joaquim e o “relaxe da
décima”, permitido e auscultado pela Rosa da Fontainha, curadora de maleitas; a
compra da espingarda por Antonces, «presumido
e obcecado pela usura, que praticava sem o mínimo engulho moral, colocava o seu
exclusivo interesse e imagem no vértice de uma pirâmide, cuja base esmagava os
pobres e os simples…», ao Zé Sambento.
Por este magnífico
livro de Domingos da Calçada, perpassam ainda gente incrível como o Zé da
Beata, aquela pessoa que, segundo Domingos da Calçada, «nas suas bizarras conjecturas, se considerou como o mais importante
exemplar da espécie humana que jamais existiu à face da terra…»; o
professor Domingos Gomes e a pupila D. Amélia, «mulher enigmática, que punha especial cuidado no aspecto físico,
sobretudo com o vestuário que lhe fazia sobressair as bem delineadas formações
do corpo»; o Moisés, filho dum artista que foi desenhador e pintor de alta
sensibilidade e reconhecido mérito, mas que «não encarreirou na esteira das tintas e do craião, que preenchiam as
horas e o mundo intelectual do seu progenitor»; o Pato Velho e o Abade
Marrancos (assim alcunhado pelas línguas afiadas em lanceta dos velhos
capareirenses), dois feirantes que «entachavam
tamancos para vender nas feiras e à porta, mas o Pato dedicava-se também à
compra de cereais, sobretudo milho, com que chegava, numa só feira, a carregar
em pleno um carro puxado a cavalos»; a Virgínia, aquela que «tinha perdido o homem dois anos e meio
depois do casamento»; o doutor que trocava por outras a sua prendada
senhora, como faziam os antigos reis, nobres e fidalgos; e, o Francelino da
Mata, aquele cuja «inquietação dominava-o
à laia de remorso…».
O acto perfeito da
criatividade memorialista e literária de Domingos da Calçada, evidencia-se
também na composição dos enredos, harmonizada pelo bem doseado antagonismo do
pecado e da virtude. Nada como um bom enredo para podermos afirmar, com
justeza, à boa maneira aristotélica, «que
uma tragédia é diferente ou igual: é igual quando tem o mesmo nó e desenlace.
Mas muitos que estruturam bem o nó elaboram mal o desenlace» (Poética,
1456a: 5-10). Ao contrário das preocupações educacionais de Aristóteles,
Domingos da Calçada, é mestre em harmonizar o nó e o desenlace. São bem exemplo
disso: Padres, Padrinhos e Padrecas; O Ladrão das Cabaças; O Inocente; O
Rapinanço; e O Moreno. Tudo está em «Muitos Pecados – Poucas Virtudes», através
das palavras, emoções, histórias e espaços colectivos, desejos, ideais,
conflito de gerações, rectidão e frontalidade, inocências enganadoras,
prosperidade e bem-estar, aventuras desventuradas pela ambição e a ganância.
Tudo numa escrita escorreita, escorreitamente perfeita.
NOTA MÁXIMA!
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