«O bom senso é a coisa do mundo mais bem
distribuída; porque cada um pensa estar dele tão bem provido que mesmo os mais
difíceis de contentar em qualquer outra coisa não costumam desejar mais do que
o que têm…»
René Descartes
Estávamos longe de
imaginar que, após tantos disparates escritos nas “redes sociais”, em
consequência dos atentados terroristas em Paris – sendo o mais grave um com um
cartoon estampado com um yihadista e rostos de Catarina Martins e Mariana
Mortágua, borrado a “diarreia mental” por um fulano, irremediavelmente
irracional, com os seguintes dizeres: «Também
cá temos meninas esganiçadas fabricantes de terrorismo» –, teríamos que
quebrar o nosso premeditado silêncio, já que o vaticínio há muito se encontrava
plasmado em «Baliza trágica de um naufrágio».
Por isso, com base no Método da Dúvida, método esse que levou
até à exaustão, a famosa frase Descartes «cogito
ergo sum» – «penso, logo existo»
– acabaria por não corresponder efectivamente ao verdadeiro sentido do seu
pensamento, já que nas Meditações, permitir-se-ia
a “corrigir” para «Eu sou, eu existo, é
necessariamente verdadeiro sempre que exposto por mim ou concebido na minha
mente». Parafraseando Nigel Warburton, a dúvida metódica (cartesiana)
implica a consideração de que todas as anteriores convicções são falsas. Só se
deve acreditar em algo se se estiver absolutamente certo de que esse algo é
verdadeiro, devendo a mais insignificante dúvida acerca da sua veracidade ser
suficiente para o rejeitar.
Segundo René Descartes,
para examinar a verdade é necessário, pelo menos uma vez na vida, pôr todas as
coisas em dúvida, tanto quanto se puder. O seu pensamento tem origem no
reconhecimento da autonomia de um sujeito que reivindica a autoridade única da
razão em matéria de conhecimento. Considerado como um símbolo do espírito
racionalista – inicia-se o declínio dos dogmatismos e afirma-se a omnipotência
de uma razão consciente da sua capacidade de tornar o homem dono e senhor da
natureza –, a sua filosofia alicerça-se em três objectivos fundamentais:
1. Formular o
verdadeiro método «para atingir o
conhecimento de todas as coisas na medida das possibilidades do meu espírito»;
2. Investigar os
princípios de base que permitem a constituição de um sistema total do saber;
3. Preparar a via para
«a mais elevada e mais perfeita moral
que, pressupondo um conhecimento total das outras ciências, é o último grau de
sabedoria».
No sistema de
Descartes, existe um mundo físico regido pelas leis deterministas da Natureza e
um mundo mental da consciência solitária. Os seres humanos, ao serem compostos
de corpo e mente, equilibram-se – segundo Anthony Kenny, desconfortavelmente –
entre os dois mundos. Ao contrário da maior parte dos pensadores anteriores ao
filósofo francês, em que os animais diferiam dos seres humanos pelo facto de
não serem racionais – embora se assemelhassem pelo facto de possuírem a
capacidade da sensação – para Descartes os animais irracionais não passavam de
máquinas. Para ele, um animal não poderia ter uma dor, embora a máquina do seu
corpo pudesse levá-lo a reagir de forma semelhante ao de um humano, manifestando
uma expressão de dor:
“Não descortino
qualquer argumento que prove que os animais têm pensamentos, excepto o facto
de, tendo ele olhos, ouvidos, línguas e outros órgãos sensoriais como os
nossos, parece provável que tenham sensações como nós; e, estando o pensamento
incluído no nosso modo de sensação, parece que lhes podemos atribuir
pensamentos semelhantes. Este argumento que é muito óbvio, tomou posse da mente
dos homens desde o começo. Mas há outros argumentos, mais fortes e mais
numerosos, ainda que não óbvios para toda a gente, que insistem fortemente no
contrário”.
Segundo Anthony Kenny,
esta doutrina não pareceu tão chocante aos contemporâneos de Descartes – cujo
pensamento se estruturava em dois grandes princípios: o de que o homem é uma
substância pensante e o de que a matéria é extensão em movimento –, mas alguns
dos seus discípulos, “dissimularam” algum confronto, ao afirmaram que os seres
humanos, tal como os animais, não passavam de máquinas complicadas.
E como já uma vez
escrevemos, numa das nossas anteriores crónicas, em jeito de conclusão diríamos
que um dos aspectos principais do projecto e método em Descartes é a opção de
usar a primeira pessoa no discurso. Ao usar a primeira pessoa nos seus textos,
resulta no percurso que o levou a um caminho certo – mostrar o processo em vez
dos resultados, como se chega ao conhecimento.
Através da “árvore do
conhecimento”, organização hierarquizada do conhecimento, cujo modelo do método
é fornecido pela matemática – modelo imperativo de Descartes para reformar todo
o conhecimento –, o mesmo apenas deve ser construído através da razão humana.
Em suma, o mesmo
filósofo propõe na tarefa de libertar a filosofia do cepticismo. A dúvida é
apenas um instrumento em uso na investigação.
Perante os últimos
acontecimentos de terror, do qual não excluiremos o verbal, a nosso modesto
ver, teremos que repensar o facto se alguns dos discípulos de Descartes, ao
“dissimularem” algum confronto com o Mestre, não teriam razão quando afirmaram
que os seres humanos, tal como os animais, não passavam de máquinas complicadas.
A irracionalidade de alguns permite-nos assim concluir!
No comments:
Post a Comment