«Com a televisão, a rádio transforma-se num
veículo mais elucidativo. Só quando fornece informações à vista é que cumpre a
sua função – não a única nem talvez a mais importante – de nos possibilitar a
observação imediata de que se passa no mundo em que vivemos…»
Arnheim
A curiosidade do homem
ultrapassa o alcance dos sentidos. Entre as invenções técnicas que contribuem
para diminuir esta disparidade, a televisão é das mais importantes. O
surgimento deste novo invento parece simultaneamente mágico e misterioso.
Desperta a curiosidade: como funciona? O que nos proporciona?
A televisão é um
parente do automóvel e do avião: um meio de transporte cultural. Na verdade, é
apenas um instrumento de transmissão que nos oferece novos meios para a
interpretação artística da realidade, como o fizeram a rádio e o cinema.
Todavia, à semelhança das máquinas de transporte, que foram a dádiva do
progresso industrial do século XX, a televisão veio alterar a nossa atitude em
relação à realidade: faz-nos conhecer melhor o mundo e, sobretudo, dá-nos uma
sensação da multiplicidade de coisas que acontecem simultaneamente em sítios
diferentes. Pela primeira vez na história do esforço da aventura humana para o
conhecimento das coisas, a simultaneidade pode ser sentida como tal, e não
apenas traduzida como uma sucessão no tempo. Os nossos corpos lentos e os olhos
míopes deixam de constituir um entrave. Chegamos à conclusão que o lugar em que
vivemos é um entre muitos: tornamo-nos mais modestos, menos egoístas.
Quanto mais perfeitos
forem os nossos meios de conhecimento directo, mais facilmente cairemos na
perigosa ilusão de que sentir é equivalente a saber e compreender.
A televisão é uma prova
nova e dura da nossa sabedoria.
A ida ao cinema, essa
sala de magia objecto de autêntico culto social durante décadas passa a ser
substituída pelo visionamento da televisão desde os programas em família até ao
apreciar da série mais sugestiva na solidão individual, impedindo
inclusivamente o contacto directo com os seus semelhantes. Deixamos de
necessitar de companhia para comemorar ou lastimar, aprender, divertir, aclamar
ou protestar. Verificamos que a televisão compensa a presença física real,
pois, quanto mais só estiver o indivíduo no seu isolamento, mais precária se
torna, em correspondência directa, a situação da balança comercial: uma enorme
acumulação de bens, consumidos sem retribuição.
A televisão oferece o
produto final de um século de desenvolvimento que saiu do acampamento, do
mercado, da arena, das nossas salas de concerto, teatro e cinema, para o actual
consumidor solitário do espectáculo. A televisão, que no início da sua
actividade foi rival do cinema, passa a ser uma excelente ajuda para a
recuperação do “ofício do século XX”. É que, no âmbito da produção audiovisual,
o filme continua a ser o principal produto: quer porque pode ser transaccionado
em todas as sedes do mercado audiovisual, quer porque pode ser difundido
através de sala, televisão, videocassete, videodisco, etc. Chega-se mesmo a um
estado de aguda prática filmofágica, que talvez seja inevitável no quadro
daquela outra função televisiva essencial que é a de ser a mais prodigiosa
cinemateca que alguma vez existiu, com a vantagem insuperável de não ter
directores e sub-directores que se crêem e “arrogam” de proprietários das
cópias. É caso para dizer mesmo que a televisão, como fazem alguns canais,
incluindo a RTP Memória, se limitasse a repor filmes “velhos”, já a sua existência
se justificaria.
O vídeo, que é um
instrumento adventício, permitiu-nos ver todos os dias e todas as noites esses
filmes que são eternos. É assim que podemos gravar, passar, repor, fazer
reviver a glória que foi o passado do cinema, ou seja, a televisão (e família)
possibilita-nos ter uma cinemateca própria, o que é bem inestimável porque, em
cultura, o prazer deve converter-se em haver. Nunca como hoje tivemos tantas
possibilidades de aceder ao conhecimento (à posse) do cinema passado e presente,
das suas obras mais significativas e também das outras, que são indispensáveis
para compreendermos a que ritmo e percentagem esta arte tão jovem tem produzido
obras-primas. Outrossim, não é possível negarmos que foi a televisão que
desenvolveu as inovações mais surpreendentes da forma cinematográfica nos
últimos tempos: do videoclipe ao docudrama sem esquecer o serial.
O cinema teve e superou
várias crises que, como todos sabemos, são acontecimentos cíclicos e portanto
inevitáveis.
Pensamos voltar a abordar esta temática dado que, ao tempo das nossas
deambulações académicas, no plano da «História e Estética do Cinema», chegamos
a apresentar um programa, cujos objectivos passavam por reflectirmos e darmos a
conhecer a importância do cinema na vida e na cultura humanas; conhecermos a
história do cinema, as suas fases evolutivas, os segmentos marcantes do seu
desenvolvimento e os marcos da sua consolidação; interpretarmos o papel do
cinema face ao aparecimento e afirmação da televisão; identificarmos os novos desafios
que se colocam na actualidade a esta arte, nomeadamente, a formação e
aculturação de mentalidades de públicos e opiniões e os cultos que potenciam e
geram… A massificação da produção e a ditadura dos novos suportes!
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