“O conceito de justiça
distributiva tem tanto a ver com ser e fazer como com ter, tanto com a produção
como com o consumo, tanto com a identidade e a posição como com a terra, o
capital ou os bens pessoais”
Michael Walzer
Hoje, porque será sempre oportuno questionarmos
sobre a igualdade complexa, tomamos a liberdade de exorcizarmos o nosso
“subconsciente” com o pensamento do teórico (filósofo) americano Michael Walzer,
que ao longo da sua vida tem desempenhado um papel importante no relançamento
de uma prática, questão ética e focada no desenvolvimento de uma abordagem
pluralista da vida política e moral, quando nos previne para o facto da
igualdade, entendida literalmente, ser um ideal constantemente atraiçoado. Vai
mais longe, ao afirmar que “homens e mulheres empenhados traem-no [ao ideal],
ou parecem fazê-lo, mal organizam um movimento para a igualdade e distribuem
poder, posições e influências entre si”. Tal prática, quando olhamos para a
conjuntura e comportamentos presentes – e aqui convergimos,
circunstancialmente, para febrilidade política portucalense, tão crente no
passado imperialista, mas de costas viradas ao mar e de cócoras perante o
capitalismo internacional (o da terra batida, mas queimada) –, parece que o
“espelho mágico” da sociedade vai no sentido contrário ao compartilhar, dividir
e trocar. Segundo o mesmo teórico americano, “a justiça distributiva é um
conceito amplo” e deveria pôr o universo dos bens totalmente ao alcance da
reflexão filosófica. É este pluralismo complexo, o particularismo da história,
da cultura e da qualidade de membro – muitas vezes não se sabe bem de quê –,
que condiciona a construção humana da justiça, diríamos nós, tão antiga como a
própria filosofia.
Para Michael Walzer, as práticas testemunhadas pela
história (sobre as quais nos recusamos a reflectir) revelam-nos que o
imperialismo do mercado requer outro tipo de redistribuição que não é tanto uma
questão de traçar um limite, mas mais de voltar a traçar esse mesmo limite. O
que vemos aqui em causa é o predomínio do dinheiro fora da sua esfera inicial, referindo-se
à capacidade que homens e mulheres ricos têm para negociar favores, comprar
cargos públicos, corromper os tribunais e exercer o poder político. Infelizmente,
este é um retrato tão actual na nossa sociedade (portuguesa, porque não) que,
por se tornar vulnerável à negociação de favores, à “compra” de cargos
públicos, à corrupção dos tribunais e ao exercício do poder político, contraria
a justiça como norma do direito. E a justiça a que nos referimos difere tanto
da virtude platónica como da virtude cristã, “e isto, de três pontos de vista:
não é uma qualidade puramente interior mas diz respeito exclusivamente às
relações com o outro; não inclui a relação do homem com o divino; não constitui
necessariamente um ideal de perfeição: um cidadão justo não é, por isso, um
santo!” – como escreveriam Élisabeth Clément, Chantal Demonque, Laurence
Hansen-Løve e Pierre Kahn. No entanto, para nós, a justiça, em conformidade com
as teorias de inspiração aristotélica – que tanto admiramos e nos inspiram –, deveria
repousar num duplo princípio: o da igualdade e o da equidade, ou então,
parafrasiando Luc Ferry e Alain Renaut, deveria ser concebida como um equilíbrio
das liberdades individuais, temperada por instituições que garantem uma
solidariedade social efectiva, e realizada no quadro do que se chama o Estado
de direito. E isso está a ser desvirtuado na sociedade presente, agarrada cada
vez mais ao conceito da propriedade privada, como oposição à propriedade
social, colectiva. Daí, assistirmos à descapitalização dos bens públicos, por
forma a aliviar a responsabilidade da máquina pesada do próprio Estado.
Outro problema que se coloca à sociedade
contemporânea é o exercício da cidadania, ou seja, da qualidade de membro de
qualquer comunidade, sendo que esse exercício é inalienável quando se reflecte
sobre a justiça. Para Michael Walzer, o justo é identificado qualitativamente
como igualdade complexa, o regime que, em termos formais, “significa que a
situação de qualquer cidadão em determinada esfera ou com respeito a
determinado bem social, nunca pode ser abalada pela sua situação noutra esfera
ou com respeito a outro bem social”. Felizmente que vai havendo a consciência
social de que o poder dos detentores de cargos é de difícil limitação. Se por
um lado entendemos que o exercício de um cargo é uma razão importante para se
exercer autoridade, por outro a autoridade dos profissionais e dos burocratas,
mesmo quando qualificados, não é simpática. Sempre que podem, utilizam os
cargos para estender o seu poder para além do permitido pelas suas
qualificações e do requerido pelas suas funções. É por isso, dentro do hodierno
princípio democrático e da motivação dos colaboradores, deveria ser tão
importante que os homens e mulheres que se encontram submetidos à autoridade
dos detentores de cargos, tenham voto na determinação da natureza daquelas
determinações. E isso não acontece, porque os detentores de cargos pensam demasiado
em si, num total desrespeito pela relação com os outros, nomeadamente aqueles
que contribuíram para as suas entradas ou permanências no poder. Assim, mentir
e contornar a justiça passou a ser uma prática comum nesta sociedade onde se
instituiu a bajulação, a duplicidade e a manipulação, como princípios básicos
do bem-estar de uns poucos. Diríamos, como escrevemos há mais de quarenta anos
– nos nossos devaneios de uma juventude irreverente –, infelizmente, nesta
terra de vivos “sacramentos”, quem governa são os mais governados.
Terminaremos com um apotegma – apenas teórico e
dialeticamente bem formulado – de Paula Teixeira da Cruz, em Outubro de 2011:
“Justiça tem um papel importante de criar confiança, que promove o
investimento. Por isso, apesar da altura ser difícil, não se pode pô-la em
causa”. Passados todos estes meses, das palavras à acção, nada foi feito para
restaurar a nossa confiança, porque a justiça passou a ser um factor de
incerteza. E aqui não nos estamos a referir apenas aos tribunais, mas a justiça
como norma do direito, virtude, ou uma organização harmoniosa da vida social.
Na sociedade presente, nomeadamente no que concerne à portuguesa, tal como
diria Immanuel Kant, “a missão suprema do homem é saber o que precisa para ser
homem”. Esse é o grande dilema!
1 comment:
Eu gosto destas crónicas, mas este blog está a precisar de um post mais...como direi? Diferente.
Ele é o problema da cultura, ele é a descredibilização da política, agora é o conceito de justiça...
No próximo post quero ler um poema. Tenho dito. Nem que seja escrito por mim, ahahah!
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