“Há um tempo certo para
determinadas experiências de crescimento, e a infância é o período de aprender
a construir pontes sobre a imensa lacuna entre a experiência interna e o mundo
real. Os contos de fadas podem parecer sem sentido, fantásticos, amedrontadores
e totalmente inacreditáveis para o adulto que foi privado da fantasia do conto
de fadas na sua própria infância, ou que reprimiu estas lembranças.”
Bruno Bettelheim
Ultimamente, andamos a
tentar – apesar da nossa dificuldade na tradução – ler a edição francesa
(Éditions Robert Laffont) do estudo de Bruno Bettelheim (1903-1990) –
considerado psicólogo judeu norte-americano, nascido em Viena d’Áustria – «Psychanalyse
des contes de fées», uma preciosa oferta da nossa amiga/irmã Maria do Carmo
Rocha, e cujo conteúdo, contrariamente ao que se afirma muitas vezes, os contos
de fadas não “traumatizam” os seus jovens leitores. Eles respondem de maneira
precisa e irrefutável às ansiedades de crianças e adolescentes e exercem sobre
eles uma função terapêutica informando dos próximos eventos e esforços
necessários. Bruno Bettelheim faz-nos descobrir a riqueza inesgotável deste
património intemporal, levando-nos a que, depois deste livro, nunca mais podemos
olhar da mesma forma para os contos de fadas. No fundo, situando-nos de volta
ao país mágico da infância e devolvendo-nos o encanto e maravilhamento dessa
época, Bruno Bettelheim revela-nos nesta sua brilhante obra a inigualável
importância dos contos de fadas que, para além do seu papel educativo,
estimulam e libertam as nossas emoções de crianças, ou seja, um livro cuja
leitura se torna essencial à memória das nossas infância e juventude: «Um adulto que não conseguiu uma integração
satisfatória dos dois mundos, o da realidade e o da imaginação, se desnorteia
com estes contos. Mas um adulto que na sua própria vida é capaz de integrar a
ordem racional com a ilogicidade de seu inconsciente será susceptível à forma
como o conto de fadas auxilia a criança nesta integração. Para a criança e para
o adulto que, como Sócrates, sabe que ainda existe uma criança dentro do
indivíduo mais sábio os contos de fadas exprimem verdades sobre a humanidade e
sobre a própria pessoa». Queremos aqui realçar que Bruno Bettelheim, após a
anexação da Áustria ao Terceiro Reich, às vésperas da Segunda Guerra Mundial,
foi deportado junto com outros judeus austríacos para o campo de concentração
de Dachau e, mais tarde, para Buchenwald. Aí pôde observar os comportamentos
humanos quando o indivíduo é sujeito a condições extremas, percepcionadas como
radicalmente destrutivas (desumanização), que estiveram mais tarde na base das
suas teorias sobre a origem do autismo. Graças a uma amnistia em 1939,
Bettelheim e centenas de outros prisioneiros foram libertados, o que lhe salvou
a vida. Emigrou então rumo aos Estados Unidos, onde foi professor de psicologia
em universidades americanas e dirigiu o Instituto Sonia-Shankman em Chicago
para crianças psicóticas, destacando-se o seu trabalho com crianças autistas.
Depois de volutearmos
pela psicanálise dos contos de fadas, eis que somos confrontados com manchetes
dos jornais nacionais, onde o despautério contrasta com oportuna análise de Bettelheim,
quando afirma que as crianças de hoje não crescem mais dentro da segurança de
uma família numerosa, ou de uma comunidade bem integrada: «Por conseguinte, mais ainda do que na época em que os contos de fadas
foram inventados, é importante prover a criança moderna com imagens de heróis
que partiram para o mundo sozinhos e que, apesar de inicialmente ignorando as
coisas últimas, encontram lugares seguros no mundo seguindo seus caminhos com
uma profunda confiança interior». Partindo da sentida e profunda confiança
interior, nós e nosso gato – como que extraído de um conto de fadas, porque
handicap ou libertador de emoções negativas – lemos com atenção o que,
visualmente, se nos era oferecido: “Estado vai assumir dívidas de Duarte Lima e
de Vítor Baía ao BPN”, manchete à qual não nos acresce qualquer tipo de
comentário ou desenvolvimento, porque pantanoso habitat de muitos bem-sucedidos
políticos e afins, alguns deles ainda bem instalados no poder; “Vale e Azevedo
revela uma personalidade compulsiva: no Reino Unido também já deixou um rasto
de burlas”, enfrentando nesse mesmo país uma acção que visa impedi-lo de
continuar a gerir empresas; “Fisco perdoa luvas dos submarinos”, sendo que à
volta desta manchete ficamos a saber que a Justiça alemã revelou que Jürgen
Adolff, ex-cônsul honorário de Portugal em Munique, e Rogério d’Oliveira (oficial
da Marinha com o posto de contra-almirante e ex-consultor do consórcio alemão) terão
recebido comissões no âmbito da compra dos submarinos por Portugal, tendo o último
declarado às Finanças um milhão de euros que estava depositado na Suíça desde
2006, mas cuja regularização tributária só foi feita em 2009, ao abrigo do
regime excepcional que permitiu o regresso de capitais. Com a adesão ao regime
excepcional, este mesmo (pretenso à imaculidade) militar, pagou apenas uma taxa
de 5% sobre as verbas depositadas no UBS; e, finalmente, “Deputado do CDS
propõe jovens fora da Segurança Social”, em cuja desenvoltura noticiosa ficamos
a saber que o deputado do CDS Michael Seufert – tendo em conta à “ciência” há
muito rejeitada (mas por nós estudada, por obrigação académica) da “fisiognomonia”
o atestaríamos de “campónio”, com o devido respeito por aqueles que o são –
estudante e um dos mais novos parlamentares portugueses, defende que os
contratos para jovens que procuram o primeiro emprego deviam ser “mais
flexíveis” e “isentos de contribuições para a Segurança Social”. Pasmem-se,
para este jovem (a nosso modesto ver, ainda por “desmamar”) deputado, as
empresas conseguiriam assim cortar trinta por cento nos custos com o
trabalhador, e os jovens ficariam fora da Segurança Social. Tal “bacorada” vai
mais longe, quando o mesmo admite que a proposta não seja “politicamente
correcta”, mas a sua ideia é “embaratecer a contratação sem mexer nas
remunerações”: «Entre estar desempregado
sem apoio ou com um apoio fraco e ir trabalhar e poder fazer a diferença, acho
que era preferível trabalhar» – disse, ou seja, pela profundidade do seu
pensamento, colar-lho-íamos à velha máxima de Lili Caneças “o estar morto é o
contrário de estar vivo”. Aqui, o nosso gato lançou um balbuciante miar,
querendo dar razão aos que acham que há deputados a mais no parlamento. Tornar
a máquina do Estado cada vez mais pesada e “vomitar” tão inadequadas – porque patéticas
– palavras é dar razão a Bruno Bettelheim quando escreve que «o destino destes heróis [?] convence a criança que, como eles, ela
pode-se sentir rejeitada e abandonada no mundo, tacteando no escuro». Para
este “herói” da política, a sua geração é do Erasmus e da migração. Talvez
fosse uma razão plausível para nunca se ter sentado na cadeira das mordomias,
creditadas pelos nossos impostos. Emigrava de vez e estava o caso resolvido…
Pela positiva lemos que
Mia Couto escreve para “acalmar os fantasmas” e quase não entende por que
recebe prémios. Admite ser caótico no que toca ao método de trabalho e cada vez
que parte para um livro sente os mesmos medos com que iniciou a primeira obra.
Assim é a humildade que caracteriza os grandes escritores.
Pela negativa,
constatamos a colagem bajuladora do director do jornal SOL, José António
Saraiva, ao actual Governo da nação. Face aos seus bem “masturbados”
editoriais, às vezes temos pena da sua manietada procura do consenso, porque
nos cheira a encapotada militância ideológica: «Penso que, no braço-de-ferro europeu, quem tem razão é Merkel e não
Hollande» (este ilustre director, se tem esperado alguns dias teria
assistido à acção combinada de três países fortes – a Itália, a França e a
Espanha – que obrigou os alemães a aceitarem a contragosto que a Europa tem
mesmo de ajudar os países em dificuldades e não massacrá-los com austeridade
inútil e desgastante. Finalmente, os países europeus conseguiram obrigar Merkel
a corrigir o rumo desastroso que escolheu desde 2010 e que tem produzido os
mais terríveis resultados na Grécia, na Irlanda, em Itália, em Espanha e também
em Portugal) (…) «É preferível haver mais
guerras políticas internas, mais instabilidade social – a voltarmos a uma
situação de desequilíbrio e descrédito internacional, má sob todos os aspectos»,
ou ainda «Ainda bem que o Governo não
cedeu», compasso de espera que deontologicamente se exigia para se
aperceber a tempo e horas que o deficit
português, em vez de descer como previam os defensores da austeridade,
aumentou! Ficamos assim a saber que Portugal, tal como os outros países, ainda
não se livrou da terrível espiral depressiva em que a Merkel nos obrigou a
entrar, mas pelo menos há uma nova esperança, a de que os diferentes rumos que
a Europa agora escolheu nos livrem desta triste e humilhante miséria em que nos
obrigam a viver. Mais uma vez, José António Saraiva falhou na sua análise. Enfim,
o jornalismo e os jornalistas que temos!
Infelizmente – em face da situação presente –, apercebemo-nos que o
nosso gato anda cada vez mais indignado (para não dizermos stressado) e, porque
conscientemente cúmplices, por simpatia vai-nos contagiando também. Mesmo
assim, em cognoscibilidade à criança que há dentro de nós – qual conto de fadas
–, é nele que continuamos a confiar. Verdadeira e eticamente falando, ao
contrário dos políticos ou de alguns jornalistas de “pacotilha”, o nosso gato é
um filósofo em crescente. Preferimos o Gato
das Botas ao Pinóquio!
2 comments:
Gosto do Betelheim (mas em português, se faz favor, que em francês demoro mais tempo a ler...), gosto de contos de fadas, e gosto do gato. Só não gosto do Duarte Lima e as suas dívidas, nem do Vale e Azevedo nem da Lili.
E também prefiro o Gato das Botas!
Quando olho para o estado do país e mesmo do mundo, penso: "Só queria ter nascido gato"!
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