“Considero
que os homens atingiram aquele ponto em que os obstáculos que prejudicam a sua
conservação no estado de natureza levam a melhor, pela resistência, sobre as
forças que cada indivíduo pode empregar para se manter neste estado”.
Jean-Jacques Rousseau
Pelo simples razão de
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) ter participado activamente no século que
mudou o rumo da cultura ocidental, nomeadamente entre o iluminismo e o
romantismo, e se comemorar no presente ano o tricentenário do seu nascimento
(1712-2012), é que resolvemos trazer à memória esta figura ímpar do pensamento
universal. Nascido em Genebra, em 28 de Junho de 1872, no seio de uma família
protestante de cidadãos burgueses, a sua vida e a sua personalidade estiveram sempre
intimamente ligadas à sua obra. Tal como afirmam muitos dos analistas da sua
obra e do seu pensamento – sem nos alvorarmos em tal pretensão de analista,
ficamo-nos pela constatação filosófica –, a música, o indivíduo, a tolerância,
a oposição entre a ciência e religião ou entre sentimento e razão, os direitos
naturais, em suma, todos os grandes temas e conflitos do «Século das Luzes»,
que resultaram na Revolução Francesa, em 1789, fizeram parte das inquietações
vitais e intelectuais deste pensador.
Outro aspecto a salientar no seu pensamento
filosófico, e que nos cativa profundamente, reside no facto de o mesmo exprimir
através da sua filosofia as tensões entre a razão e os sentimentos que
constituíam as linhas fundamentais sobre as quais discorriam as reflexões dos
seus contemporâneos. Pela “leitura” que fazemos – como empirista que somos – “o
pensamento rousseauniano não é produto de um processo racional, mas sim o fruto
da sua experiência vital perante o acontecer do mundo”. Daí que alguns vejam
nele um pensador proto-existencialista. Não vamos aqui falar, a fim de não
ferirmos susceptibilidades, do facto dos iluministas se terem oposto à Igreja, por
se oporem aos mitos e às superstições porque tinham observado o atraso que
estes representavam para o progresso intelectual das sociedades, mas lembrar
que a crítica e a razão dominaram o pensamento do século, não se podendo
separar desse contexto a inteligência e a paixão. Na altura, muitos dos
filósofos consideravam que o motor do homem tinha os seus princípios nas
paixões e que a sua natureza principal se encontrava nelas e não na razão,
contrariando assim o princípio do iluminismo, cujas razões eram empíricas e
provinham da ciência. Por isso, Rousseau ao ver a metafísica demasiado afastada
dos princípios de uma filosofia cuja função deveria ser a de conhecer o homem,
associou a sinceridade pessoal à verdade filosófica, cujo fim é chegar à
compreensão racional do ser humano. E, para este mesmo filósofo – gravitando
através da compreensão racional do ser humano como objectivo –, tal compreensão
só se pode alcançar partindo do próprio indivíduo e dos seus sentimentos.
Contrariando as
práticas do “imperialismo financeiro” (o termo é nosso) – egoisticamente
pessoal e/ou de interesse particular –, actualmente instalado no mundo, e que
nos envergonha profundamente, Jean-Jacques Rousseau, ao seu tempo, era
apologista de um modelo social baseado no pacto social. O mesmo filósofo
acreditava, face à inclinação egoísta dos interesses particulares, ser possível
no cidadão a sua tendência para o colectivo: «o homem nasceu livre e está acorrentado por todos os lados» – citamos
d’ “O Contrato Social”, uma das suas mais emblemáticas obras. De facto,
Rousseau questionava-se sobre essa escravidão (nascer livre e estar
acorrentado) e como legitimar o regresso à liberdade. A ordem social era para
ele um direito não baseado na natureza, mas sim nas convenções, que se deveriam
conhecer. Assim, neste ponto, Rousseau separava-se da opinião de John Locke
(1632-1704), no que se refere ao carácter natural da lei da maioria para
adoptar uma lei baseada no acto de convenção. Rousseau estudou as sociedades
primitivas e a sua revolução até chegar ao pacto social: «Pelo pacto social demos existência e vida ao corpo político. Trata-se
agora de lhe dar movimento e vontade através da legislação, porque o acto
primordial pelo qual este corpo se forma e se une não determina ainda nada a
respeito do que ele deve fazer para se conservar. É este o objectivo para o
qual tende a ciência da legislação» – citamos “O Contrato Social”, Livro
II, Capítulo I, “Objectivo da Legislação”. Para o mesmo filósofo, o modelo
social político mais antigo era a família, que se mantinha até os filhos terem
capacidade para substituir, libertando-se da obediência paterna. Após esta
etapa só a convenção e não a necessidade os poderia fazer permanecer unidos.
Apesar de negar qualquer paralelismo entre família e sociedade, achava que as
liberdades particulares eram alienadas unicamente pela utilidade que responde
ao princípio fundamental de conservação.
A rejeição de qualquer
tese tradicional sobre a origem da sociedade política está muito enraizada no
pensamento de Jean-Jacques Rousseau, ao ponto de não aceitar a autoridade
política baseada na força: poder físico e moral eram – e continuam a ser –
conceitos opostos. Esta figura ímpar do pensamento universal chegou a
investigar o direito de matar os vencidos nas guerras e o direito de conquista
para concluir que não existe esse direito de escravatura antagónico e
irreconciliável nos seus próprios termos: «O
Estado ou a cidade constituem uma pessoa moral cuja vida consiste na ajuda e na
união dos seus membros; a primeira e mais importante das suas preocupações é a
da sua própria conservação, tarefa que necessita de uma força universal e
compulsiva para mover e dispor cada parte da maneira mais conveniente para o
todo. Assim, da mesma forma que a natureza dá a cada homem um poder absoluto
sobre os seus membros, o pacto social dá ao corpo político um poder absoluto
sobre os seus, e é esse mesmo poder, cujo exercício é dirigido pela vontade
geral, que tem, como já havia dito, o nome de soberania» (“O Contrato
Social”, Livro I, Capítulo VI, “Dos respectivos direitos do soberano e do
cidadão”). Para além disso, para ele, os homens dispunham de dois instrumentos
de conservação, a força e a liberdade, e esta última só se adquiria com o
desenvolvimento das capacidades humanas, inseparáveis da sua relação com os
seus congéneres, pressupondo que “já não é só o homem que actua instintiva e
cegamente, mas sim um ser capaz de reflectir e que observa o alheio para além
do amour de soi. Vontade e razão
dirigem a sua actuação para uma forma de liberdade mais completa que concilia o
individual com o colectivo”.
Reflectindo sobre os
tempos que correm – nomeadamente no que concerne à prática política em Portugal
– que dizer do pensamento de Jean-Jacques Rousseau, que ao tempo soube analisar
a soberania derivada da vontade geral e o exercício do seu governo a partir do
interesse comum? Reforçaríamos a sua convicção de que o princípio de soberania
era absoluto e indivisível, mas os políticos – tal como agora – dividiam o seu
objecto em força e vontade, que correspondem aos poderes legislativo e
executivo, respectivamente. Rousseau considerava que a soberania residia no
povo – sendo que o poder era legitimado pela vontade geral –, o que queria
dizer que também era inalienável, não se podendo renunciar a ela. E poderíamos
discorrer aqui sobre a “vontade geral e vontade de todos”; “o pacto social e as
leis”; “a função do legislador”; “vontade geral e soberania política”; “formas
de governo”; “o objectivo do bom governo”, comutando-o com a conservação e a prosperidades
dos seus membros; “a eficácia da vontade geral”, onde afirma que no estado de
perfeição é impossível enganar as pessoas simples com subtilezas políticas; “a
vontade geral e o sufrágio”, de modos a que enquanto prevalece a unanimidade e
não se abre a brecha dos interesses particulares no Estado – tão irreal nos
tempos que correm –; e, porque não, “a religião como meio de sociabilidade”,
sendo que Rousseau juntou intolerância civil e religiosa, devendo tolerar-se
todas as religiões enquanto os seus dogmas não se opuserem aos deveres civis;
mas quedamo-nos pela noção de espaço e complacência de quem nos lê.
Terminaremos parafraseando João Lopes Alves, responsável pela introdução
e notas à mais recente reedição d’ “O Contrato Social” (2008), que há leituras
do pensamento de Rousseau ora como manifesto de libertarianismo radical, se não
mesmo de anarquismo, ora como expoente por excelência do império da lei;
havendo, também, os que o acusam de propor uma geometria do político com traços
de paleototalitarismo e os que lhe reconhecem o papel de teórico fundamental da
democracia. Pena é que os “democratas/políticos” de hoje não o lêem. Talvez se
revissem na falta do “bom senso” – e até propositado alheamento – no exercício
dos seus governos a partir do interesse comum!
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