“Quase
todos os sinais exteriores que nos levam a fazer inferências acerca da dor
sentida por outros seres humanos podem ser observados noutras espécies,
especialmente naquelas que se encontram mais próximas de nós, como é o caso dos
mamíferos ou das aves”.
Peter Singer
Pelo facto de se ter realizado
em Viana do Castelo (19 de Agosto, último) a tão propalada tourada, para alguns
a reposição da legalidade ou de uma “verdade cultural”, para outros uma
“provocação” que se pensaria arredada do vocabulário vianense, muitos foram os
amigos a sugerir-nos um pequeno apontamento acerca da problemática da «Ética
Animal», tendo em conta a nossa formação académica e alguma especialização em
bioética, cujo objectivo foi – e continua a ser – o de reflectir, questionar e
desenvolver a sensibilidade humana para a saúde, realidade particularmente
fértil em conflitos, dúvidas e manipulações. Aceitando com uma certa cautela
esse “desafio”, resolvemos gravitar à volta de duas correntes – Peter Singer,
com a libertação animal e Tom Regan,
com a argumentação em defesa dos direitos
dos animais –, reiteradas pelo bem-estar
(utilitarista) ou pelo direito dos
animais (kantiana), propomo-nos assim para uma reflexão moral, onde não há
razão teórica para excluir os animais do círculo (ou comunidade) moral. Se, por
um lado, a família utilitarista pretende alargar o ciclo moral aos animais,
onde o maior bem ao maior número supõe o aumento de prazer e a ausência de dor,
não se devendo, por isso, excluir os animais, dado que os mesmos também possuem
prazer e dor; por outro, aparece-nos aqueles que à defesa dos interesses
contrapõem com os direitos – uma perspectiva que seja uma alternativa
sistemática do utilitarismo, nele encontrando algumas contradições inerentes ao
princípio de utilidade, legitimado pela excepção de sacrificar o menor número
de animais, para salvar milhares de pessoas.
Tendo em conta que a
igualdade é sempre um ideal ético, é sempre uma prescrição e não uma descrição,
ou seja, por outras palavras, a igualdade é sempre uma característica moral, os
primeiros críticos aparecem-nos a lutar contra a discriminação dos animais,
dado que os preconceitos que discriminam moralmente a partir de características
irrelevantes, acabam por subverter aquilo que Peter Singer defende – a elevação
do estatuto dos animais ao estatuto moral dos animais. Segundo Cristina Becker “a
noção de bem-estar (welfare), quando
aplicada aos animais, adquire contornos e amplitude diversa, podendo ser
utilizada em sentido comum ou técnico. Assim, há que distinguir, pelo menos,
três acepções do termo: aquele que os próprios exploradores dos animais
reclamam, o do senso comum e o do movimento de libertação dos animais”. Para Peter
Singer, por exemplo, um interesse é sempre um interesse, independentemente do
interesse, e quando argumenta em defesa dos animais não o faz por amor aos
mesmos animais, mas por uma razão moral. O seu argumento principal vai no
sentido de que, apesar de os humanos terem uma longa história de maltratar
animais, não existe justificação moral para esse comportamento. Tal como
escreveu Peter King, a propósito da teorização de Peter Singer, “no centro da
sua moralidade está o facto de ser errado causar sofrimento desnecessário, mas
o sofrimento não vem em qualidades diferentes, das quais apenas algumas são,
moralmente, relevantes – não podemos condenar a dor causada a membros de uma
espécie e ser indulgentes em relação à dor causada aos membros de outra, do
mesmo modo que não o podemos fazer relativamente a diferentes raças ou sexos”.
Em suma, Peter Singer defende um princípio da igualdade na consideração de
interesses, forma emancipadora para os homens e também para os animais. A dieta
vegetariana é, por assim dizer, uma dieta moral. Para o mesmo filósofo, a mesma
dieta produz menos sofrimento e mais alimento a um custo ambiental mais
reduzido.
Por outro lado, Tom Regan, apesar de ter
andado muito próximo de Peter Singer – assume que nem sempre foi um defensor
dos animais –, viria a demarcar-se gradualmente das teorias libertadoras quando
se apercebeu das consequências nefastas da perspectiva «consequencialista» do
utilitarismo. A principal crítica ao utilitarismo é a possibilidade de abrir
excepções; de violar os direitos dos animais em nome do benefício comum, em
nome do maior número. Pelo facto de Peter Singer caracterizar os seres como
receptáculos, abrindo, assim flancos ao “especismo” (não o combatendo
eficazmente), estas excepções acabam por se tornar intoleráveis. Por isso, Tom
Regan propõe uma perspectiva abolicionista. Se ele não defende a teoria
libertadora de Peter Singer, tende a procurar outra argumentação – recupera
Kant (defende o “valor inerente”) – não pensando à letra kantiana, mas a
postular o “valor kantiano”: “Por exemplo, estes animais apreciam determinadas
coisas e sentem outras como dolorosas. E, o que não constitui surpresa para
ninguém, agem em conformidade, procurando encontrar as primeiras e evitar as
segundas. Além disso, tanto os seres humanos como os outros mamíferos partilham
uma família de capacidades cognitivas (uns e outros são capazes de aprender com
a experiência, de recordar o passado, de antecipar o futuro), bem como a grande
variedade de emoções”. Parafraseando Paul W. Taylor, considerado filósofo
individualista da “Ética Ambiental Biocêntrica”, ao partirmos da perspectiva
centrada na vida, temos obrigações enquanto membros da comunidade biótica
terrestre: “Somos moralmente obrigados a proteger ou a promover o seu bem por
si próprios […]. Assumir uma atitude de respeito para com a Natureza consiste
em encarar as plantas selvagens e os animais dos ecossistemas naturais
terrestres como portadores de dignidade inerente, o que os tornas sujeitos
morais”. Segundo apreendemos das suas palavras, isso significa que a assunção
da dignidade inerente de animais e plantas, deverá implicar que estes não
possam ser tratados apenas como meios para os fins de alguém. Os seres humanos,
têm, assim, obrigação e dever de promover, ou beneficiar, “o bem próprio das
entidades possuidoras de dignidade inerente enquanto «fins-em-si» mesmas”.
Estamos perante um imperativo ético que se nos apresenta o respeito pela
Natureza, numa argumentação em que adquirem plena presença os conceitos da
ética kantiana: “fim-em-si”, “dignidade inerente”, “dever”, “respeito”. Tal
como um dia afirmaria uma professora da Universidade do Minho, de grata memória
para nós, Ana Lúcia Cruz, acérrima defensora dos direitos dos animais, “os
seres vivos não podem ser vistos como chávenas, mas como valor moral inerente”.
Depois disto,
perguntar-se-á: Será que o homem não deve comer carne dos animais? Por certo
que esta pergunta permanecerá no subconsciente de cada um de nós, nomeadamente
pelo facto de, circunstancialmente, se estabelecer critérios da senciência como
limite para definir quem é ou não digno de ser considerado membro da comunidade
moral. Enquanto para Peter Singer “a aplicação do princípio de igualdade à
inflicção de sofrimento é, pelo menos em teoria, bastante fácil de entender. A
dor e o sofrimento são maus e devem ser evitados ou minimizados, independente
da raça, sexo ou espécie do ser que os sofrem”, para Tom Regan, por exemplo, as
consequências práticas da defesa dos direitos dos animais, passam pela
dissolução da pecuária e do uso nocivo dos animais na ciência, porque eles não
são coisas e, tendo em conta que, qualquer argumento baseado na comparação
entre benefícios e danos, não se deve remeter apenas para a propositada
enumeração dos benefícios, descorando ou procurando ignorar os danos
relevantes: “Independentemente da sua lamentável tendência para minimizar os
dados infligidos aos animais e da sua determinação inamovível em marginalizar
alternativas não animais, os defensores deste argumento sobrestimam os
benefícios em termos dos seres humanos atribuíveis à vivissecção, além de
ignorarem redondamente os inúmeros danos infligidos aos seres humanos que
constituem uma parte essencial da vivissecção”. Ainda para Tom Regan, a prática
da vivissecção é errada do ponto de vista moral. Segundo I. Anna S. Olsson, autora
do livro «Ética e Bem-Estar Animal», a teoria de Regan sobre os direitos dos
animais pode não ser a única defesa possível contra a falta de respeito pelo
homem, patente no utilitarismo – aceitar que se criem e matem certos animais
para produção alimentar, desde que não haja dor ou angústia –, mas através de
uma combinação “de utilitarismo e direitos moderados, a experimentação animal
que seja promissora em termos de resultados para benefício humano é permitida,
desde que se garanta aos animais a protecção contra dor, angústia e desconforto
sérios”.
Terminaremos dizendo
que, apesar de reconhecermos a “mea culpa” de sermos consumidores de carne –
quiçá, um dia, revoguemos esta nossa cadeia alimentar –, somos pela “ética
animal” e, por certo, não aceitaremos qualquer tipo de intolerância insultuosa
por parte dos “gladiadores” ou aficionados das touradas. E sem nos pretendermos
alvorar em moralistas ou objectores de consciências – porque sempre nos pautamos
pelo princípio da tolerância e nada nos move contra os aficionados das touradas
–, aconselhávamos, contudo, a leitura de Peter Singer «Escritos sobre uma vida
ética», nomeadamente no capítulo de “Notas autobiográficas” – «Libertação
Animal: Uma Perspectiva Pessoal», onde a dado momento o mesmo diz que “é vital
que o movimento da libertação animal evite a espiral viciosa da violência. Os
activistas da libertação animal têm de se posicionar irrevogavelmente contra o
uso da violência, mesmo quando os seus adversários usam violência contra si”.
De facto, essa será sempre – ou deveria ser – a postura dos defensores dos
animais, dado que a luta para alargar a esfera da preocupação moral aos animais
não humanos pode mesmo ser mais difícil e longa, mas, se for conduzida com a
mesma determinação e o mesmo empenho moral, de certeza que também será ganha. E
os defensores das touradas talvez, um dia, poderão vir a entender a imoralidade
de tão repugnante espectáculo. O gosto embora possa ser estético (se nos
referirmos ao que denominam de “arte tauromáquica”), nunca será ético, porque
as críticas aos maus-tratos dos animais e à subsequente crueldade que se faz
aos mesmos, sendo que as nossas tradições culturais não podem legitimar as
nossas acções, leva a que Peter Singer venha a afirmar que “quase todos os
sinais exteriores que nos levam a fazer inferências acerca da dor sentida por
outros seres humanos podem ser observados noutras espécies, especialmente
naquelas que se encontram mais próximas de nós, como é o caso dos mamíferos e
das aves”. Pensem nisso!
N. A. – A imagem que ilustra este nosso desabafo (e não provocação), serviu
de logótipo aos nossos artigos «Ponto Crítico», publicados no jornal dos
trabalhadores dos ENVC “Roda do Leme”, pelos anos oitenta, do século passado.
No comments:
Post a Comment