Friday, August 10, 2012

A linha do horizonte na última viagem do “Bessie Surtees”: do mar para terra, deambulando pela Cultura Clássica!


“Primeiro chegarás às Sereias, que fascinam todos os homens / que junto delas abordarem. / Seja quem for que se aproxime incauto e escute / a voz das Sereias, a esse nem a mulher nem os filhos inocentes / hão-de acolhê-lo e alegrar-se com o seu regresso a casa”.

HOMERO, in Odisseia (XII, 39-43)

Já lá vão alguns anos, mas lembramo-nos como se fosse hoje. Naturalmente impressionados com as coisas terrenas, sempre fomos admiradores das bases sólidas e robustas que, tal como em Tróia, nos criam uma sensação de segurança e estabilidade. A cantaria cinzelada (por exemplo) faz-nos perpetuar o passado rebuscando memórias. Elas podem ler-se na pedra porque a pedra é terrena, sólida e robusta. O mesmo não se pode dizer da água e de tudo quanto nela flutua.
Momentos há que, só nos mergulhos a grandes profundidades, se podem rebuscar memórias do passado, porque essas residem em terra, mormente diluídas pela imensidão do mar... Por isso, para que nasça em nós a paixão pelo mar, tem que haver trigonometria, porque a areia e a água, somente, tornam-se agrestes e agridem o nosso espírito. O verde é um elemento necessário ao nosso “ego”, local privilegiado de súplica à virgem mãe de Deus, detentora da égide divina, plasmada no branco caiado das serpenteadas capelinhas. A filha de Zeus, moldada aos tempos que correm. Culturalmente, a égide de sermos filhos da Grécia!
Temos as raízes em terra! Assim, só porque se tratava da última viagem daquela “construção flutuante”, nos decidimos em aceitar o desafio e, decerto, a íntima e ansiada experiência de aventura.


Já tínhamos “ido” ao mar – esse elemento fundamental das epopeias – num rebocador, mas, desta vez, levávamos outro sentimento de mãos dadas com a odisseia pessoal – intimamente marcada pela poética camoniana de convocar as alvas filhas de Nereu, / com toda a mais cerúlea companhia, / que, porque no salgado mar nasceu, / das águas o poder lhe obedecia (Lusíadas: II, 19) –, um sentimento fundo de tudo ver com outros olhos. Se calhar, inconscientemente, era a simbiose com o derradeiro alento daquele barco. Uma sensação de perda. A expectativa da despedida.
Falou-se de borda, convés, leme, bombordo e estibordo, de milhas, de norte e sul, nordeste e sudoeste, de correntes, de bóias, de coletes, de sinais, de porões, de cobertas, de tanques, de vigias, enquanto nascia em nós, primeiro escondidamente e depois fundo e largo, um sentimento pungente mas indefinível, enquanto olhávamos para a linha do horizonte sulcada pela passagem de um veleiro e pontilhada por embarcações de pesca artesanal. Aqui e acolá as marcas sinalizadoras das redes, bóias embandeiradas, demarcando áreas. Para trás ficava a cidade e o seu verde e, connosco, um ressaibo de nostalgia... Era a cidade vista noutra dimensão. Ali, em pleno mar, ao sinal de um dos tripulantes, mudavam-se rumos para fugir às bóias, cujo silvo do vento norte lhes conferia a partitura do canto das sereias. O mar estava “chão”. Uma paz silenciosa como uma serena calmaria. Na linha do horizonte o veleiro rumava para norte, enquanto a nossa embarcação, de leme a estibordo – depois que passamos ao largo e não se ouvia já / a voz das sereias nem o seu canto (Odisseia: XII, 196-197) –, descrevia uma volta de 180 graus, de regresso a casa.
Ao longe, Viana amuralhada – qual sólido navio chegaria à ilha das Sereias –, num outro horizonte, tendo como pano de fundo a altivez e a serenidade do verde esperança que se derramava aos pés de Santa Luzia. Cumpria-se os oráculos revelados por Circe. A linha prolongava-se para norte e sul reproduzindo aguarelas de um progresso “anárquico” com o predomínio de torres ferindo o recorte harmonioso da Natureza. Inconscientemente uma memória feriu-nos. Uma memória que transpondo o passado evanescente nos deixou ver a mesma linha de costa espraiando-se aos pés da Montanha, onde velejavam as caravelas e as embarcações de antanho, do tempo áureo dos descobrimentos e do comércio marítimo com os seus ciclos dos panos e do sal, do ferro e do bacalhau, do açúcar brasileiro. A costa rochosa da ilha, feita cidade (Polis), deixou de ser berço dos encantadores génios marinhos: Vem cá, Ulisses celebrado, dos Aqueus glória suprema! / Detém o navio, para escutares a nossa voz. / Jamais alguém passou ao largo com a negra nau, / sem que ouvisse o doce canto que sai da nossa boca (Odisseia: XII, 183-186). Não fosse o facto de Ulisses, prudente e curioso ao mesmo tempo, ordenar os seus marinheiros que tapassem os ouvidos e o amarrassem ao mastro – Um a um, tapo com cera os ouvidos dos meus homens todos. / Por sua vez, eles ligam-me de pernas e braços / e amarram-me, de pé, ao mastro central. / Depois, sentados, batem com os remos o mar pardacento (Odisseia: XII, 176-179) –, por certo que, uma vez levados pelo encanto das Sereias, viriam os seus navios desfazerem-se contra as rochas, num cenário desolador de naufrágios envoltos pelo mar encapelado, qual Adamastor Assi contava, e c’um medonho choro / Súbito d’ante os olhos se apartou; / Desfez-se a nuvem negra, e c’um sonoro / Bramido muito longe o mar soou. / Eu, levantando as mãos ao santo coro / Dos Anjos, que tão longe nos guiou, / A Deus pedi que removesse os duros / Casos que Adamastor contou futuros (Lusíadas: V, 60).
Uma memória... uma fuga à voz doce das Sereias e do prado florido, sem amarras, junto ao mastro-real. As “sirenes” (Σειρηνες.) de agora passaram a ter outra função. Passaram a alertar-nos para o perigo de proximidade à costa. O hoje, outra vez, em terra: «… Sigamos estas Deusas, e vejamos / Se fantásticas são, se verdadeiras!» / Isto dito, velozes mais que gamos, / Se lançaram a correr pelas ribeiras. / Fugindo as Ninfas vão por entre os ramos, / Mas, mais industriosas que ligeiras, / Pouco e pouco, sorrindo e gritos dando, / Se deixam ir dos galgos alcançando (Lusíadas: IX, 70).
Desvaneceram-se as caravelas. O passado... Naquele dia, feitos mareantes, a bordo do “Bessie Surtees”, sentimos Viana de uma maneira diferente.
Que bom seria se os arquitectos das bases sólidas, quando pensassem alterar a linha do horizonte, não o fizessem de terra para terra, mas de mar para terra, auscultando os deuses bem-aventurados, aqueles que não apreciam o mal, / mas prestam honra à justiça e às acções sensatas dos homens (Odisseia: XIV, 83-84).
Bastaria escolher um dia de mar “chão” – ainda que se vislumbrasse uma serena calmaria – e viajar num barco, mesmo que fosse um barco a abater. Decerto, pensariam tudo de uma maneira diferente!...
À noite, na calmaria do nosso quarto, impôs-se-nos a necessidade de uma séria reflexão, a propósito do encanto e desencanto dos espíritos do campo, plasmados nas “jovens mulheres” que o povoam (Ninfas), deambulando também pelos bosques e pelas águas, personificando os diversos aspectos da natureza. Naquela mesma noite, voltaríamos a perscrutar a nossa ancestralidade greco-romana. Embora hoje outros sejam os cânticos sedutores que provocam os naufrágios, os “demónios marinhos” – sejam eles sob a forma de ave ou de peixe com cabeça e peito de mulher (Sereias) –permanecem aconchegados e/ou actuam no nosso subconsciente.

São outros os rostos dos deuses, mas as preces continuam a ser as mesmas. Dos deuses pensados à imagem do homem até nos defeitos – ludibriosos e vingativos, sendo que suas paixões é que determinam os sofrimentos dos homem – (Ilíada), passamos aos deuses mais distanciados e justiceiros – os sofrimentos impostos são uma consequência do comportamento dos homens – (Odisseia). A precariedade do homem perante a divindade, lutando pela Glória, a “Arete”: Mas Zeus acrescenta ou diminui o valor dos homens, / conforme lhe apraz, pois ele é o mais poderoso de todos (Ilíada: XX, 242-243). Por outro lado, o mar será sempre fonte de inspiração de outras tantas epopeias. Ainda que se procure que Cessem do sábio grego e do troiano / As navegações grandes que fizeram; / Cale-se de Alexandre e de Trajano / A fama das vitórias que tiveram (Lusíadas: I, 3), jamais se conseguirá apagar o espargir do mundo a partir do qual o nosso nasceu, seja através da estrutura social e política, das ideias, das crenças, ou até mesmo dos costumes. E, ingenuamente, lá vamos andando de costas viradas ao mar, dizendo-nos e afirmando-nos filhos da Europa!

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