“Primeiro
chegarás às Sereias, que fascinam todos os homens / que junto delas abordarem.
/ Seja quem for que se aproxime incauto e escute / a voz das Sereias, a esse
nem a mulher nem os filhos inocentes / hão-de acolhê-lo e alegrar-se com o seu
regresso a casa”.
HOMERO, in Odisseia (XII, 39-43)
Já lá vão alguns anos,
mas lembramo-nos como se fosse hoje. Naturalmente impressionados com as coisas
terrenas, sempre fomos admiradores das bases sólidas e robustas que, tal como
em Tróia, nos criam uma sensação de segurança e estabilidade. A cantaria
cinzelada (por exemplo) faz-nos perpetuar o passado rebuscando memórias. Elas
podem ler-se na pedra porque a pedra é terrena, sólida e robusta. O mesmo não
se pode dizer da água e de tudo quanto nela flutua.
Momentos há que, só nos
mergulhos a grandes profundidades, se podem rebuscar memórias do passado,
porque essas residem em terra, mormente diluídas pela imensidão do mar... Por
isso, para que nasça em nós a paixão pelo mar, tem que haver trigonometria,
porque a areia e a água, somente, tornam-se agrestes e agridem o nosso
espírito. O verde é um elemento necessário ao nosso “ego”, local privilegiado
de súplica à virgem mãe de Deus, detentora da égide divina, plasmada no branco
caiado das serpenteadas capelinhas. A filha de Zeus, moldada aos tempos que
correm. Culturalmente, a égide de sermos filhos da Grécia!
Temos as raízes em
terra! Assim, só porque se tratava da última viagem daquela “construção
flutuante”, nos decidimos em aceitar o desafio e, decerto, a íntima e ansiada
experiência de aventura.
Já tínhamos “ido” ao
mar – esse elemento fundamental das epopeias – num rebocador, mas, desta vez,
levávamos outro sentimento de mãos dadas com a odisseia pessoal – intimamente
marcada pela poética camoniana de convocar as
alvas filhas de Nereu, / com toda a mais cerúlea companhia, / que, porque no
salgado mar nasceu, / das águas o poder lhe obedecia (Lusíadas: II, 19) –,
um sentimento fundo de tudo ver com outros olhos. Se calhar, inconscientemente,
era a simbiose com o derradeiro alento daquele barco. Uma sensação de perda. A
expectativa da despedida.
Falou-se de borda, convés,
leme, bombordo e estibordo, de milhas, de norte e sul, nordeste e sudoeste, de
correntes, de bóias, de coletes, de sinais, de porões, de cobertas, de tanques,
de vigias, enquanto nascia em nós, primeiro escondidamente e depois fundo e
largo, um sentimento pungente mas indefinível, enquanto olhávamos para a linha
do horizonte sulcada pela passagem de um veleiro e pontilhada por embarcações
de pesca artesanal. Aqui e acolá as marcas sinalizadoras das redes, bóias
embandeiradas, demarcando áreas. Para trás ficava a cidade e o seu verde e,
connosco, um ressaibo de nostalgia... Era a cidade vista noutra dimensão. Ali,
em pleno mar, ao sinal de um dos tripulantes, mudavam-se rumos para fugir às
bóias, cujo silvo do vento norte lhes conferia a partitura do canto das
sereias. O mar estava “chão”. Uma paz silenciosa como uma serena calmaria. Na
linha do horizonte o veleiro rumava para norte, enquanto a nossa embarcação, de
leme a estibordo – depois que passamos ao
largo e não se ouvia já / a voz das sereias nem o seu canto (Odisseia: XII,
196-197) –, descrevia uma volta de 180 graus, de regresso a casa.
Ao longe, Viana
amuralhada – qual sólido navio chegaria à ilha das Sereias –, num outro
horizonte, tendo como pano de fundo a altivez e a serenidade do verde esperança
que se derramava aos pés de Santa Luzia. Cumpria-se os oráculos revelados por
Circe. A linha prolongava-se para norte e sul reproduzindo aguarelas de um
progresso “anárquico” com o predomínio de torres ferindo o recorte harmonioso
da Natureza. Inconscientemente uma memória feriu-nos. Uma memória que
transpondo o passado evanescente nos deixou ver a mesma linha de costa
espraiando-se aos pés da Montanha, onde velejavam as caravelas e as embarcações
de antanho, do tempo áureo dos descobrimentos e do comércio marítimo com os
seus ciclos dos panos e do sal, do ferro e do bacalhau, do açúcar brasileiro. A
costa rochosa da ilha, feita cidade (Polis), deixou de ser berço dos
encantadores génios marinhos: Vem cá,
Ulisses celebrado, dos Aqueus glória suprema! / Detém o navio, para escutares a
nossa voz. / Jamais alguém passou ao largo com a negra nau, / sem que ouvisse o
doce canto que sai da nossa boca (Odisseia: XII, 183-186). Não fosse o
facto de Ulisses, prudente e curioso ao mesmo tempo, ordenar os seus marinheiros
que tapassem os ouvidos e o amarrassem ao mastro – Um a um, tapo com cera os ouvidos dos meus homens todos. / Por sua vez,
eles ligam-me de pernas e braços / e amarram-me, de pé, ao mastro central. /
Depois, sentados, batem com os remos o mar pardacento (Odisseia: XII,
176-179) –, por certo que, uma vez levados pelo encanto das Sereias, viriam os
seus navios desfazerem-se contra as rochas, num cenário desolador de naufrágios
envoltos pelo mar encapelado, qual Adamastor Assi contava, e c’um medonho choro / Súbito d’ante os olhos se apartou;
/ Desfez-se a nuvem negra, e c’um sonoro / Bramido muito longe o mar soou. /
Eu, levantando as mãos ao santo coro / Dos Anjos, que tão longe nos guiou, / A
Deus pedi que removesse os duros / Casos que Adamastor contou futuros
(Lusíadas: V, 60).
Uma memória... uma fuga
à voz doce das Sereias e do prado florido, sem amarras, junto ao mastro-real.
As “sirenes” (Σειρηνες.) de agora passaram a ter outra função. Passaram a
alertar-nos para o perigo de proximidade à costa. O hoje, outra vez, em terra: «… Sigamos estas Deusas, e vejamos / Se
fantásticas são, se verdadeiras!» / Isto dito, velozes mais que gamos, / Se
lançaram a correr pelas ribeiras. / Fugindo as Ninfas vão por entre os ramos, /
Mas, mais industriosas que ligeiras, / Pouco e pouco, sorrindo e gritos dando,
/ Se deixam ir dos galgos alcançando (Lusíadas: IX, 70).
Desvaneceram-se as
caravelas. O passado... Naquele dia, feitos mareantes, a bordo do “Bessie
Surtees”, sentimos Viana de uma maneira diferente.
Que bom seria se os
arquitectos das bases sólidas, quando pensassem alterar a linha do horizonte,
não o fizessem de terra para terra, mas de mar para terra, auscultando os
deuses bem-aventurados, aqueles que não
apreciam o mal, / mas prestam honra à justiça e às acções sensatas dos homens
(Odisseia: XIV, 83-84).
Bastaria escolher um
dia de mar “chão” – ainda que se vislumbrasse uma serena calmaria – e viajar num barco, mesmo que fosse um barco
a abater. Decerto, pensariam tudo de uma maneira diferente!...
À noite, na calmaria do
nosso quarto, impôs-se-nos a necessidade de uma séria reflexão, a propósito do
encanto e desencanto dos espíritos do campo, plasmados nas “jovens mulheres”
que o povoam (Ninfas), deambulando também pelos bosques e pelas águas,
personificando os diversos aspectos da natureza. Naquela mesma noite,
voltaríamos a perscrutar a nossa ancestralidade greco-romana. Embora hoje
outros sejam os cânticos sedutores que provocam os naufrágios, os “demónios
marinhos” – sejam eles sob a forma de ave ou de peixe com cabeça e peito de mulher
(Sereias) –permanecem aconchegados e/ou actuam no nosso subconsciente.
São outros os rostos dos deuses, mas as preces continuam a ser as
mesmas. Dos deuses pensados à imagem do homem até nos defeitos – ludibriosos e
vingativos, sendo que suas paixões é que determinam os sofrimentos dos homem –
(Ilíada), passamos aos deuses mais
distanciados e justiceiros – os sofrimentos impostos são uma consequência do
comportamento dos homens – (Odisseia).
A precariedade do homem perante a divindade, lutando pela Glória, a “Arete”: Mas Zeus acrescenta ou diminui o valor dos homens, /
conforme lhe apraz, pois ele é o mais poderoso de todos (Ilíada: XX,
242-243). Por outro lado, o mar será sempre fonte de inspiração de outras
tantas epopeias. Ainda que se procure que Cessem
do sábio grego e do troiano / As navegações grandes que fizeram; / Cale-se de
Alexandre e de Trajano / A fama das vitórias que tiveram (Lusíadas: I, 3),
jamais se conseguirá apagar o espargir do mundo a partir do qual o nosso
nasceu, seja através da estrutura social e política, das ideias, das crenças,
ou até mesmo dos costumes. E, ingenuamente, lá vamos andando de costas viradas
ao mar, dizendo-nos e afirmando-nos filhos da Europa!
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